versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.82 no.1 São Paulo jan./fev. 2016
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2015.10.001
O sistema vestibular é constituído por três partes principais: sistema sensorial periférico, processador central e mecanismo de resposta motora. O sistema sensorial periférico é composto por um conjunto de sensores de movimento, os quais enviam informações ao sistema nervoso central (SNC). O SNC é responsável pelo processamento desses sinais, e os combina com outras informações sensoriais, para estimar a orientação cefálica. 1
O sistema periférico é composto por um labirinto ósseo e um labirinto membranoso. 2 O componente membranoso é a parte funcional do sistema, que detecta as sensações de equilíbrio. Este contêm três canais semicirculares, o sáculo e o utrículo, que constituem os órgãos sensoriais vestibulares. 3
As células receptoras vestibulares estão localizadas em regiões dos canais semicirculares, denominadas ampolas; já no sáculo e no utrículo são chamadas de máculas. Estas células são sensores biológicos, que convertem o deslocamento provocado pelo movimento cefálico em uma descarga neural. 1 Contudo, estas propriedades mecânicas do labirinto vestibular conferem aos receptores a sensação de movimento. As células ciliadas do utrículo e do sáculo registram o movimento linear. Estes órgãos possuem um revestimento gelatinoso sobre as células sensoriais das suas máculas, com cristais de carbonato de cálcio embebidos na superfície do material gelatinoso, e estes repousam sobre os estereocílios das células sensoriais. Esta gelatina sofre uma deformação causada pelos movimentos da cabeça, que acabam desviando os estereocílios. 3
O equilíbrio corporal, pelo qual o sistema vestibular é um dos responsáveis, é uma complexa interação entre o sensorial e o motor, que nos previne de quedas, permite-nos adotar posturas e realizar movimentos com harmonia. 4 Quando ocorre uma alteração vestibular, ocorrem sintomas de desequilíbrio, que, entre outros, a tontura é o mais comum e o que mais afeta a qualidade de vida do indivíduo. 5
Existem substâncias que possuem a capacidade de danificar ou perturbar o sistema vestibular, causando tontura. Elas influenciam negativamente o sistema, ocasionando perda da função vestibular ou lesão celular na orelha interna, e são chamadas de ototóxicas ou vestibulotóxicas. 6 O grau com que esta substância vai influenciar o indivíduo depende da predisposição individual, da dose administrada, do tempo de duração, da via de administração, da idade, da tendência familiar e/ou de eventual dano prévio à orelha interna. 7
Diversas substâncias ototóxicas vêm sendo estudadas, dentre elas antibióticos aminoglicosídeos, aspartame, ácido salicílico, medicações oncológicas, agrotóxicos, entre outros.
Os agrotóxicos tornaram-se objeto de investigação na linha de ototoxicidade a partir de pesquisas realizadas com produtores rurais, que apontaram a tontura e/ou vertigem como sendo um sintoma recorrente entre as queixas desta população. 8-12
Existem pesquisas que relatam a ação ototóxica e também o efeito neurotóxico de agrotóxicos. Este efeito se dá pela inibição das enzimas colinesterases, causando a interrupção da propagação do impulso nervoso para o organismo, dando origem a diversos sintomas e sinais clínicos. 13
A ototoxicidade de agrotóxicos foi constatada em pesquisa realizada com 59 trabalhadores rurais, dos quais 49,15% apresentaram alterações auditivas. 14 Em pesquisa realizada em uma comunidade rural com 33 trabalhadores, 54% destes relataram apresentar sintomas quando os agrotóxicos são aplicados nas lavouras próximas à comunidade onde residem; dentre os sintomas apresentados, a tontura é relatada por 12% da amostra. 15
Tais achados remetem à importância da investigação do sistema vestibular, por sua ligação direta com o sistema auditivo, levando ainda em consideração os achados de pesquisas que revelam sintomas clínicos associados ao sistema vestibular, como a tontura.
As pesquisas com seres humanos permitem a identificação dos sintomas, porém, não permitem a avaliação do impacto morfológico que estes sintomas causam no sistema vestibular do indivíduo. Por isso, o objetivo desta pesquisa foi analisar a histopatologia do sistema vestibular de cobaias expostas a organofosforados, identificando os efeitos destes compostos nesse sistema.
Esta pesquisa teve caráter experimental e foi submetida à Comissão de Ética em Experimentação Animal (CETEA) da FMRP-USP (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo), aprovada sob o protocolo número 135/2011, e está de acordo com os princípios éticos na experimentação animal adotados pelo Colégio Brasileiro de Experimentação Animal (COBEA).
No presente estudo, foram utilizadas 18 cobaias albinas adultas, machos, da espécie Cavia porcellus , selecionadas no biotério central da Biotério Central da Universidade de São Paulo, Campus Ribeirão Preto, com peso entre 300 e 500 gramas. Foram incluídas no estudo as que apresentaram reflexo de preyer presente, reflexo este avaliado por observação de pequenos movimentos de contratura do pavilhão auricular da cobaia, quando a mesma é estimulada com sons de pequena e média intensidades. Tal reflexo é utilizado para avaliar a função auditiva em roedores. 16 Na seleção inicial, as cobaias foram avaliadas e submetidas a otoscopia manual. Não foram incluídas no experimento aquelas que apresentaram sinais de otite externa e/ou média e perfuração timpânica.
Os animais foram mantidos no biotério do laboratório de cirurgia experimental do Departamento de Cirurgia e Anatomia da FMRP-USP (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo), em gaiolas coletivas, separadas de acordo com o grupo experimental, com maravalha, em regime claro/escuro de 12 horas, ração própria e água ad libitum .
Para realização do estudo, as cobaias foram divididas em três grupos, sendo o Grupo I o controle:
- Grupo I: cinco cobaias, com administração de água destilada intraperitoneal em dose única diária, no mesmo volume correspondente à dose de agrotóxico para o peso da cobaia, durante 10 dias.
- Grupo II: seis cobaias, com administração intraperitoneal de agrotóxico na dose única diária de 0,5 mg/kg/dia, durante 10 dias consecutivos.
- Grupo III: sete cobaias, com administração intraperitoneal de agrotóxico na dose única diária de 1mg/kg/dia, durante 10 dias consecutivos.
As 18 cobaias totalizavam 36 orelhas, considerando-se, assim, 36 sáculos e 36 utrículos.
O número de cobaias por grupo foi definido de acordo com as normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária 17 para realização de estudos toxicológicos, sendo o mínimo de cinco animais para cada dose testada no experimento.
O modelo experimental escolhido foi cobaia albina, pois, segundo estudo de Albuquerque, Rossato, Oliveira e Hyppolito, 18 este modelo se mostrou o melhor animal na etapa de microdissecção, em comparação com o rato. As vantagens deste modelo estão no tamanho e na rigidez do osso temporal, que permite uma melhor retirada do material anatômico para análise.
Para a intoxicação das cobaias, foi administrado o agrotóxico organofosforado Pyrinex 480 CE(r), produzido o pela Milenia Agrociências S. A. O Pyrinex 480 EC(r)é um inseticida organofosforado com ação de contato e ingestão, recomendado para o controle de pragas nas culturas de algodão, batata, café, citros, feijão, maçã, milho, soja, tomate rasteiro para fins industriais e trigo. O produto está registrado no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento − MAPA 19 sob nº 09298.
A dose do agrotóxico escolhido foi baseada na DL 50 oral para ratos do Pyrinex 480 CE(r), encontrada na bula do produto, que é de 300 mg/kg, e considerou as normas da ANVISA de não exceder 80% da DL 50. As cobaias tiveram seu peso controlado diariamente para o cálculo adequado da dose do agrotóxico a ser utilizada.
Para o manejo das cobaias e administração do agrotóxico foram utilizados os equipamentos de proteção individual recomendados na bula do produto.
Após 24 horas da última administração do agrotóxico, os animais foram anestesiados com Tionembutal (25 mg/kg) na dose 6 mg/kg de peso corporal, via intraperitoneal e eutanasiados pelo método de decapitação. Imediatamente após o sacrifício do animal, os ossos temporais contendo as bulas timpânicas foram removidos. As bulas timpânicas foram abertas, retirando-se em seguida os órgãos vestibulares.
Posteriormente à eutanásia, para dissecção microscópica, as peças anatômicas foram perfundidas com solução de fixação de glutaraldeído a 3 % e a 4°C, sendo mantidas na solução por 24 horas. Para fixação, através da janela redonda foi injetada uma solução de glutaraldeído a 3%, em tampão fosfato 0,1M, pH = 7,4, por 4 horas a 4°C, lavadas três vezes por 5 minutos com o mesmo tampão. Em seguida, foram fixadas com tetróxido de ósmio 1% por 2 horas, a 4°C e, a seguir, submetidas à desidratação.
A desidratação das estruturas foi realizada com banhos sucessivos de etanol em concentrações crescentes de 50, 70, 90 e 95% durante 10 minutos cada, em temperatura ambiente. A seguir, utilizou-se etanol a 100% em três banhos de 20 minutos cada, deixando-se as estruturas imersas no último banho em temperatura ambiente, por 12 horas. A secagem da água ainda presente nas amostras, após a desidratação, foi realizada com o equipamento BAL-TEC CPD 030 − Critical Point Dryer (Balzers, 40 Liechtenstein), através do processo de ponto crítico, sendo as amostras transferidas para a câmara do aparelho e recobertas por dióxido de carbono (CO2) líquido.
Para a adequada observação através da microscopia eletrônica de varredura (MEV), as peças dissecadas e parcialmente preparadas foram fixadas em um porta-espécime cilíndrico de metal com pasta condutiva de carbono, Colloidal Graphite ( Electron Microscopy Sciences − Hatfield, PA). As estruturas foram cobertas por uma camada fina de ouro 24 quilates, através do processo de vaporização, com o equipamento BAL-TEC − SCD 050 − Sputter Coater (Balzers, Liechtenstein), tornando-se eletricamente condutivas.
A análise morfológica das estruturas vestibulares foi realizada através da microscopia eletrônica de varredura no microscópio eletrônico JEOL Scanning Electron Microscope - JSM 5200. Procedeu-se o registro fotográfico das imagens com um aumento de 3.500 vezes. Após o registro fotográfico, as imagens foram transferidas para o software IMAGE J(r), para processar a avaliação.
Foi realizada uma avaliação microscópica dos tufos ciliares das máculas do sáculo e do utrículo, bilateralmente para cada animal incluso no experimento. Esta avaliação se deu por meio da contagem do número de tufos ciliares na região da estríola presentes por campo fotográfico. O aumento de 3.500 vezes foi padronizado para todas as fotografias.
Para a análise estatística, foi obtida a média ponderada do número de tufos de estereocílios presentes em cada orelha. Os órgãos vestibulares que apresentaram à MEV artefatos que pudessem interferir na contagem dos tufos ciliares, como lesões das estruturas durante a dissecção ou montagem do material, foram excluídos do estudo.
Os dados encontrados foram tratados estatisticamente através do programa Statística, versão 9.0, considerando-se um nível de significância de 5%. A normalidade dos dados foi aferida pelo teste de Lilliefors. Foi realizada a análise descritiva dos dados. Conforme o resultado do teste de normalidade, os dados normais foram comparados entre grupos pelo teste ANOVA one-way, e os dados não normais foram comparados através do teste de Kruskal-Wallis.
Ao final das análises, seis sáculos e três utrículos foram perdidos, os quais foram considerados nos itens "n" das tabelas.
O teste de Lilliefors acusou normalidade para os dados da variável sáculo e não normalidade para a variável utrículo. Foi realizada a análise descritiva dos dados para o número de tufos ciliares do sáculo e do utrículo nos grupos I, II e III, conforme tabela 1 .
Tabela 1 Comparação dos valores médios do número de tufos ciliares do sáculo e do utrículo entre os Grupos I, II e IIIa
Grupo | Média | Mínimo | Máximo |
G I | |||
Sáculo (n = 9) | 25,44 ± 6,50 | 14,00 | 35,00 |
Utrículo (n = 10) | 24,86 ± 3,51 | 17,00 | 28,00 |
G II | |||
Sáculo (n = 9) | 26,70 ± 5,54 | 20,00 | 38,00 |
Utrículo (n = 11) | 26,45 ± 4,50 | 18,00 | 34,00 |
G III | |||
Sáculo (n = 12) | 31,41 ± 5,35 | 22,50 | 42,00 |
Utrículo (n = 12) | 27,97 ± 3,77 | 23,66 | 37,50 |
n, número de sáculo e de utrículo.
aOs dados foram apresentados como a média ± desvio padrão.
Para comparar os dados intergrupos, para a variável sáculo foi realizado o teste ANOVA one-way que resultou em p = 0,0569, demonstrando não haver diferença entre os valores dos grupos I, II e III para a variável testada. Já para a variável utrículo, a comparação entre os grupos foi analisada através do teste de Kruskal-Wallis, que apresentou como resultado p = 0,8958, revelando não haver diferença entre os grupos.
Os resultados dos testes comparativos entre o grupo controle e as diferentes doses de agrotóxico organofosforado testadas não causaram danos histopatológicos àss células ciliadas do sáculo e do utrículo das cobaias envolvidas neste estudo, durante o período de dez dias, quando analisadas pela MEV (ver figuras 1 - 6 ).
A média do grupo I foi menor do que dos demais, mas não é possível afirmar que houve diferença significativa entre eles, pois as médias dos grupos II e III estão de acordo com os valores médios encontradas por outros autores, que realizaram MEV em cobaias, utilizando em seus grupos controles água destilada durante 30 dias, e outro soro fisiológico durante dez dias. 20,21 Os resultados da presente pesquisa não evidenciaram diferença estatística significativa entre o número de tufos ciliares dos grupos de cobaias intoxicadas com as diferentes doses de organofosforado. Isso corrobora com os resultados de outros pesquisadores, que avaliaram o sistema vestibular de cobaias intoxicadas por organofosforados durante sete dias, nas doses de 0,3 e 3 mg/kg/dia, e que encontraram alterações ciliares nos sáculos e utrículos. 22 Convém ressaltar que a referida pesquisa utilizou doses e princípio ativo diferentes da atual.
Os danos morfológicos em animais expostos a organofosforados vêm sendo amplamente pesquisados. Estudo que avaliou de forma aguda os efeitos de um organofosforado no sistema nervoso observou alteração estrutural no cerebelo, caracterizada por apoptose nas células de Purkinje e dano estrutural ao citoesqueleto dos animais sobreviventes. 23 Em pesquisa que avaliou os efeitos crônicos no SNC de animais intoxicados por organofosforado, foi observada a hipertrofia da camada molecular do córtex cerebral, e que pode levar à perda ou afilamento das ramificações neurais, 24,25 porém, este não foi o objetivo de nossa pesquisa, que avaliou tufos ciliares em células sensoriais das máculas do sáculo e do utrículo.
Pesquisa realizada com trabalhadores rurais que entraram em contato com organofosforado clorpirifós e posteriormente realizaram testes para avaliação sensoriomotora demonstraram alterações, principalmente, nas medidas de oscilação postural com os olhos fechados e em superfície macia. Este resultado sugere um efeito subclínico envolvendo os sistemas proprioceptivo e vestibular. 10
Avaliação funcional através da vectoeletronistagmografia de trabalhadores expostos a organofosforados revelou que a maior parte dos sujeitos apresentou alteração do tipo disfunção vestibular periférica irritativa. 9 Isto evidencia que o agrotóxico organofosforado tem potencial neuro-ototóxico, porém, ainda não é possível afirmar qual a dose e o tempo de exposição seguros para estes compostos não causarem danos à saúde.
Estudos funcionais comprovaram que a intoxicação por agrotóxico causa tontura e/ou vertigem em trabalhadores expostos a estes compostos, 8,10 porém, ainda não foi possível elucidar a origem morfológica específica deste sintoma, nem mesmo se existe uma causa única ou se esta seria multifatorial.
Ainda são necessários estudos que possam determinar as doses e o tempo de exposição seguros para os agrotóxicos organofosforados. Portanto, vale ressaltar que, em qualquer dose a ser utilizada e em eventual contato com estes compostos, devem ser utilizados equipamentos de proteção individual indicados para tal. A não avaliação dos canais semicirculares foi uma limitação do nosso estudo e deve ser considerada em outras pesquisas. A delicadeza da peça anatômica foi o fator que impediu a avaliação dos mesmos.
A análise histopatológica do sistema vestibular de cobaias expostas de forma aguda ao agrotóxico organofosforado não demonstrou diferença para a quantidade de tufos ciliares nas máculas dos sáculos e dos utrículos nas doses testadas neste experimento. Vale ressaltar que o resultado para a variável sáculo é limítrofe, indicando que estudos com valor maior de "n" podem demonstrar significância.