versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.14 no.4 São Paulo out./dez. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082016ao3396
As lesões traumáticas na junção craniocervical (JCC) afetam principalmente adultos jovens, causando grandes consequências físicas, psicológicas e sociais. A incidência desse tipo de lesão vem aumentando devido ao crescimento do número de acidentes de trânsito, enquanto a mortalidade tem caído principalmente devido à melhora do tratamento inicial.(1-3)
As lesões traumáticas da JCC caracteristicamente envolvem a base do crânio, o atlas e o áxis.(3) Tais lesões apresentam baixa prevalência quando comparadas com lesões de outros segmentos da coluna e demonstram características únicas devido à estruturas ósseas e ligamentares complexas responsáveis pela manutenção da estabilidade da região.(2)
O tratamento destas lesões tem o objetivo de prevenir lesões neurológicas e restaurar a estabilidade da coluna.(2,4,5) Inúmeros sistemas de classificação foram elaborados para guiar o tratamento, como o proposto por Anderson et al., para fraturas do processo odontóide;(6)por Effendi et al., para fraturas de elementos posteriores do arco do eixo;(7) e por Traynelis, para luxação traumática atlantoaxial-occipital.(8) Alguns sistemas clássicos foram propostos anteriormente ao advento da tomografia computadorizada (TC) e da ressonância magnética (RM), não garantindo uma caracterização morfológica detalhada de tecidos ósseos e neurais, quando comparados com os novos métodos radiológicos. Mais importante, a falta de diretrizes mais claras e compreensíveis contribuem prolongar o processo de decisão entre a adoção de tratamentos conservadores versus cirúrgicos.
Avaliar a correlação entre o tratamento, as características das lesões e o resultado clínico em pacientes com lesões traumáticas na junção craniocervical.
Foi analisada uma série de casos de pacientes com trauma na JCC tratados entre 2010 e 2013 no Hospital da Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP). Foram excluídos pacientes menores de 18 anos, com prontuário incompleto e com fraturas patológicas.
Os dados clínicos e radiológicos foram avaliados para classificar os traumas de acordo com estado neurológico do paciente, morfologia das lesões e tratamento a que foi submetido (conservador versus cirúrgico). O tratamento foi realizado de acordo com algoritmo institucional (Figura 1). Lesões ligamentares foram encaminhadas para fixação cirúrgica precoce, enquanto as fraturas sem lesões ligamentares foram tratadas de acordo com cada característica da lesão (somente fraturas na base do dente do áxis com fatores de risco para não consolidação foram encaminhados para tratamento cirúrgico precoce). Os pacientes foram seguidos ambulatorialmente por meio de TC e radiografias simples.
Fonte: Joaquim et al.(10)
Figura 1 Fluxograma de decisão de tratamento de pacientes com lesões na junção craniocervical (sugestão de tratamento)
Os dados epidemiológicos foram apresentados de forma descritiva e comparados com a literatura. Dados específicos foram analisados utilizando o software IBM Statistical Package for Social Sciences (SPSS) versão 21 for Windows®.
A análise dos grupos, em relação às variáveis categóricas, utilizou o teste exato de Fisher. Para comparar os grupos em relação às variáveis numéricas utilizou-se o teste não paramétrico de Mann-Whitney. O nível de significância considerado foi de p≤0,05.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, protocolo 574.524, CAAE: 24566614.4.0000.5404. Não foi necessário o Termo de Consentimento.
Foram incluídos no estudo 43 pacientes com trauma na coluna na JCC. Destes, seis pacientes foram excluídos: dois por prontuários incompletos, um por óbito precoce (lesão aguda de crânio) anterior a qualquer tratamento e três por terem menos de 18 anos. A amostra final incluiu 37 pacientes.
Dentre os pacientes, 27 (72,9%) eram homens. A variação etária foi de 20 a 93 anos (média de 41,70; desvio padrão de 37±16,72 anos).
Os acidentes de trânsito foram a principal causa de trauma na coluna (59,4%), seguidos das quedas (27,03%).
Incialmente, 24 pacientes (64,9%) foram submetidos a tratamento conservador com colar cervical rígido (Philadelphia) e 12 (32,4%) foram submetidos a tratamento cirúrgico. Um paciente (2,7%) apresentou lesão cerebral traumática grave e foi encaminhado para tratamento tardio em nossa instituição, com luxação C1-C2 não diagnosticada no serviço anterior. Os pacientes foram submetidos a tratamento cirúrgico precoce quando apresentavam fatores de risco para não consolidação da fratura, conforme o algoritmo na figura 1.
Durante o surgimento, sete pacientes inicialmente submetidos a tratamento conservador (29,2%) foram submetidos a cirurgia devido à falta no tratamento (não consolidação no TC após e dor no local da fratura). Desses pacientes seis apresentaram fratura do odontóide tipo II (todos sem fatores de risco para não consolidação e um não apresentou consolidação da fratura nos elementos posteriores de àxis. Nenhum destes sete pacientes apresentou déficit neurológico tardio.
Dos 24 pacientes inicialmente submetidos a tratamento conservador (Tabela 1 e Figura 2), cinco eram mulheres (20,8%) e 19 homens (79,1%). A idade variou de 21 a 93 anos (média de 42,5 anos, desvio padrão ±17,25).
Tabela 1 Classificação de pacientes que receberam tratamento inicial conservador
Descrição da lesão | n (%) |
---|---|
Fratura do odontóide | |
Tipo II (baixo risco de não consolidação) | 7 (29,2) |
Tipo III | 1 (4,2) |
Fratura de Hangman | |
Tipo I | 2 (8,3) |
Tipo II | 3 (12,5) |
Fratura condilar occipital | |
Tipo I | 2 (8,3) |
Tipo II | 2 (8,3) |
Fratura de massa lateral de C1 | 1 (4,2) |
Fratura do arco posterior de C1 | 1 (4,2) |
Fratura do corpo de C2 | 2 (8,3) |
Fraturas múltiplas | |
Hangman tipo I + arco posterior de C1 | 3 (12,5) |
Condilar do tipo I + faceta de tipo C2 | |
Arco anterior de C1 + corpo C2 |
Figura 2 Fratura combinada de C1 e C2, tratamento conservador. Linha 1: imagens de tomografia computadorizada de fraturas antes do tratamento. (A) coronal, (B) axial, (C) sagital. Linha 2: fraturas consolidadas após oito semanas. (D) coronal, (E) axial e (F) sagital
Foram observadas fraturas em única vertebra em 21 pacientes (87,5%). Três pacientes apresentaram fraturas múltiplas na coluna (12,5%). Dentre eles, um (4,2%) apresentou fraturas em C1 e C2. Em dois pacientes (8,3%), ocorreu trauma em outros segmentos da coluna, além de lesões da JCC (T3-T4 e L12).
Nenhum destes pacientes apresentou déficit neurológico devido à lesão da JCC. Um paciente apresentou déficit neurológico por lesão na coluna torácica. Não se observaram óbitos durante o seguimento, nem deterioração neurológica tardia. Todos os pacientes foram seguidos por um período mínimo de 8 semanas.
Entre os pacientes submetidos a tratamento conservador inicial, sete realizaram cirurgia subsequente devido à falha no tratamento inicial. Entre eles, cinco eram homens (71,4%). A distribuição etária foi de 23 a 64 anos, média foi de 36,5 anos e desvio padrão de ±12,95. Nenhum dos pacientes apresentou déficit neurológico.
Em nossa série, dos sete pacientes com fraturas do odontóide tipo II inicialmente submetidos a tratamento conservador, seis realizaram cirurgia subsequente devido à não consolidação da fratura. Apesar do tratamento conservador ter sido aceito pelos pacientes como sem fatores de risco para não consolidação, observou-se que a consolidação adequada não ocorreu em 83% dos casos (Figura 3). A alta taxa de falha do tratamento conservador para fraturas do odontóide tipo II nos levou a correlacionar a não consolidação da fratura com o tratamento conservador (p=0,001) (Tabelas 2 a 4)
Tabela 2 Fraturas em pacientes com falha no tratamento conservador
Lesão | Número total | Não cicatrização | (%) |
---|---|---|---|
Fratura do odontóide tipo II | 7 | 6 | 25* |
Fratura de Hangman tipo II | 3 | 1 | 4,2† |
Outras lesões | 14 | 0 | 0 |
* 85,7% de pacientes com fratura do odontóide tipo II tratados de maneira conservadora; † 33,3% de pacientes com fratura de Hangman tipo II tratados de maneira conservadora.
Tabela 3 Fatores de risco relacionados ao tratamento realizado
Número de fatores de risco | Procedimentos terapêuticos | Total | Valor de p* | ||
---|---|---|---|---|---|
| |||||
Cirurgia recente | Conservador | Cirurgia após falha do tratamento conservador | |||
Nenhum | 0 | 1 (100) | 6 (100) | 7 (50) | 0,001† |
Um | 5 (71) | 0 | 0 | 5 (36) | |
Dois | 2 (29) | 0 | 0 | 2 (14) |
* Teste exato de Fischer; † p<0,01.
Tabela 4 Resultados da tomografia computadorizada versus grupo de tratamento de fratura do odontóide tipo II
Resultados | Grupos | Total | Valor de p* | |
---|---|---|---|---|
| ||||
Cirurgia anterior | Conservador | |||
Sucesso | 7 (100) | 1 (14) | 8 (57) | 0,005 |
Não consolidação | 0 | 5 (71) | 5 (36) | |
Não consolidação e desvios | 0 | 1 (14) | 1 (7) | |
| ||||
Total | 7 (100) | 7 (100) | 14 (100) |
* Teste exato de Fischer; p<0,01.
Figura 3 Fratura odontóide tipo II, falha no tratamento conservador. (A e B) fratura não cominutiva e sem desvio em paciente com idade de 37 anos, (C e D) tomografia computadorizada mostrando não consolidação após oito semanas de tratamento conservador e (E e F) resultado após artrodese posterior de C1-C2
Dois pacientes apresentaram complicações cirúrgicas (16,6%). Houve um caso de fístula tratada no intra-operatório, e outro de infecção de sítio cirúrgico que necessitou de debridamento cirúrgico e antibioticoterapia.
Entre os 12 pacientes inicialmente tratados com cirurgia, somente um deles apresentou déficit neurológico no pré-operatório (melhora na escala ASIA C para D durante o seguimento). Não observou piora neurológica ou óbito.
Todos os pacientes foram seguidos por um período entre oito semanas e seis meses.
A lesão encontrada com maior frequência em nossa série foi fratura do odontóide, totalizando 15 pacientes (40,54%). Entre eles, 14 tiveram suas fraturas classificadas de acordo com Anderson et al., como de tipo II (envolvendo a base do processo odontóide) e um como de tipo III (envolvendo o corpo do áxis).(6) Sete casos foram encaminhados para tratamento cirúrgico precoce por fatores associados com alto risco de não consolidação.(9,10) O restante dos pacientes foi tratado com imobilização utilizando colar cervical de Philadelphia.
Clark et al.,(11) relataram o tratamento com imobilização de fraturas do odontóide dos tipos II e III como essencial para alcançar a consolidação. Porém, a taxa de consolidação nas fraturas do tipo II por meio do tratamento conservador é de cerca de 43%, diferente das fraturas do tipo III, em que a consolidação é observada em quase 87% dos casos.(11)
Traynelis et al.,(12) na maior série já publicada sobre fraturas do áxis, que incluiu 340 casos (199 fraturas do odontóide) tratados com halo vest, relataram 100% de consolidação em fraturas do tipo I e 82% do tipo III. Nas fraturas do tipo II, o tratamento não cirúrgico falhou em 28% dos casos, com até 84% no caso de deslocamento de fragmento fraturado maior do que 6mm. Sugere-se que pacientes com luxação por fratura maior do que 6mm deveriam realizar tratamento cirúrgico precoce.
Em pacientes com indicação cirúrgica, a instrumentação posterior tem mostrado altas taxas de artrodese.(13-15) Em revisão da literatura conduzida por Julien et al.,(13) 147 pacientes foram analisados retrospectivamente com fraturas dos tipos II e III, obtendo 87% de cicatrização em fraturas do tipo II e 100% no tipo III tratadas com fixação posterior.
Alternativamente, para pacientes com boa qualidade óssea e baixo risco de disfagia no pós-operatório, a fixação por meio da abordagem anterior utilizando parafusos de odontóide é uma opção razoável, com taxas de consolidação entre 89% a 100%. Esta técnica tem a vantagem de preservar a mobilidade da articulação atlantoaxial, mas é contraindicada em fraturas crônicas.(9,10)
Em pacientes idosos, com mais de 60 anos, diversos autores(13,16) sugerem que o tratamento das fraturas com imobilização externa não é uma boa opção, uma vez que as taxas de consolidação são em geral menores do que 30%. Em em nosso estudo, os pacientes que não alcançaram sucesso com o tratamento conservador apresentavam média de idade menor (36,5 anos) quando comparados com todo o grupo que foi tratado de modo conservador (42,5 anos).
Em relação ao uso de imobilização com colar cervical Philadelphia ou halo vest, Lewis et al.(17) avaliaram 67 pacientes com fraturas do odontóide, sendo 32 tratados com colar cervical Philadelphia e 37 com halo vest. A consolidação após 3 meses foi de 60% no grupo com halo vest versus 35% no grupo com colar cervical. Observaram-se maiores complicações clínicas nos pacientes tratados com halo vest – 60% versus 6% para o grupo que utilizou o colar cervical Philadelphia. Apesar das diferenças na consolidação, não observou-se diferença estatística significativa, levando os autores a concluírem que não há vantagem de uma forma imobilização comparada a outra.(18)
Apesar da alta taxa de falha do tratamento conservador, devido à sua relativa baixa morbidade, este ainda permanece como uma opção de tratamento, uma vez que o paciente é informado sobre a possibilidade de procedimento cirúrgico posterior, bem como da importância do seguimento clínico e radiológico. Após a análise de nossos resultados, atualmente oferecemos a cirurgia para fraturas do odontóide tipo 2, mesmo sem fatores de risco para não consolidação, com explicação dos riscos e dos benefícios do tratamento conservador ou cirúrgico. Apesar de atualmente incentivarmos a fixação cirúrgica, os pacientes também devem registrar sua opinião sobre o tratamento que é oferecido.
A segunda lesão mais prevalente em nossa série foi a espondilolistese do áxis, também conhecida como lesão de elementos posteriores do áxis ou fratura de Hangman. Nove casos (24,32%) foram observados em nossa série.
O tratamento das fraturas dos elementos posteriores do áxis é relativamente bem estabelecido.(19,20) É primariamente não cirúrgico e preferencialmente tratado com colar cervical rígido, com a cirurgia reservada aos casos de não consolidação ou deformidade, ou de fraturas classificadas como Levine tipo III. Este último apresenta luxação facetaria C2-C3 e lesões ligamentares que foram tratadas, preferencialmente, por meio de cirurgia na maioria das séries já publicadas.(20,21) A fixação anterior ou posterior C2-C3 pode ser utilizada de acordo com as preferências do cirurgião e com base nas características das lesões.(9,19,20)
Fraturas do côndilo occipital foram diagnosticadas em seis (16,22%) pacientes. A fratura do côndilo é provavelmente subdiagnosticada por conta de sua apresentação clínica variável e pela ausência de sinais específicos ao exame físico. Esta fratura também é associada com trauma craniano grave.(21,22)
Saternus(22) em estudo envolvendo vítimas de acidentes com mecanismos de lesão compatível com fratura de côndilo, relataram incidência 16% de fraturas. Uma revisão de literatura conduzida pela American Association of Neurological Surgeons(22,23) concluiu que não tratar as fraturas do côndilo é inaceitável. Esta revisão identificou 23 pacientes que não receberam tratamento: 9 deles não apresentaram déficit neurológico durante o seguimento. Outros seis desenvolveram déficit tardio, como vertigem e nistagmo. Em geral, com exceção de fraturas bilaterais associadas com luxação atlanto-occipital, as fraturas do côndilo podem ser tratadas com sucesso por meio do colar cervical rígido.(10,22-24)
Em nossa série, um paciente teve fratura bilateral do côndilo associada com luxação occipital C1 e C1-C2, sendo submetido à fixação occipital C2-C3. Outro caso de fratura do côndilo associada com fratura de massa lateral de C1, da mesma forma que os outros quatro casos de fratura unilateral do côndilo, foi tratado de modo conservador com colar cervical rígido. Nenhum dos pacientes apresentou déficits neurológicos nem piora durante o seguimento.
As fraturas do atlas ocorrem isoladas ou associadas com outras fraturas. Elas representam cerca de 1 a 2% das fraturas da coluna e de 13 a 22% das fraturas da coluna cervical.(21,23,25) Essas fraturas podem comprometer o arco anterior e posterior, a massa lateral e o processo transverso. Além disso, podem estar associadas com lesões ligamentares. Thakar et al.,(26) em série prospectiva com fraturas do C1 tratadas com colar Philadelphia e halo vest, relataram 94% de bons resultados sem a necessidade de intervenção cirúrgica.
As fraturas do corpo do áxis (não Hangman) formam um pequeno grupo. Hadley et al.,(23) relataram resultados excelentes com o tratamento conservador, além da indicação da cirurgia para casos de fratura tipo explosão ou no caso de outras lesões associadas.
Em nossa série, observou-se um caso de fratura de C1 com luxação facetária, que foi tratado cirurgicamente. As outras lesões foram tratadas com sucesso de modo conservador por meio da imobilização com colar cervical. Nenhum paciente apresentou déficit neurológico ou piora do quadro durante o seguimento.
É importante ressaltar a limitação de nosso estudo devido à sua natureza retrospectiva e por não abordar outras variáveis de confusão que poderiam afetar a consolidação das fraturas como, por exemplo, o tabagismo. Além disso, nossa amostra reduzida requer cautela na interpretação da análise estatística.
Em nossa série de lesões traumáticas na junção craniocervical, as fraturas do odontóide e dos elementos posteriores do áxis foram as lesões mais prevalentes.
Os pacientes com lesão ligamentar foram tratados com sucesso por meio de cirurgia, enquanto outros com fraturas ósseas isoladas foram preferencialmente tratados com colar cervical rígido. Nossos resultados sugerem que a cirurgia precoce nas fraturas do odontóide tipo II deve ser considerada devido à alta taxa de não consolidação, mesmo quando os fatores associados ao risco de não consolidação estão ausentes.