versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.42 no.6 São Paulo nov./dez. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/s1806-37562016000000054
A tuberculose é uma doença infecciosa causada pelo Mycobacterium tuberculosis e se mantém como uma prevalente doença infectocontagiosa em países pouco desenvolvidos. Apesar de haver tratamento e meios de prevenção, anualmente são notificados globalmente cerca de 9 milhões de novos casos. O Brasil encontra-se como um dos 22 países que concentram 80% da carga mundial de tuberculose, com aproximadamente de 4,5 mil óbitos anuais pela doença. Apenas em 2009, notificaram-se 72 mil casos novos, correspondendo a um coeficiente de incidência de 38/100.000 habitantes.1 Tais dados demonstram a gravidade da tuberculose no Brasil.
O M. tuberculosis é transmitido a partir da eliminação de bacilos por via respiratória e sua infectividade está diretamente relacionada ao estado imunológico do contactante.2) Dentre os fatores que contribuem para a transmissão e a manifestação da tuberculose, destacam-se aglomerados urbanos, más condições sanitárias, pouco acesso aos serviços de saúde, nutrição inadequada e presença de outras doenças, como alcoolismo, diabetes e, principalmente, infecção pelo HIV.1 Dessa forma, populações socioeconomicamente prejudicadas são as que têm maior risco de contrair tuberculose.
Na década de 80, com o advento da AIDS no mundo, a situação da tuberculose voltou a se agravar. A presença do HIV alerta para a transformação da tuberculose de uma doença endêmica para epidêmica. A coinfecção tuberculose-HIV tem aumentado e está mudando os aspectos epidemiológicos e prognósticos da tuberculose.1,3,4 A taxa de mortalidade por tuberculose aumenta de 2,4 a 19 vezes em pacientes com coinfecção tuberculose-HIV quando comparados a pacientes HIV negativos.5 Ademais, a análise feita por Jamal et al.6 sobre a relação entre tuberculose e HIV no Brasil destacou que o risco de desenvolver tuberculose é de 10% ao ano para indivíduos HIV positivos, enquanto, para pacientes HIV negativos, tal risco é de 10% ao longo da vida.
Em função dos dados clínico-epidemiológicos, a Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1993, tornou a tuberculose prioridade nas políticas de Saúde. No Brasil, três anos antes, o Ministério da Saúde (MS) já havia lançado o Plano Emergencial para o Controle da Tuberculose, no qual se recomenda a implantação de um tratamento supervisionado, pioneiro em todo o mundo.7) Em 2003, o MS instituiu a doença como uma das cinco prioritárias de controle do país, inserindo-a em diversos planos de ação, tais como Pacto pela Vida, Mais Saúde e Programação das Ações de Vigilância em Saúde, e reunindo as informações e os esforços no Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT). Dentre os principais objetivos do PNCT estão o estabelecimento da meta de curar 85% dos doentes e ter uma incidência abaixo de 25,6 casos por 100.000 habitantes até 2015, além de diminuir a taxa de abandono ao tratamento e evitar o surgimento de bacilos resistentes para, assim, possibilitar o efetivo controle da tuberculose no país.8,9
Tendo em vista a importância epidemiológica da tuberculose e a carência de análises recentes dos dados disponibilizados pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), torna-se imprescindível descrever a situação da tuberculose no Brasil e sua relação com o HIV. Tais estudos são subsídios para que novas diretrizes sejam traçadas. Assim, o presente estudo avaliou a evolução da tuberculose e da coinfecção tuberculose-HIV no Brasil, sob diferentes variáveis clínico-epidemiológicas, entre os anos 2002 e 2012, através de dados obtidos no SINAN.
Realizou-se um estudo observacional de série temporal, no período entre 2002 a 2012, no qual foram analisados dados secundários coletados diretamente do SINAN, através do banco nacional de dados do Sistema Único de Saúde. A variável dependente representou a taxa de incidência de tuberculose e da coinfecção tuberculose-HIV no período analisado, calculada utilizando-se o número de casos novos notificados ou registrados como "não sabe" por ano de diagnóstico, segundo orientado pelo SINAN, dividido pelo número de habitantes no mesmo período por local de residência, utilizando a constante 100.000. O número de habitantes por região foi obtido através de dados derivados dos censos de 2000 e 2010 e estimativas intercensitárias, disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Considerou-se portador de HIV apenas a categoria notificada como HIV positivo. As variáveis independentes coletadas incluíram gênero (masculino e feminino), faixa etária (0-9; 10-19; 20-39; 40-59 e ≥ 60 anos), situação de encerramento (cura, abandono, óbito por tuberculose e tuberculose multirresistente) e região de residência (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste).
Os dados foram sumarizados através de medidas de incidência, de tendência central e de crescimento, assim como proporções. Os dados foram tabulados em uma planilha eletrônica Microsoft Excel (versão 2010) e posteriormente analisados através do programa estatístico Graphpad Prism, versão 5.0 (GraphPad Inc., San Diego, CA, EUA). Um modelo de regressão linear generalizada de Prais-Winsten foi utilizado para analisar as tendências de crescimento na série temporal. Tal procedimento permitiu avaliar as variações como crescentes, decrescentes ou estáveis, a partir da análise da medida de crescimento e do nível de significância (p < 0,05). A variação total foi calculada como a diferença, em proporção, do valor da incidência em 2002 com a de 2012. Além disso, para analisar a associação entre as variáveis categóricas utilizou-se a medida razão de chances e o teste do qui-quadrado. Para todos os testes considerou-se um nível de significância de 95%.
A Tabela 1 expõe os dados, obtidos através do SINAN, da incidência bruta e relativa de tuberculose e de coinfecção tuberculose-HIV, além da relação entre as duas incidências. No período estudado, houve uma diminuição na incidência de tuberculose, tanto em números absolutos quanto por 100.000 habitantes. A variação total para os casos de tuberculose diminuiu em 9,66%, enquanto a incidência relativa decresceu em 18,66%. Ao analisar-se o número de casos notificados de coinfecção tuberculose-HIV, percebe-se um aumento de 15,19%, enquanto a incidência por 100.000 habitantes eleva-se em quase 4%. Não obstante, a relação coinfecção tuberculose-HIV/tuberculose aumentou em 27,51% no período analisado, indicando crescente importância do HIV na epidemiologia da tuberculose.
Ano | TB | TB-HIV | TB-HIV/TB, % | ||
---|---|---|---|---|---|
Incidência bruta | Incidência/ 100.000 hab | Incidência bruta | Incidência/ 100.000 hab | ||
2002 | 77.507 | 44,38 | 5.943 | 3,40 | 7,67 |
2003 | 78.599 | 44,44 | 6.068 | 3,43 | 7,72 |
2004 | 77.691 | 43,38 | 5.835 | 3,26 | 7,51 |
2005 | 76.751 | 41,67 | 5.841 | 3,17 | 7,61 |
2006 | 71.831 | 38,46 | 6.162 | 3,30 | 8,58 |
2007 | 71.629 | 37,83 | 6.398 | 3,38 | 8,93 |
2008 | 73.427 | 38,72 | 6.630 | 3,50 | 9,03 |
2009 | 72.895 | 38,07 | 6.771 | 3,54 | 9,29 |
2010 | 71.390 | 37,42 | 7.037 | 3,69 | 9,86 |
2011 | 73.168 | 38,03 | 7.150 | 3,72 | 9,77 |
2012 | 70.023 | 36,10 | 6.846 | 3,53 | 9,78 |
Variação total, % | −9,66 | −18,66 | 15,19 | 3,82 | 27,51 |
p | < 0,05 | < 0,05 | < 0,05 | < 0,05 | < 0,05 |
TB: tuberculose; e hab: habitantes.
A Tabela 2 apresenta a incidência de tuberculose e da coinfecção tuberculose-HIV por 100.000 habitantes por gênero nos anos avaliados. Percebeu-se uma redução da incidência de tuberculose tanto em homens (−14,52%) quanto em mulheres (−25,41%). Porém, a incidência da coinfecção tuberculose-HIV aumentou quase 8% em mulheres, 5,4% a mais do que o encontrado para o sexo masculino, evidenciando a feminização do HIV.
Ano | Incidência de tuberculose/100.000 hab | Incidência de tuberculose-HIV/100.000 hab | ||
---|---|---|---|---|
Masculino | Feminino | Masculino | Feminino | |
2002 | 57,64 | 31,44 | 4,93 | 1,92 |
2003 | 57,69 | 31,58 | 4,92 | 1,99 |
2004 | 56,64 | 30,50 | 4,64 | 1,92 |
2005 | 54,66 | 29,04 | 4,49 | 1,89 |
2006 | 50,48 | 26,80 | 4,67 | 1,97 |
2007 | 50,33 | 25,75 | 4,84 | 1,97 |
2008 | 51,69 | 26,19 | 4,96 | 2,08 |
2009 | 50,91 | 25,67 | 5,00 | 2,12 |
2010 | 50,52 | 24,86 | 5,27 | 2,17 |
2011 | 51,58 | 25,04 | 5,34 | 2,16 |
2012 | 49,27 | 23,45 | 5,05 | 2,07 |
Variação total, % | −14,52 | −25,41 | 2,43 | 7,81 |
p | < 0,05 | < 0,05 | < 0,05 | < 0,05 |
hab: habitantes.
A Tabela 3 exibe a incidência de tuberculose e da coinfecção tuberculose-HIV por faixa etária nos anos analisados. Houve significância estatística apenas nas faixas de 0-9 anos e 40-59 anos para a incidência de tuberculose. Percebe-se uma expressiva redução de 31% na faixa dos 0-9 anos, contrastando com os quase 11% de aumento em pessoas com 40-59 anos. O panorama inverte-se quando analisamos o comportamento da coinfecção tuberculose-HIV. Nota-se uma redução apenas na faixa etária de 0-9 anos (36,36%), enquanto houve aumentos expressivos nas outras faixas etárias: mais de 50% na faixa de 10-19 anos, 11,32% na de 20-39 anos e acima de 76% na de 40-49 anos. Vale destacar que o dado mais marcante foi o incremento de 209% da incidência da coinfecção tuberculose-HIV em pessoas acima de 60 anos.
Ano | Incidência de tuberculose/100.000 hab | Incidência de tuberculose-HIV/100.000 hab | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Faixa etária, anos | Faixa etária, anos | |||||||||
0-9 | 10-19 | 20-39 | 40-59 | ≥ 60 | 0-9 | 10-19 | 20-39 | 40-59 | ≥ 60 | |
2002 | 6,28 | 18,78 | 102,31 | 70,79 | 29,12 | 0,33 | 0,32 | 11,51 | 5,00 | 0,32 |
2003 | 5,96 | 18,31 | 102,22 | 71,76 | 29,28 | 0,27 | 0,33 | 11,17 | 5,50 | 0,37 |
2004 | 5,40 | 17,43 | 99,96 | 70,77 | 28,43 | 0,33 | 0,37 | 10,32 | 5,36 | 0,38 |
2005 | 5,07 | 16,62 | 95,25 | 68,63 | 27,63 | 0,25 | 0,29 | 9,83 | 5,52 | 0,41 |
2006 | 4,52 | 13,85 | 87,34 | 65,05 | 25,73 | 0,31 | 0,37 | 9,52 | 6,18 | 0,59 |
2007 | 4,78 | 15,69 | 95,74 | 69,54 | 27,66 | 0,22 | 0,38 | 10,79 | 7,12 | 0,61 |
2008 | 4,45 | 16,16 | 96,73 | 70,37 | 28,14 | 0,22 | 0,47 | 10,74 | 7,10 | 0,68 |
2009 | 4,62 | 16,12 | 100,81 | 73,23 | 28,25 | 0,24 | 0,50 | 11,24 | 7,82 | 0,89 |
2010 | 4,59 | 17,32 | 100,52 | 74,20 | 32,42 | 0,23 | 0,50 | 11,57 | 8,19 | 0,93 |
2011 | 4,68 | 18,41 | 112,27 | 82,32 | 33,78 | 0,24 | 0,60 | 13,49 | 9,54 | 0,90 |
2012 | 4,32 | 17,40 | 106,12 | 78,34 | 31,37 | 0,21 | 0,49 | 12,80 | 8,83 | 0,99 |
Variação total, % | −31,21 | −7,35 | 3,72 | 10,67 | 7,73 | −36,36 | 53,13 | 11,21 | 76,60 | 209,38 |
p | < 0,05 | 0,73 | 0,24 | < 0,05 | 0,06 | < 0,05 | < 0,05 | 0,05 | < 0,05 | < 0,05 |
hab: habitantes.
A Tabela 4 traz os dados de incidência de tuberculose e da coinfecção tuberculose-HIV nas macrorregiões brasileiras. As taxas de variação mostram uma redução de 20,19% no Sudeste, de 20,14% no Nordeste, de 12,37% no Norte e de 7,80% no Centro-Oeste. A região Sul apresentou evolução estável.
Ano | Incidência de tuberculose por 100.000 hab | Incidência de tuberculose-HIV por 100.000 hab | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
N | NE | SE | S | CO | N | NE | SE | S | CO | |
2002 | 51,03 | 44,15 | 48,73 | 34,64 | 26,29 | 1,39 | 0,94 | 4,8 | 5,42 | 1,49 |
2003 | 49,97 | 46,14 | 47,27 | 35,41 | 27,08 | 1,96 | 1,28 | 4,55 | 5,41 | 1,58 |
2004 | 50,6 | 45,9 | 45,52 | 34,08 | 24,7 | 1,64 | 1,48 | 4,21 | 5,04 | 1,49 |
2005 | 47,32 | 45,54 | 42,9 | 32,32 | 25,34 | 1,95 | 1,46 | 3,95 | 5,03 | 1,68 |
2006 | 46,05 | 41,03 | 40,53 | 30,48 | 24,27 | 1,96 | 1,56 | 4,47 | 4,69 | 1,67 |
2007 | 45,01 | 39,49 | 40,68 | 31,83 | 23,13 | 2,27 | 1,88 | 4,14 | 5,23 | 2,08 |
2008 | 44,69 | 38,13 | 40,37 | 31,84 | 22,8 | 3,18 | 2,05 | 4,01 | 5,71 | 1,97 |
2009 | 47,78 | 38,85 | 41,01 | 33,21 | 21,91 | 3,41 | 2,19 | 4,00 | 5,58 | 2,06 |
2010 | 40,88 | 33,95 | 36,45 | 30,35 | 20,98 | 3,83 | 2,48 | 3,93 | 6,08 | 2,03 |
2011 | 46,42 | 37,7 | 41,48 | 33,26 | 23,08 | 3,67 | 2,64 | 3,97 | 5,92 | 2,04 |
2012 | 44,72 | 35,26 | 38,89 | 32,06 | 24,24 | 3,81 | 2,7 | 3,59 | 5,48 | 2,19 |
Variação total, % | −12,37 | −20,14 | −20,19 | −7,45 | −7,80 | 174,10 | 187,23 | −25,21 | 1,11 | 46,98 |
p | < 0,05 | < 0,05 | < 0,05 | 0,08 | < 0,05 | < 0,05 | < 0,05 | < 0,05 | 0,07 | < 0,05 |
hab: habitantes; N: Norte; NE: Nordeste; SE: Sudeste; S: Sul; e CO: Centro-Oeste.
Prosseguindo na análise da Tabela 4, os dados da coinfecção tuberculose-HIV exibem um crescimento expressivo nas regiões Norte e Nordeste, sendo que a incidência ficou acima de 150% nos 11 anos estudados. A região Sul não apresentou diferenças significativas nos dados, enquanto a região Centro-Oeste registrou um aumento de quase 47%. A região Sudeste, diferente das demais, reduziu em 25% as taxas de coinfecção tuberculose-HIV.
Quanto ao desfecho na situação de encerramento, segundo a Tabela 5, tem-se que a proporção de cura para a coinfecção tuberculose-HIV foi de 50,74%, enquanto, para pacientes apenas com tuberculose, essa proporção subiu para 71,10%. Ao calcular-se a razão de chances, estima-se que a coinfecção tuberculose-HIV diminuiu em 58% a chance de cura de tuberculose. Além disso, a taxa de abandono de tratamento foi de 13,60% na coinfecção HIV frente a 9,52% nos pacientes com tuberculose apenas. Com isso, a infecção pelo HIV aumentou em 50% as chances de abandono em pacientes com tuberculose. Concatenando os dados anteriores, a evolução para óbito mostrou-se maior nos pacientes com tuberculose-HIV, tendo esses 94% mais chances de falecer por tuberculose quando comparados aos pacientes com tuberculose apenas. Não obstante, a coinfecção tuberculose-HIV não foi associada a tuberculose multirresistente.
Desfechos | Casos notificados no SINAN, % | OR (IC95%) | p | |
---|---|---|---|---|
TB-HIV | TBa | |||
Cura | ||||
Sim | 50,74 | 71,10 | 0,42 (0,41-0,42) | < 0,05 |
Não | 49,26 | 28,90 | Ref. | |
Abandono | ||||
Sim | 13,60 | 9,52 | 1,50 (1,46-1,53) | < 0,05 |
Não | 86,40 | 90,48 | Ref. | |
Óbitos por TB | ||||
Sim | 3,63 | 1,90 | 1,94 (1,86-2,02) | < 0,05 |
Não | 96,37 | 98,10 | Ref. | |
TB multirresistente | ||||
Sim | 0,17 | 0,17 | 0,95 (0,75-1,21) | 0,70 |
Não | 99,83 | 99,83 | Ref. |
SINAN: Sistema de Informação de Agravos de Notificação; TB: tuberculose; e Ref.: referência. aDiferença entre o total de casos notificados por tuberculose e casos com diagnóstico positivo para HIV.
Os dados do presente estudo exibem uma diminuição significativa da incidência de tuberculose no Brasil no período entre 2002 e 2012. Tal diminuição revelou-se mais proeminente em mulheres e crianças de todas as regiões, exceto na Sul. Em contraste, percebemos que a tuberculose permanece com elevadas taxas de incidência em homens entre 20 e 59 anos. Além disso, a taxa de cura também está aquém da meta estabelecida pelo PNCT, que é de 85%.1 O quadro muda ao analisarmos a coinfecção tuberculose-HIV. Não só sua incidência total aumentou mas também foi mais robusta em mulheres, idosos e residentes das regiões Norte e Nordeste, demonstrando a feminização, a transição etária e a pauperização do HIV. Por fim, esses dados revelaram menores taxas de cura, assim como maiores taxas de abandono de tratamento e de morte na coinfecção tuberculose-HIV. O presente estudo enseja o debate acerca das políticas públicas adotadas para o controle da tuberculose e da coinfecção tuberculose-HIV, demonstrando seu impacto no Brasil, nas populações de risco, suas possíveis falhas e pontos de fortalecimento.
No que se refere à incidência de tuberculose, percebe-se uma redução tanto em números absolutos quanto na relação por 100.000 habitantes. Segundo Guimarães et al.10) a incidência de tuberculose diminuiu 48,8% entre 1990 e 2010 no Brasil, chegando a 43/100.000 no último ano estudado. Tal resultado corrobora nossa análise de que a incidência de tuberculose vem diminuindo, mas difere de nossos dados, uma vez que encontramos uma maior incidência em algumas faixas etárias e uma queda menos vertiginosa. Essa disparidade de resultados pode ter ocorrido devido à utilização de bancos de dados distintos.
A mesma redução não se verifica na incidência da coinfecção tuberculose-HIV, pois houve um aumento de 3,82% no período estudado. É notório que o HIV tem contribuído para o crescente número de casos de tuberculose,6,11 sobretudo pelo aumento do risco de se contrair essa doença, tendo em vista a imunossupressão causada pelo vírus.2,6 Dessa forma, encontramos um crescimento de 27,51% na relação da coinfecção de tuberculose-HIV/tuberculose nos anos estudados, reforçando a magnitude dessa coinfecção para o controle adequado da tuberculose. Em 2011, o MS reconheceu que a coinfecção tuberculose-HIV precisa ser controlada, dada sua elevada prevalência e o aumento das taxas de óbito por tuberculose em pacientes soropositivos.1) No entanto, até o ano de 2012, a notificação da coinfecção tuberculose-HIV aumentou significativamente, o que fortalece a necessidade de mais ações no sentido de prevenir a disseminação do HIV, além de tratar e acompanhar pacientes coinfectados de forma mais minuciosa.
Ao observar-se a incidência de tuberculose por sexo, percebe-se que essa é duas vezes maior no sexo masculino do que no feminino. Esse dado substancia a indicação de que, no Brasil, a tuberculose atinge prioritariamente o sexo masculino,12 tendo esses duas vezes mais chance de adoecer.7 É necessário comentar que houve uma redução mais acentuada na incidência de tuberculose no sexo feminino, provavelmente pelo maior cuidado com a saúde por parte das mulheres.13 Entretanto, o sexo feminino desponta na incidência da coinfecção tuberculose-HIV, indicando um maior número de novas mulheres soropositivas. Esses dados corroboram outros estudos brasileiros, que mostram o sexo masculino com maior incidência e prevalência de tuberculose e HIV, além do aumento dessa coinfecção,3,14 a qual é influenciada por fatores genéticos, ambientais e imunológicos, e cuja melhor compreensão ocasionaria avanços diagnósticos que favoreceriam o desenvolvimento de novas tecnologias e terapêuticas para ambas as doenças.15
Quando categorizada a população por faixa etária, nota-se uma redução de um terço na incidência de tuberculose em crianças de 0-9 anos. Subentende-se uma maior eficácia no tratamento, na profilaxia em contactantes, bem como na melhora na moradia, condição sanitária, condição alimentar e no acesso à saúde, incluindo a adesão à vacinação, já que tais características têm relação intrínseca com a diminuição na incidência da tuberculose, principalmente em crianças,16 apesar do difícil diagnóstico nesses casos. 17 Entretanto, em todas as faixas etárias seguintes, excetuando-se a de 10-19 anos, houve aumentos na incidência de tuberculose, conforme encontrado também na literatura brasileira até o ano de 2004.18 Além disso, detectamos o aumento expressivo nas taxas de coinfecção naquela faixa de idade, assim como em outras. Em um estudo realizado no Brasil, dos Santos Dias et al.19 destacaram piores desfechos e maior propensão a resultados desfavoráveis em pacientes coinfectados com HIV. Isso nos remete a um problema social: a população economicamente ativa está adoecendo mais por tuberculose, a qual se encontra mais prevalente em segmentos marginalizados e empobrecidos da sociedade.20
Na faixa etária acima de 60 anos, o aumento de 209% na incidência da coinfecção tuberculose-HIV exige a criação de políticas públicas para essa população que estimulem ações educacionais e atuem paulatinamente na questão sexual e na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Além do aumento do número de idosos na população, a melhora da qualidade de vida e o uso de medicamentos para disfunção erétil elevaram também a prevalência do HIV, agravando o problema de saúde pública já existente. Sabe-se que os idosos são mais suscetíveis a adoecer, uma vez que apresentam diminuição da imunidade, além de possuir outras comorbidades e fazer uso de polifarmácia, dois fatores apontados como risco de recidiva de tuberculose. 21 Portanto, o aumento da coinfecção tuberculose-HIV nessa população implica maior mortalidade por tuberculose. O estudo de Chaimowicz22 sugeriu que haverá uma redução da coinfecção tuberculose-HIV nessa faixa etária nos próximos 50 anos. Porém, isso só será possível se políticas públicas voltadas para essa população forem implementadas.
Ao abordarmos as regiões geopolíticas do Brasil, percebemos reduções da incidência de tuberculose em todas as regiões, exceto na Sul. Tal redução pode estar diretamente relacionada à implementação do PNCT1 nas regiões brasileiras, bem como ao fato de que a OMS tenha definido a tuberculose como uma emergência sanitária, ampliando as ações de combate à doença. Por outro lado, o aumento da incidência da coinfecção tuberculose-HIV em todas as regiões fortalece o conceito de que o HIV seja o principal fator de risco para o desenvolvimento da tuberculose.7 O aumento de 150% encontrado nas regiões Norte e Nordeste reforça a ruralização do HIV, um agravante à situação da tuberculose, uma vez que regiões marginalizadas e com piores indicadores sociais e de saúde estão mais vulneráveis.18,23) Apesar disso, do Prado et al.24 relataram que pacientes coinfectados com HIV eram menos propensos a viver na zona rural. Diante das evidências, faz-se necessário estruturar as unidades básicas de saúde para que possam atender as necessidades desses locais e implementar políticas de desenvolvimento social para que tais regiões deixem de ser vulneráveis. Curiosamente, programas de transferência direta de renda parecem contribuir para melhorar as taxas de cura da tuberculose no Brasil. 25 Dessa forma, para alcançar resultados amplos e robustos, as políticas de saúde pública devem abordar as diversas facetas da doença, como problemas sociais, econômicos, ambientais e clínicos.21,26-28
A partir da análise da evolução temporal da tuberculose e da coinfecção tuberculose-HIV em diferentes perfis epidemiológicos, extraímos os dados de encerramento, no mesmo período, para avaliar as metas do PNCT1 e a influência da coinfecção tuberculose-HIV sobre o desfecho. É clara a diferença na taxa de cura entre pacientes HIV negativos e positivos. Enquanto os primeiros apresentam uma taxa de cura de 71%, os segundos apresentam essa taxa em apenas 50% dos casos, conferindo ao paciente coinfectado com tuberculose-HIV 48% menos chance de se curar em relação aos soronegativos. Essa relação foi relatada em outros estudos29,30 e está relacionada com a imunodeficiência causada pelo HIV nesses pacientes, o tempo entre o diagnóstico e início do tratamento e a dificuldade de acesso aos serviços de saúde.31 Mesmo após o lançamento do PNCT e da meta da OMS e do MS em atingir 85% de cura dos casos notificados até 2015, o Brasil ainda não alcançou tal propósito, como mostrado ao final do decênio 2002-2012.1
As taxas de abandono de tratamento nas notificações de tuberculose e de tuberculose-HIV foram de 9% e 13%, respectivamente, semelhantes às encontradas em estudos anteriores.18,20,29,32 Apesar de os tratamentos serem disponibilizados gratuitamente na rede pública, a dispensa das medicações e o seguimento do tratamento são realizados em locais distintos. Ademais, a longa duração e os efeitos colaterais do tratamento também favorecem a falta de adesão.6
Ao analisarmos os óbitos por tuberculose, nota-se uma elevada taxa em coinfectados por tuberculose-HIV, sendo essa quase três vezes maior do que aquela em pacientes soronegativos. Esses dados assemelham-se aos encontrados em outros estudos18,29 e, mais uma vez, relacionam-se ao perfil imunológico de pacientes soropositivos33) e às taxas de abandono, maiores nessa população, como demonstrado no presente estudo. Não obstante, Dowdy et al.34 apontaram decréscimos semelhantes na qualidade de vida entre os grupos de pacientes com tuberculose, com HIV e com coinfecção tuberculose-HIV a partir de um instrumento validado de autoavaliação. Na análise das proporções de tuberculose multirresistente, curiosamente, não encontramos diferenças entre os grupos. Alguns estudos corroboram esse achado7,18; porém, outros sugerem o contrário, sendo esse um dado relevante no desfecho da doença.1,33,35,36
A principal limitação do presente estudo se deu no uso de dados secundários, pois esses podem interferir na análise, sobretudo pela baixa completude dos registros.37,38 Nesse sentido, é indispensável garantir a sensibilidade e a confiabilidade dos dados do SINAN para a sua utilização com segurança por pesquisadores, gestores e profissionais da saúde de igual forma no território nacional.
Em resumo, dentro dos limites do estudo, os achados sugerem que, entre 2002 e 2012, o comportamento epidemiológico dos novos casos de notificação de tuberculose apresentou tendências opostas quando comparado ao do grupo de coinfecção tuberculose-HIV. A infecção pelo HIV representa um fator importante para o curso da tuberculose. Esse fato é essencial para a implementação de uma política voltada para qualificar o atendimento de pacientes soropositivos a fim de que se disponibilizem medidas de monitoramento mais eficazes. Por outro lado, apesar do avanço no tratamento e na prevenção do HIV, é necessário não negligenciar o contínuo avanço dessa infecção no Brasil, principalmente em mulheres, idosos e nas regiões menos desenvolvidas. Soma-se a isso a necessidade de se expandir o PNCT1 uniformemente em todo o país para que seja possível atingir as metas estabelecidas, bem como oferecer serviços estruturados e eficientes em todo o território nacional. Por fim, incentivar e viabilizar as unidades básicas de saúde, com educação continuada, e que sejam aptas ao diagnóstico e tratamento da tuberculose se torna indispensável para a melhoria dos dados relativos a essa enfermidade.