versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.29 no.6 São Paulo 2017 Epub 18-Dez-2017
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/201720170022
A epidemia do HIV/AIDS (Vírus da Imunodeficiência Humana/ Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) mantém-se como um dos principais problemas de saúde pública no mundo(1). As altas taxas de mortalidade decorrentes da AIDS suscitaram incessantes pesquisas sobre o comportamento da doença em diferentes faixas etárias, sendo a epidemia do HIV/AIDS na infância a mais estudada, já descrita na literatura pediátrica(2).
O HIV (Human Immunodeficiency Virus) ou Vírus da Imunodeficiência Humana é um vírus que infecta as células do sistema imunológico, principalmente os linfócitos T CD4+. A AIDS (Acquired Immunodeficiency Syndrome) ou Síndrome da Imunodeficiência Adquirida é a doença causada pelo HIV, que resulta em imunodeficiência progressiva, levando a infecções oportunistas e morte(3).
O dano ao sistema imunológico é uma das consequências mais importantes da infecção pelo HIV(4). Entretanto, com o aumento da sobrevida e com a redução da frequência de infecções oportunistas, ficou evidente a importância da promoção da saúde integral e da qualidade de vida das crianças e dos adolescentes com HIV/AIDS(5).
Segundo o Ministério da Saúde(5), a infecção pelo HIV/AIDS pode acometer qualquer órgão e o exame físico deve ser minucioso, com revisão de todos os sistemas. A avaliação clínica, rotineiramente, inclui o exame de cavidade oral e orofaringe, o sistema nervoso e o estado nutricional. Classicamente, a literatura relata que as infecções de faringe e laringe são comuns em pacientes infectados pelo HIV, como candidíase orofaríngea e laríngea; observe-se que tais infecções podem levar a rouquidão, disfagia e estridor laríngeo. O Sarcoma de Kaposi em vias aéreas superiores, bastante descrito nesta população, pode gerar sintomas iniciais de estridor e acarretar necessidade de traqueostomia(6,7).
De acordo com a literatura, até o presente momento, nenhum estudo brasileiro e um único estudo internacional(8) foi publicado sobre a voz de crianças com HIV. No referido estudo, os autores investigaram alterações audiológicas, vocais, de linguagem e deglutição, em crianças entre quatro e 16 anos de idade. A avaliação vocal foi realizada com uso do instrumento Buffalo III e foram encontrados 31,34% de alterações vocais (voz rugosa, soprosa e entrecortada) e ausência de disartria; notou-se que não há descrições da avaliação do abuso de voz. Encontraram também perdas auditivas e distúrbios de deglutição e de linguagem, com classificações de leves a graves; houve correlação negativa entre o tempo de duração da infecção e a severidade dos distúrbios encontrados. Os autores concluíram que crianças com HIV são confrontadas com dificuldades de comunicação durante todo o seu tempo de vida e indicaram a necessidade de mais estudos que envolvam os efeitos das medicações e infecções oportunistas. Não houve comparação dos resultados encontrados nas crianças contaminadas pelo HIV com um grupo de crianças sem o vírus. Vale ressaltar, quanto à investigação de disartria, que o comprometimento do sistema nervoso central, na infecção pelo HIV em crianças, pode estar evidente desde o início ou demorar anos para se manifestar. Presença de microcefalia, rebaixamento cognitivo, sinais piramidais, distúrbios do humor e do comportamento, e complicações pelo uso da terapia antirretroviral são comuns(9).
Quanto aos estudos com adultos infectados pelo HIV, com o objetivo de esboçar o perfil das alterações vocais, autores avaliaram oito pacientes entre 18 e 40 anos de idade, sendo sete homens e uma mulher, na Índia. Foram coletados dados clínicos: histórico, problemas médicos e problemas de voz; avaliação vocal subjetiva: parâmetros pitch, loudness, qualidade vocal; avaliação vocal objetiva: tempo máximo de fonação das vogais a, i e u, e relação s/z. As medidas acústicas foram computadorizadas e analisadas de acordo com os parâmetros de normalidade estabelecidos pelo software utiizado. Os autores concluíram que 100% dos indivíduos tinham alterações nos parâmetros vocais, que variavam de um a todos os parâmetros alterados. No estudo, referem ainda que, mesmo na ausência de patologia direta dos mecanismos da produção da voz, os parâmetros vocais são afetados em pessoas infectadas pelo HIV. Porém, descrevem que o estudo é preliminar e que não podem afirmar que há correlação entre os achados vocais e a condição clínico-imunológica dos indivíduos(10).
Ainda em adultos, no ano seguinte, os mesmos autores publicaram um estudo com oito adultos infectados pelo HIV, sendo estes os mesmos indivíduos do estudo realizado em 2007. Foram analisados o histórico médico, as queixas de comunicação, a presença de afasia, a disartria, a articulação, a fluência e os parâmetros subjetivos da voz, além das estruturas e funções de lábios, língua, mandíbula e palato mole, analisando-se ainda tosse, deglutição e respiração. Destes, 25% apresentaram tempo máximo de fonação reduzido e respiração superior; 25%, alterações de laringe não especificadas; 12,5%, alterações de inteligibilidade de fala; 37,5%, qualidade vocal alterada; 25%, aspereza, e 50%, loudness diminuída, sem alterações de articulação e fluência. Os autores concluíram que adultos podem apresentar alterações da mobilidade laríngea, com paresia ou paralisia de pregas vocais, sendo estas atribuídas às infecções do Sistema Nervoso Central (SNC), queixa de voz fraca e soprosa, além de distúrbios de deglutição(11).
Em um estudo posterior, os autores ainda estudaram alterações de voz, disartria e funções orais, em 15 adultos do gênero masculino, entre 18 e 40 anos. Foram analisadas funções reflexas orais, respiração, estruturas de lábios, língua, mandíbula, palato mole e laringe, inteligibilidade de fala e disartria. Os autores concluíram que 93,3% dos indivíduos apresentaram parâmetros alterados, variando, quanto à gama de alterações, de leve a moderadas, em cada indivíduo. Os parâmetros mais afetados, em ordem decrescente, foram: linguagem, funções laríngeas, funções reflexas e respiração, função de lábios e inteligibilidade de fala; não foram encontradas alterações em mandíbula e palato mole. Os autores concluíram que são necessários mais estudos sobre efeitos das medicações e doenças oportunistas, e do tempo de duração da contaminação pelo HIV(12).
Outras lesões são descritas como secundárias às infecções oportunistas específicas, como candidíase, tuberculose, hanseníase, herpes-zóster, histoplasmose, paracoccidioidomicose e leishmaniose(1). Em algum momento da infecção pelo HIV, até 84% dos pacientes vão apresentar algum sinal ou sintoma otorrinolaringológico, capaz de afetar a laringe e/ou a voz(13).
Um único estudo analisou o aspecto vocal de crianças com HIV(8), assim como apenas três estudos investigaram os mesmos aspectos em adultos com HIV(10-12). Verificou-se que nenhum desses estudos comparou seus resultados com um grupo sem HIV, condição fundamental para se estabelecer se tais condições são, ou não, também encontradas na população em geral. Conhecer as características vocais de crianças infectadas pelo HIV é importante para a promoção da saúde e das estratégias de prevenção e melhorias dos serviços de saúde voltados às especificidades desta população.
O objetivo do presente estudo foi comparar parâmetros vocais e acústicos de crianças infectadas e não infectadas pelo HIV.
Trata-se de um estudo observacional, analítico, transversal e prospectivo.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos: CAAE 05374712.0.0000.0096, com parecer n.º 122.746, em 16/12/2012. Foram respeitadas todas as orientações da Resolução n.º 466, de 12 de dezembro de 2012, da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Os responsáveis pelas crianças participantes foram informados quanto aos objetivos da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
A população-alvo desta pesquisa foi constituída por um grupo de estudo, denominado grupo HIV positivo (GHIV), composto por crianças infectadas pelo vírus HIV, com ou sem queixas vocais, e também por um grupo controle (GC), formado por crianças que procuraram o Complexo do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (CHC-UFPR) por motivos que não a contaminação pelo HIV. A população do GC apresentava queixas dermatológicas isoladas, sem nenhuma associação com outras doenças, com ou sem queixas vocais.
A coleta de dados do GHIV foi realizada no Ambulatório de Infectologia Pediátrica do Complexo do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (CHC-UFPR), no Serviço de Ambulatório Médico-2 (SAM 2). A coleta de dados do GC foi realizada no Ambulatório de Dermatologia Pediátrica do CHC-UFPR, também no Serviço de Ambulatório Médico-2 (SAM 2).
A casuística do GHIV foi composta por crianças infectadas pelo vírus HIV, atendidas no Ambulatório de Infectologia Pediátrica, de ambos os gêneros, com idades entre seis e 12 anos incompletos, com ou sem queixas vocais. No início da coleta de dados havia 40 crianças com a idade estipulada, em acompanhamento. Os critérios de inclusão no GHIV foram: crianças infectadas pelo vírus; em acompanhamento regular para o HIV (a cada três meses) pela Infectologia Pediátrica; pré-púberes, pelos critérios de Tanner(5); seus responsáveis legais consentiram a participação no estudo, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foram incluídas as 37 crianças que compareceram à consulta médica durante o período de coleta de dados, de forma não probabilística.
A casuística do GC foi composta por crianças que frequentavam o Ambulatório de Dermatologia Pediátrica, de ambos os gêneros, com idades entre seis e 12 anos incompletos, atendidas por queixas dermatológicas, e que preencheram os critérios de inclusão no estudo. Os critérios de inclusão do GC foram: crianças que procuraram Serviço de Dermatologia Pediátrica por motivos outros que não a contaminação pelo HIV; pré-púberes, pelos critérios de Tanner (MS, 2014); seus responsáveis legais consentiram a participação, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), com ou sem queixas vocais. No GC, foram incluídas 37 crianças pareadas por gênero e idade às crianças do GHIV. Ambos os gêneros foram incluídos em um mesmo grupo. Todas as crianças eram pré-púberes, pelos critérios de Tanner(5), e não apresentavam características vocais diferenciadas pela maturação sexual da muda vocal.
Os critérios de exclusão do GHIV e do GC foram: crianças que estivessem com quadro de crise alérgica das vias aéreas ou infecção de vias aéreas no momento da avaliação, sendo que estas poderiam ser avaliadas em um segundo momento, em que estivessem sem tais alterações; crianças com sinais ou sintomas de alterações gástricas no momento da avaliação; comprometimento neurológico, deficiência visual ou intelectual aparentes; ausência em todas as consultas agendadas no período da coleta dos dados do estudo.
As crianças do GHIV foram submetidas aos seguintes procedimentos: avaliação médica, exame físico da Infectologia Pediátrica para o GHIV e gravação da voz; já as crianças do GC passaram por avaliação médica, exame físico da Dermatologia Pediátrica e gravação da voz.
A avaliação médica do GHIV foi realizada pelo médico infectologista. Foram coletados dados de identificação, a forma de transmissão do vírus HIV, a classificação clínico-imunológica do CDC, o estadiamento clínico-imunológico então atual, e o estadiamento puberal de Tanner(5). Foram incluídas no estudo apenas as crianças pré-púberes. As meninas deveriam ter ausência de tecido mamário (M1) e pilificação pubiana (P1), e os meninos, testículos e pênis em estadio infantil (G1,G2 e G3), e ausência de pilificação pubiana (P1).
A classificação da infecção pelo HIV baseia-se em parâmetros clínicos e imunológicos, e é proposta pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC)(5); esta etapa da pesquisa foi realizada por médico infectologista pediátrico. Nesse sistema, as crianças foram classificadas em categorias mutuamente exclusivas, de acordo com sinais e sintomas clínicos, e condição imunológica no pior momento clínico de suas vidas. Os objetivos desse sistema de classificação são refletir a etapa da doença de uma criança infectada (ter um significado prognóstico) e simplificar o processo de classificação.
De acordo com o CDC, uma vez classificada, a criança não pode ser reclassificada em uma categoria “menos grave”, mesmo que o estado clínico e imunológico melhore. Assim, todas as crianças foram classificadas, quanto aos sinais e sintomas clínicos da doença (classificação do CDC), em: sem sinais ou sinais leves, moderados ou graves; ainda, quanto à alteração imunológica, em: ausente, moderada e grave. Para que se pudesse conhecer a condição clínica e imunológica no momento da avaliação fonoaudiológica, as crianças foram avaliadas seguindo os mesmos critérios, como fonte de informação atual.
A avaliação médica do GC foi realizada por médico Dermatologista Pediátrico e seguiu os mesmos passos, com exceção das questões voltadas à contaminação pelo HIV, que foram substituídas por questões sobre o motivo da consulta na dermatologia.
Foram coletadas amostras vocais das crianças para análises perceptivo-auditiva e acústica. Solicitou-se que cada criança produzisse a vogal sustentada /Ɛ/, em intensidade e frequência habituais; posteriormente, foi solicitado que cada criança contasse de 1 a 20, também em intensidade e frequência habituais. Foram repetidas as instruções e a gravação da amostra às crianças que não compreenderam ou que produziram com qualidade vocal diferente da apresentada na fala espontânea.
Ambos os grupos passaram pelo mesmo procedimento de gravação da voz. Para a gravação das vozes, utilizou-se o Software VoxMetria® (CTS Informática, versão 4.5h), instalado em computador ultrabook ACER®, e microfone Plantronics áudio DSP 400 – ultimate headset unidirecional, acoplado ao computador, em sala silenciosa. Em seguida, os registros vocais foram armazenados em CD e disponibilizados para três juízes fonoaudiólogos com experiência de, no mínimo, cinco anos de avaliação vocal, para realização da análise perceptivo-auditiva. Os juízes avaliaram as vozes em ambiente silencioso, com uso de fone de ouvido e poderiam ouvir as gravações quantas vezes julgassem necessárias.
Para a análise da confiabilidade das vozes das 74 crianças, foi realizada repetição de 20% das amostras da vogal sustentada e da fala encadeada, totalizado 88 registros de vozes. Desta forma, os juízes avaliaram 88 vozes para a vogal sustentada e 88 para a fala encadeada, totalizando 176 vozes. Para confiabilidade interna, utilizaram-se as avaliações e suas respectivas repetições da vogal sustentada /Ɛ/ de cada juiz. Quanto à confiabilidade interna, foram comparadas as 74 amostras de vogal sustentada e da fala encadeada entre os três juízes. A confiabilidade externa teve resultados insuficientes e, assim, utilizaram-se apenas os resultados da avaliação do juiz 1, que apresentou boa confiabilidade interna, com Teste de Kappa=0,83.
Para a análise vocal, foi utilizada a escala analógico-visual (EAV) de 100 pontos, transformada em escala numérica de 4 pontos, sendo 0 - ausência de desvio e 4- desvio intenso(14), para as amostras da vogal sustentada e da fala encadeada.
A avaliação acústica constou da análise da distribuição da amostra da vogal /Ɛ/ no Diagrama de Desvio Fonatório (DDF) do Software VoxMetria®. As avaliações visuais foram realizadas por uma das pesquisadoras, sem conhecimento prévio do grupo ao qual a voz pertencia (GHIV ou GC). Foram comparadas 10% das análises com as de um avaliador externo, não tendo sido encontradas divergências; dessa forma, prosseguiu-se a análise.
As vozes foram classificadas no DDF(15), quanto a:
Normalidade: ponto central do DDF localizado dentro da área de normalidade, no quadrante inferior esquerdo;
Densidade: concentração dos pontos em um único quadrado ou além de um quadrado, estabelecida pelo próprio DDF, classificando-se em concentrada ou ampliada;
Forma: distribuição dos pontos no DDF, realizada por meio de uma régua simples do computador, avaliando-se se a distância dos pontos era maior na coordenada X (forma: horizontal), na coordenada Y (forma: vertical) ou se as medidas fossem iguais nas duas coordenadas (forma: circular);
Localização nos quadrantes do diagrama: localização dos pontos do DDF, classificada como: inferior esquerdo = (quadrante 1); inferior direito = (quadrante 2); superior direito = (quadrante 3) e superior esquerdo = (quadrante 4).
Todos os dados foram tabulados e analisados estatisticamente. A confiabilidade tanto externa como interna, na avaliação perceptivo-auditiva da voz, foi analisada para as variáveis contínuas (média e desvio padrão), por meio do teste Coeficiente de Correlação Intraclasses (CCI). Para as variáveis categóricas (frequência absoluta e porcentagem), utilizou-se o Índice de Concordância de Kappa. A estimativa de diferença entre variáveis categóricas, que estão expressas em frequência absoluta (n) e frequência relativa (%), foi realizada pelo Teste Exato de Fisher e pelo Teste Qui-Quadrado. Para todos os testes, foi considerado um nível mínimo de significância de 5%. A amostra estudada conferiu Poder de Teste mínimo de 95% para os resultados de ambos os grupos com 37 participantes.
As características clínicas e imunológicas das crianças infectadas pelo HIV de acordo com a Classificação do CDC e também de acordo com a avaliação no momento da avaliação fonoaudiológica, estão apresentadas na Tabela 1. A classificação do CDC mostrou que a maioria das crianças do GHIV teve sinais e sintomas da doença moderados ou graves, no pior momento clínico de suas vidas, e também imunossupressão moderada ou grave. Atualmente, a maioria das crianças está sem sinais e sintomas clínicos ou leves, e nenhuma tem alteração imunológica.
Tabela 1 Distribuição das crianças do GHIV quanto à avaliação pediátrica e laboratorial, de acordo com a classificação clínico-imunológica do CDC, e à avaliação atual
Avaliação pediátrica e laboratorial | Grau | Classificação do CDC (n=37) | Avaliação atual (n=37) | ||
---|---|---|---|---|---|
N. | % | N. | % | ||
Sinais e sintomas clínicos | Sem ou leves | 12 | 32,4 | 35 | 94,6 |
Moderados | 14 | 37,8 | 1 | 2,7 | |
Graves | 11 | 29,7 | 1 | 2,7 | |
Alteração imunológica | Ausente | 11 | 29,7 | 37 | 100,0 |
Moderada | 14 | 37,8 | 0 | 0,0 | |
Grave | 12 | 32,4 | 0 | 0,0 |
Legenda: CDC - Centers for Disease Control and Prevention
A Tabela 2 apresenta a avaliação perceptivo-auditiva do grau geral da qualidade vocal em escala numérica, em ambos os grupos estudados. A avaliação perceptivo-auditiva mostrou que as crianças de ambos os grupos têm qualidade vocal dentro dos padrões da normalidade. A Tabela 3 apresenta a distribuição das amostras vocais no Diagrama do Desvio Fonatório, em ambos os grupos. A Tabela 3 mostrou que não houve diferença significante em relação aos grupos GHIV e GC, na distribuição das amostras no diagrama de desvio fonatório. A maioria das amostras vocais localizou-se na área de normalidade estabelecida pelo programa; ambos os grupos apresentaram distribuição de densidade ampliada, forma vertical e localizaram-se no quadrante 1.
Tabela 2 Avaliação perceptivo-auditiva da voz do grau geral do desvio vocal em escala numérica
Grau geral do desvio vocal | GHIV (n=37) | GC (n=37) | Valor de p | ||
---|---|---|---|---|---|
N | % | N | % | ||
Vogal sustentada | |||||
Grau 0 | 30 | 81,0 | 33 | 89,1 | 0,51 |
Grau 1 | 7 | 18,9 | 4 | 10,8 | |
Fala encadeada | |||||
Grau 0 | 31 | 83,8 | 36 | 97,3 | 0,10 |
Grau 1 | 6 | 16,2 | 1 | 2,7 |
Teste estatístico: Teste Exato de Fisher (p<0,05)
Tabela 3 Distribuição dos resultados da análise acústica no diagrama do desvio fonatório
Diagrama do Desvio Fonatório | GHIV | GC | Valor de p | |||
---|---|---|---|---|---|---|
N | % | N | % | |||
Classificação | Normal | 23 | 62,1 | 26 | 70,2% | 0,62(a) |
Alterada | 14 | 37,84 | 11 | 29,73% | ||
Densidade | Concentrada | 1 | 2,7 | 3 | 8,1% | 0,61(a) |
Ampliada | 36 | 97,2 | 34 | 91,8% | ||
Forma | Horizontal | 5 | 13,5 | 8 | 21,6% | 0,57(b) |
Vertical | 26 | 70,2 | 22 | 59,4% | ||
Circular | 6 | 16,2 | 7 | 18,9% | ||
Localização | Inferior esquerdo | 26 | 70,2 | 29 | 78,3% | (*) |
Inferior direito | 6 | 16,2 | 6 | 16,2% | ||
Superior direito | 3 | 8,1 | 1 | 2,7% | ||
Superior esquerdo | 2 | 5,4 | 1 | 2,7% |
Testes estatísticos: Teste Exato de Fisher(a) e Teste Qui-Quadrado(b), (p<0,05). Análise descritiva devido ao pequeno número de indivíduos em cada grupo(*)
A voz é uma das características naturais que diferem as crianças dos adultos. Mesmo entre as crianças, há fatores que podem desencadear problemas vocais, dentre os quais as doenças crônicas, como, por exemplo, a contaminação pelo HIV e a AIDS. Desta forma, é importante compreender as características vocais dessa população, que tem como particularidades o tratamento e o acompanhamento médico constante e diferenciado.
Uma condição bastante importante de se saber, quando se trata de crianças infectdas pelo HIV, é a condição clínica e imunológica encontrada no momento da avaliação e também no pior momento clínico de suas vidas. Assim, é possível comparar os dados com os de outros estudos e analisar os momentos clínicos das populações estudadas.
No que se refere à condição clínica e imunológica das crianças do GHIV, a classificação do CDC mostrou que a maioria das crianças do GHIV+ apresentou sinais e sintomas moderados ou graves no pior momento clínico de suas vidas, e imunossupressão moderada ou grave. Esses dados mostram que esta população é, em sua maioria, de crianças que já passaram por uma condição clínica avançada em relação à infecção pelo HIV. No momento da coleta dos dados da presente pesquisa, quase a totalidade das crianças estava assintomática ou com sinais e sintomas leves, e todas estavam sem imunossupressão, demonstrando que praticamente todas as crianças estudadas estavam com a doença controlada, sem agravos que acometem a laringe e sem comprometimento neurológico.
No CHC-UFPR, as crianças do GHIV+ são acompanhadas pela infectologia pediátrica trimestralmente. Além da avaliação de rotina, as crianças também são acompanhadas pela equipe da pediatria, com avaliação neurológica e dermatológica, e, se necessárias, avaliações otorrinolaringológica, pneumológica, cardiológica, psicológica e do Serviço Social.
Quanto à voz, é realizada a avaliação perceptivo-auditiva da qualidade vocal, que é subjetiva, completa, e representa a base da clínica vocal; associada à autoavaliação vocal, estas se tornaram, tradicionalmente, os procedimentos de referência para a avaliação fonoaudiológica dos distúrbios da voz(16).
Os resultados da análise perceptivo-auditiva, que avaliou o parâmetro grau geral da qualidade vocal, demonstraram que não houve diferenças na qualidade vocal entre as crianças com e sem HIV, com maior ocorrência de vozes sem desvio em ambos os grupos. Obteve-se incidência de grau geral levemente alterado em 18,9% para o GHIV e 10,8% no GC. Um único estudo(8), que avaliou vozes de crianças com HIV, foi encontrado na literatura e desenvolvido na Índia; os autores encontraram parâmetros vocais alterados na análise perceptivo-auditiva em 21 de 67 crianças (31,3%); destas, 10 (14,9%) apresentaram rugosidade; 8 (11,9%), aspereza, e 3 (4,47%), voz entrecortada. Os autores não descrevem a classificação do CDC nem a classificaçao clínica e imunológica no momento da avaliação vocal. Esses resultados(8) diferem dos encontrados pelo presente estudo. Vale ressaltar que, no momento da avaliação desta pesquisa, 94,59% das crianças estavam assintomáticas ou com sinais e sintomas leves em relação à doença, e 100% estavam sem imunossupressão, o que se acredita poder ter diferenciado e influenciado diretamente os resultados.
Em dois estudos(10,11) preliminares, que avaliaram os oito mesmos adultos infectados pelo HIV, os autores encontraram parâmetros vocais perceptivo-auditivos (pitch, loudness e qualidade vocal) e acústicos (tempo máximo de fonação e medidas acústicas computadorizadas, como F0, jitter; shimmer) alterados(10); e ainda, presença de afasia, disartria, articulação também alterados(11). Já em estudo com 15 homens infectados pelo HIV, foi encontrada disartria em 93,3%(12). Esses três estudos com adultos, desenvolvidos na Índia, da mesma forma que no estudo com crianças infectadas pelo HIV(8), não apresentam a classificação do CDC e a avaliação clínica e imunológica no momento da avaliação vocal da pesquisa; ou seja: tais estudos não apresentam as características da doença em seu pior momento clínico e no momento da avaliação vocal.
Na população brasileira, a ocorrência de disfonia é de 37,14% nas crianças de seis a 10 anos de idade(17). Já a literatura mundial apresenta ocorrência de disfonia infantil variável, entre 6 e 30%(18-20). O resultado do presente estudo foi inferior ao apresentado na literatura brasileira (GHIV=18,9% e GC=10,8%). Em outro estudo, os autores citam que foram encontrados, na literatura, ocorrência de disfonia infantil entre 4,4 e 30,3% das crianças(18). Os achados do presente estudo corroboram o estudo anterior(18), em que ambos os grupos se encontram dentro da porcentagem esperada de disfonia infantil trazida pela literatura. Portanto, as crianças com HIV têm características vocais semelhantes às crianças sem HIV estudadas e estão na faixa de ocorrência de alterações vocais apresentadas pela população em geral.
De acordo com a literatura, as análises perceptivo-auditiva e acústica são as principais ferramentas da avaliação vocal, além de serem importantes instrumentos clínicos que se complementam(21). O DDF tem sido utilizado na prática clínica por fornecer uma descrição confiável da qualidade vocal, demostrando a distribuição da amostra vocal em direção à área de normalidade proposta pelo programa(22). Assim, o presente estudo, além de ter realizado avaliação perceptivo-auditiva da população de crianças com HIV, considerou também, como análise complementar, a distribuição acústica dessas vozes no diagrama de desvio fonatório.
Quanto à classificação do DDF, ambos os grupos encontraram-se dentro da normalidade, o que corrobora o resultado da análise perceptivo-auditiva. Foi encontrada, também, densidade ampliada em ambos os grupos. Estudos anteriores com adultos demonstraram densidade concentrada em momento pós-terapia e maior concentração dos pontos, em vozes menos alteradas(22,23). A densidade ampliada pode indicar que as vozes infantis são mais irregulares, resultado esperado devido ao ligamento vocal imaturo.
Quanto à forma, foi encontrada forma vertical em ambos os grupos. Tal forma é menos frequente em vozes adaptadas de adultos(15-23), porém foi encontrada em vozes infantis saudáveis. Provavelmente, as crianças têm maior presença de ruído na voz, em função da configuração glótica infatil, em detrimento da irregularidade de parâmetros acústicos, como jitter e shimmer.
Quanto à localização nos quadrantes, foi encontrada localização no quadrante 1, ou seja, inferior esquerdo. Segundo a literatura, quanto menor o grau de disfonia, mais a amostra se aproxima do quadrante 1(22,23), corroborando a literatura.
Um estudo com vozes infantis(24) indicou que o DDF é capaz de diferenciar a qualidade vocal predominante, por meio da distribuição nos quadrantes. Neste estudo, as vozes saudáveis das crianças localizaram-se tanto dentro como fora da área de normalidade, com densidade concentrada ou ampliada, distribuídas nos quadrantes inferiores esquerdo e direito, e com forma horizontal, diferentes do presente estudo quanto à forma predominante, que foi mais vertical(24). Os autores concluíram, por meio da distribuição das amostras vocais nos quadrantes, que o DDF diferenciou a qualidade vocal predominante, embora não tenha discriminado vozes infantis saudáveis e alteradas(24).
Já no presente estudo, as vozes apresentaram-se predominantemente compatíveis com a normalidade, pois se distribuíram no quadrante 1, na região em que o programa estabelece como área de normalidade; observe-se que não foi encontrada a tal discrepância apresentada pela literatura(24). Não houve diferença entre os grupos, sendo que a maioria dos resultados da distribuição das amostras no DDF localizou-se dentro da área de normalidade, para ambos os grupos.
Foi possível perceber que a análise acústica realizada pelo DDF acompanhou a análise perceptivo-auditiva, não indicando diferenças entre os grupos de crianças com e sem HIV.
Crianças infectadas pelo HIV que já tiveram sinais e sintomas da doença e imunossupressão moderados ou graves, e que, na atualidade, têm sinais e sintomas clínicos ausentes ou leves e sem imunossupressão, apresentaram vozes semelhantes às de crianças sem a doença, tanto do ponto de vista auditivo quanto acústico.