versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.38 no.1 São Paulo jan./mar. 2016
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20160012
A anemia é uma complicação frequente em pacientes com doença renal crônica (DRC), e sua ocorrência tem sido associada a pior prognóstico.1 Quando não tratada, a anemia relacionada à DRC está associada a várias anormalidades, incluindo diminuição da liberação e uso de oxigênio nos tecidos, aumento do débito cardíaco, aumento da área cardíaca, hipertrofia ventricular, angina, insuficiência cardíaca congestiva, redução da cognição e acuidade mental, alteração dos ciclos menstruais e prejuízo da resposta imunológica.1-5 Além disso, a anemia pode retardar o crescimento em pacientes pediátricos.6 Dados da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN) em 2013 mostraram que a prevalência de anemia, definida por uma concentração de Hb < 11 g/dl em pacientes em diálise, foi de 33%, mesmo com livre acesso para utilização de eritropoetina.7
A diálise peritoneal (DP) é atualmente a terapia de substituição renal de escolha para mais de 130.000 pacientes no mundo inteiro, o que representa aproximadamente 15% da população mundial em diálise.8 No Brasil, 9,2% dos pacientes em terapia renal substitutiva estavam em diálise peritoneal (DP) em 2013.7 Dados sobre anemia nos pacientes em DP são escassos e controversos.9-11 Registros do Core Indicators Study apontam que, apesar de 85% dos pacientes em DP receberem agentes estimuladores da eritropoiese (AEE), 40% tinham hematócrito inferior a 33%.9 O United States Renal Data System de 2013 mostrou que 66% dos pacientes em DP apresentavam Hb inferior a 11 g/dl.12 E dados nacionais de pacientes em DP, mostraram que 49% desses pacientes prevalentes em diálise apresentam níveis de Hb inferiores a 11 g/dl.10 Os fatores associados à ocorrência de anemia nesta população ainda necessitam ser melhor avaliados. Dessa forma, o objetivo deste estudo foi investigar a prevalência de anemia em pacientes submetidos à DP em um único centro no qual os pacientes têm acesso irrestrito a agentes estimulantes de eritropoiese e suplementação de ferro intravenoso e identificar os fatores associados à presença de anemia nessa população.
O estudo teve um desenho transversal, retrospectivo, com amostra de conveniência, no qual todos pacientes submetidos à DP em janeiro de 2010 na Fundação Oswaldo Ramos, Universidade Federal de São Paulo, com no mínimo três meses de terapia foram incluídos; não houve critérios de exclusão. Neste estudo, foram analisados 120 pacientes de ambos os sexos, maiores de 18 anos.
Todos os pacientes incluídos neste estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre Informado. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São Paulo, com o número 0431/10.
Os dados demográficos, clínicos e laboratoriais foram obtidos a partir dos prontuários dos pacientes e incluíram as seguintes informações: idade, sexo, raça, grau de instrução, etiologia da DRC, doenças prévias e concomitantes, índice de massa corporal (IMC), função renal residual, tratamento conservador prévio, tempo de terapia renal substitutiva [somatória dos períodos em hemodiálise (HD), DP e ou transplante renal], Kt/V total e medicamentos em uso. A ocorrência de hospitalizações, processos infecciosos e presença de sangramento ativo nos três meses anteriores ao estudo foram computados.
Dados sobre a dose prescrita de AEE e da suplementação de ferro foram obtidos no prontuário do paciente. De acordo com nosso protocolo local, todos pacientes recebiam ferro por via endovenosa na unidade de diálise e a administração de AEE era feita por via subcutânea pelo paciente em sua residência.
As médias de valores dos seguintes exames laboratoriais, referentes aos três meses anteriores do estudo, foram avaliadas: hemoglobina (Hb), hematócrito, ferritina, índice de saturação de transferrina (ISAT), colesterol total e frações, triglicerídeos, albumina, potássio, paratormônio, cálcio iônico e fósforo.
As dosagens laboratoriais foram realizadas no laboratório de análises clínicas do Hospital do Rim e Hipertensão. Anemia foi definida como Hb < 11 g/dl.
Os dados foram descritos como média e desvio padrão, mediana e intervalos interquartis ou frequências. Os pacientes foram divididos em dois grupos de acordo com a presença ou ausência de anemia. As comparações entre os grupos foram feitas pelos testes t-Student e Mann-Whitney, quando apropriado. Os testes de Chi-quadrado ou Fisher foram usados para comparações de proporções. A média dos valores de Hb foi correlacionada com outras variáveis utilizando-se o coeficiente de correlação de Spearman. Análise de regressão logística foi utilizada para identificar os fatores que se associaram de forma independente com a presença de anemia e regressão linear multivariada foi realizada para avaliar os fatores que se associaram de forma independente com concentrações de hemoglobina. Um valor de p < 0,05 foi considerado estatisticamente significativo. Todas as análises estatísticas foram realizadas utilizando-se o programa SPSS para o Windows (versão 19; SPSS, Chicago, IL).
As características dos 120 pacientes estão apresentadas na Tabela 1. Os pacientes eram predominantemente de meia idade e estavam em DP havia 17 meses, sendo 86% deles em DP automatizada. Hipertensão arterial sistêmica esteve presente em praticamente todos os pacientes, e diabetes em 29% deles. A deficiência de ferro, definida como ISAT < 20% e/ou ferritina < 100 µg/l, esteve presente em 35% dos pacientes. Vale ressaltar que 87,5% dos pacientes estavam em uso de AEE e 47,5% recebiam suplementação de ferro endovenoso.
Tabela 1 Características da população
Variáveis | Total (n = 120) | Sem Anemia (n = 86) | Com Anemia (n = 34) | p |
---|---|---|---|---|
Idade (anos) | 58,1 ± 16,4 | 59,7 ± 14,3 | 56,1 ± 20 | 0,34 |
Sexo feminino (%) | 63 (52,5) | 40 (47,6) | 22 (64,7) | 0,09 |
Diabetes (%) | 35 (29,2) | 27 (32,1) | 8 (23,5) | 0,35 |
Hipertensão (%) | 112 (93,3) | 78 (92,9) | 32 (94) | 0,80 |
Etiologia da DRC | ||||
Diabetes (%) | 26 (22) | 20 (24) | 6 (18) | |
Hipertensão (%) | 15 (13) | 11 (13) | 4 (12) | 0,97 |
Tempo de tratamento conservador (meses) | 12 (0-37) | 11 (0-47) | 7 (0-24) | 0,14 |
Tempo em DP (meses) | 17 (8-37) | 17 (9-36) | 17 (8-44) | 0,98 |
Hospitalização prévia* | 5 (5) | 6 (7) | 1 (3) | 0,67 |
Infecção previa* (%) | 20 (17) | 14 (17) | 6 (18) | 0,89 |
Sangramento prévio* (%) | 0 | 0 | 0 | 1,00 |
Kt/V total > 1,7 (%) | 96 (80) | 69 (82,1) | 26 (76,5) | 0,71 |
Diurese residual (ml/24h) | 320 (0-980) | 340 (9-955) | 280 (0-1060) | 0,97 |
Característica do transporte de membrana (%) | 0,50 | |||
Médio baixo transportador | 51 | 55 | 41 | |
Médio alto transportador | 58 | 25 | 37 | |
IMC (kg/m2) | 25,5 ± 6,3 | 25,5 ± 6,5 | 25,7 ± 6 | 0,90 |
Dose de AEE (UI/sem) | 4000 (4000-8000) | 4000 (4000-8000) | 8000 (4000-11000) | 0,22 |
Uso de AEE (%) | 105 (87,5) | 74 (88,1) | 29 (85,3) | 0,68 |
Dose de hidróxido de ferro (mg/sem) | 0 (0-200) | 0 (0-200) | 200 (0-200) | 0,02 |
Uso de hidróxido de ferro (%) | 57 (47,5) | 36 (42,9) | 20 (58,8) | 0,13 |
Hemoglobina (g/dl) | 11,3 ± 1,1 | 11,9 ± 0,7 | 9,9 ± 0,7 | 0,01 |
Saturação de Transferrina (%) | 34,8 ± 1 5,6 | 36,6 ± 16,2 | 30,3 ± 13,5 | 0,05 |
Ferritina (μg/l) | 343 (128-631) | 332 (158-646) | 383 (108-708) | 0,84 |
LDL-colesterol (mg/dl) | 98,2 ± 40 | 101 ± 41,6 | 91,5 ± 36,5 | 0,25 |
HDL-colesterol (mg/dl) | 40,1 ± 10,8 | 39,3 ± 10,2 | 42,5 ± 12,2 | 0,15 |
Triglicerídeos (mg/dl) | 148(103-212) | 157(121-224) | 113(89-173) | 0,01 |
Paratormônio (ng/dl) | 402 (244-616) | 405 (240-597) | 382 (264-681) | 0,82 |
Albumina (g/dl) | 3,5 ± 0,4 | 3,58 ± 0,4 | 3,41 ± 0,4 | 0,06 |
DRC: Doença renal crônica; DP: Diálise peritoneal; TRS: Terapia renal substitutiva; IMC: Índice de massa corpórea; AEE: Agentes estimuladores de eritropoietina.
*3 meses precedentes ao estudo
Anemia esteve presente em 34 pacientes (28,3%). A Tabela 1 apresenta a comparação entre pacientes com e sem anemia. Quando comparados aos pacientes sem anemia, aqueles com anemia recebiam doses maiores de ferro e apresentavam menores concentrações de triglicerídeos. Houve tendência para maior prevalência de mulheres no grupo com anemia. Vale ressaltar que não houve registro de sangramento menstrual nos prontuários médicos. Houve, também, uma tendência de valores de ISAT e albumina menores no grupo com anemia. Na análise de regressão logística, nenhuma das variáveis se associou de forma independente com a presença de anemia quando o gênero (p = 0,08, 95% IC = 0,18-1,11), albumina (p = 0,45, 95% IC = 0,23-1,92), ISAT (p = 0,23, 95% IC = 0,95-1,01), triglicérides (p = 0,05, 95% IC = 0,99-1,00) e dosagem de ferro (p = 0,42, 95% IC = 0,99-1,00) foram incluídos no modelo.
A concentração de Hb correlacionou-se negativamente com as doses de ferro e AEE e, positivamente, com albumina, triglicerídeos e ISAT (Figura 1). Não houve relação entre a Hb e outras variáveis (Tabela 2). Houve correlação entre albumina e triglicerídeos (r = 0,34, p < 0,001). Na análise múltipla, somente a concentração de albumina e a dose AEE foram independentemente associadas com os níveis de Hb (Tabela 3).
Figura 1 Correlações entre concentrações de hemoglobina e albumina (A), saturação de transferrina (B) e triglicerídeos (C).
Tabela 2 Correlação entre hemoglobina e outras variáveis
Variáveis | r | p |
---|---|---|
Idade (anos) | 0,02 | 0,86 |
Tempo de tratamento conservador (meses) | 0,10 | 0,26 |
Tempo em DP (meses) | -0,06 | 0,50 |
Tempo total de TRS (meses) | -0,01 | 0,93 |
IMC (kg/m2) | 0,06 | 0,50 |
Dose de AEE (UI/sem) | -0,23 | 0,01 |
Dose de hidróxido de ferro (mg/sem) | -0,20 | 0,03 |
Saturação de transferrina (%) | 0,20 | 0,03 |
Ferritina (μg/l) | 0,12 | 0,20 |
LDL- colesterol (mg/dl) | -0,02 | 0,86 |
HDL- colesterol (mg/dl) | -0,12 | 0,20 |
Triglicerídeos (mg/dl) | 0,24 | 0,01 |
Paratormônio (ng/dl) | -0,03 | 0,76 |
Albumina (g/dl) | 0,38 | 0,01 |
Tabela 3 Regressão logística para determinar fatores associados com anemia
Variáveis | coeficiente β | p | 95% CI |
---|---|---|---|
Genero (masculino) | -0,26 | 0,20 | -0,660 até 0,150 |
Albumina (mg/dl) | 0,85 | 0,00 | 0,387 Até 1,310 |
Saturação de transferrina (%) | 0,06 | 0,43 | -0,008 Até 0,019 |
Triglicerídeos (mg/dl) | 0,95 | 0,91 | -0,002 Até 0,002 |
Dose de AEE (UI/ sem) | -0,06 | 0,02 | 0,000 Até 0,000 |
Dose de hidróxido de ferro (mg/sem) | -0,02 | 0,30 | -0,003 Até 0,001 |
No presente estudo, anemia foi observada em aproximadamente 30% dos pacientes em programa de diálise peritoneal, com uso irrestrito de AEE e suplementação intravenosa de ferro. A saturação de transferrina e o estado nutricional, avaliado pela albumina, foram os fatores independentes associados à concentração de hemoglobina nesta população.
A prevalência de anemia em pacientes com DRC varia de 7 a 86%.2,13-15 Essa grande variabilidade pode ser parcialmente explicada pelos diferentes critérios utilizados na definição de anemia e pela heterogeneidade das populações estudadas, que incluem pacientes na pré-diálise, e nas diferentes terapias renais substitutivas. Em pacientes em diálise, diferentemente da definição da Organização Mundial da Saúde, a anemia é caracterizada por valores de Hb abaixo daqueles preconizados como alvo terapêutico.16 Em estudos em diálise peritoneal nos quais a anemia foi definida por Hb < 11 g/dl, a prevalência variou de 18% a 57%,11,17 e quando a anemia foi definida por Hb < 10 g/dl, variou de 14% a 25%.18-21 Um estudo brasileiro que incluiu mais de 2.000 pacientes em programa de DP demonstrou a presença de anemia, definida por Hb < 11 g/dl, em 57% dos pacientes incidentes e em 38% destes pacientes após um ano de seguimento.17 Nesse estudo os autores observaram que a falta de tratamento pré-dialítico adequado e a presença de tratamento prévio em HD foram os fatores determinantes da anemia. Vale ressaltar que, no presente estudo, a maioria dos pacientes havia recebido tratamento conservador por um período médio de 25 meses antes de iniciar DP, e um terço havia recebido tratamento hemodialítico e nenhum destes fatores foi associado à presença de anemia.
A deficiência relativa de eritropoetina é a principal causa de anemia em pacientes com DRC,22 entretanto, outros fatores contribuem para o aparecimento da anemia nessa população, sendo a deficiência de ferro a mais comum.22 Esta complicação ocorre tanto em pacientes com DRC em tratamento conservador como naqueles submetidos à terapia dialítica, com prevalência entre 43% a 70%.14,22,23 Quase um terço dos pacientes apresentaram deficiência de ferro, no presente estudo, e o ISAT era mais baixo no grupo com anemia. Cabe salientar que 47% dos pacientes receberam suplementação de ferro. Dados similares têm sido descritos em outros estudos, com taxas que variam de 42 a 74%.17,20 Entretanto, diferentemente de outras populações estudadas, todos os pacientes que receberam suplementação de ferro neste estudo, a administração foi intravenosa.
Segundo a Sociedade Brasileira de Nefrologia, cerca de 80% dos pacientes em diálise usavam AEE, no Brasil no período de 2010 a 2011.24 Neste estudo, apesar dos AEEs estarem prescritos para 87,5% dos pacientes, um terço deles permaneceu anêmico. O fato de a administração de AEE ter sido realizada por via subcutânea pelos próprios pacientes em seus domicílios não permite a verificação de adesão ao tratamento nesta população e a diminuição de aderência pode ter contribuído para ocorrência de anemia. Deve-se considerar também que aumentos e reduções das doses de AEE de acordo com o resultado de exames do mês anterior contribuem de forma significativa para variabilidade de hemoglobina, que é muito frequente nesta população.17
A ocorrência de hipoalbuminemia em aproximadamente metade dos pacientes foi semelhante àquela descrita em populações submetidas à DP, que varia de 34% a 49%.10,25 Vários estudos têm mostrado uma associação entre baixos níveis de albumina e aumento do risco de morbidade e mortalidade em pacientes submetidos à diálise,26-31 sugerindo que os níveis de albumina podem indicar a presença de desnutrição e inflamação nesta população.30,31 Baixos níveis de triglicerídeos têm sido associados à presença de desnutrição em pacientes em HD.31 No presente estudo, observou-se uma correlação entre triglicérides e albumina. É interessante notar que foi observada uma associação entre baixos níveis de triglicérides e presença de anemia, o que sugere que a desnutrição pode ser um componente importante na patogênese da anemia nesta população. Além disso, uma correlação entre as concentrações de albumina e Hb também foi observada, assim como previamente descrita em uma coorte de crianças em DP23 e em pacientes em HD.15
Por outro lado, a albumina é uma proteína negativa da fase aguda da inflamação e não tivemos acesso a outros marcadores inflamatórios para confirmar a contribuição de inflamação na anemia nesses pacientes. As limitações do presente estudo incluem tamanho da amostra relativamente pequeno, desenho retrospectivo, falta de outros marcadores inflamatórios e do estado nutricional, contudo, este estudo foi capaz de identificar fatores associados à ocorrência de anemia em pacientes submetidos à diálise peritoneal.