versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192
BrJP vol.1 no.2 São Paulo abr./jun. 2018
http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20180028
A síndrome dolorosa miofascial (SDM) é uma das causas mais comuns de dor musculoesquelética, acometendo os músculos, tecido conectivo e fáscias, principalmente da região cervical. Comprometendo 21 a 90% dos indivíduos com queixas de dor regionalizada, a SDM pode ocorrer isolada ou associada a vários fatores, tornando, assim, difícil o diagnóstico e o tratamento1-3.
Clinicamente, a SDM manifesta-se com alguns componentes essenciais, incluindo o ponto-gatilho (PG), o espasmo muscular segmentar, a dor referida e o envolvimento de tecidos moles, com variados graus de dor2,4. No paciente portador da SDM, o diagnóstico é realizado através da história clínica e exame físico, principalmente a palpação dos PG5. Quando o diagnóstico é estabelecido, deve-se escolher o tipo de tratamento a ser empregado para a SDM, visando a eliminação do PG, a restauração da amplitude de movimento e da força muscular6,7.
Os PG manifestam-se clinicamente como nódulos discretos, endurecidos e dolorosos, cuja patogenia ainda não é bem definida, porém, acredita-se que esse fenômeno se deva ao enclausuramento das terminações nervosas nas fibras musculares, desencadeando a sensibilização. Devido a sua alta sensibilidade à pressão digital, os portadores do PG manifestam fuga motora, denominados sinais de ressalte, ou dor referida em locais próximos4,5,8,9.
Diversos tratamentos são utilizados com a finalidade de restaurar a qualidade de vida do paciente portador da SDM. A liberação do músculo e da fáscia, realizada por meio da pressão manual sobre os PG, é o tratamento mais efetivo, porém, causa sensação de desconforto e dor durante sua realização. A diminuição da dor no PG ativo, pode acontecer confeccionando-se um “coating” (casaco anestésico) ao redor da área dolorosa a ser tratada1,2,10,11.
Existem diferentes tipos de anestésicos com diferentes bases, que podem ser aplicados em tecidos superficiais para os tratamentos associados à dor. A lidocaína tem sua eficácia comprovada na SDM na forma de patch, aderido à região cutânea do PG, porém seu efeito é a longo prazo, o que inviabiliza seu uso na clínica terapêutica no momento da intervenção2,12-15.
A literatura apresenta inúmeros trabalhos sobre a SDM, porém não há abordagem às técnicas de aplicação de anestésicos tópicos, como forma preventiva da dor, provocada por atos de diagnóstico, e/ou tratamento em SDM durante a manipulação de PG. Dessa maneira, justifica-se a proposta do presente estudo de avaliar qual a concentração mais eficiente e intervalo de tempo para a ação analgésica tópica da lidocaína utilizada em região de bandas tensas sobre PG ativos durante o procedimento de liberação miofascial.
Trata-se de um estudo piloto prospectivo, realizado com a finalidade de calibrar instrumentos para estudo posterior, com amostra maior, vinculado ao Mestrado Profissional em Ciências Aplicadas à Saúde da Universidade do Vale do Sapucaí, Pouso Alegre, MG.
O cálculo amostral foi realizado, utilizando o programa Gpower versão 3.1.9.2 (Universidade de Dusseldorf, Alemanha), estabelecendo um total de 5 pacientes para análise preliminar. A amostra foi constituída por pacientes voluntários sadios, não gestantes, com idade entre 30 e 65 anos, de ambos os sexos, sem restrição quanto à etnia, escolaridade e classe social, ausentes de hipersensibilidade a anestésicos locais. Os pacientes que aceitaram participar da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Os voluntários foram avaliados em consulta individual pelo pesquisador. O primeiro procedimento realizado foi o diagnóstico, localização e mapeamento do PG, conforme os critérios de avaliação de PG estabelecidos na literatura4,5,8,9. A área avaliada foi estabilizada, por meio da colocação da mão do operador devidamente calibrado sobre o paciente, em local não doloroso, próximo ao PG. Realizou-se a palpação do músculo, para localização da banda tensa, com a finalidade de encontrar a área mais sensível, selecionando assim as fibras musculares em que os PG referiam dor na área afetada. Realizou-se a compressão no PG, e o paciente foi questionado sobre a presença de dor, em seguida mapeou o PG, utilizando-se uma caneta esferográfica para demarcação da área do ponto, através de circunferência.
O anestésico de escolha para a realização do estudo foi a lidocaína em forma de gel/creme base2,16. Os pacientes foram avaliados antes e após a aplicação da lidocaína, por meio da compressão digital do PG, mapeado previamente por cinco segundos, utilizando-se um questionário com escores dicotômicos definidos em “sim” e “não”, relativos à presença e/ou ausência de dor respectivamente. Foi feita a aplicação dos fármacos em concentrações a 2, 4 e 7%, e espera de três tempos para realização do procedimento (3, 5 e 10 minutos)16, submetidos ao procedimento em diferentes sessões.
O estudo foi realizado no Centro de Especialidades Odontológicas (CEO) na cidade de Três Corações, Minas Gerais, Brasil. Submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNIVAS, Plataforma Brasil, parecer 1.512.271 de 2016.
As informações coletadas a partir dos questionários foram transcritas para um banco de dados (Microsoft Excel® - Microsoft Corporation) e analisadas estatisticamente com o suporte do software SPSS® 20 for Windows (Statistical Package for Social Sciences). Os dados foram submetidos à análise estatística descritiva e os resultados foram expressos em porcentagem.
Os instrumentos calibrados no presente estudo foram a concentração de lidocaína utilizada e o tempo de efeito do fármaco para executar o procedimento fisioterápico. A análise estatística descritiva demonstrou que houve resposta dolorosa em todas as concentrações da lidocaína relacionadas aos tempos avaliados, exceto para 7% de lidocaína no tempo de 10 minutos (Tabela 1). Os resultados estão expressos pela figura 2, com a relação tempo/concentração.
Tabela 1 Respostas negativas ao questionário de dor à compressão
Paciente 1 | Paciente 2 | Paciente 3 | Paciente 4 | Paciente 5 | Total | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Concentração do anestésico | 2% | Tempo | 3 min | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | |
5 min | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | ||||
10 min | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | ||||
4% | Tempo | 3 min | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | ||
5 min | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | ||||
10 min | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | ||||
7% | Tempo | 3 min | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | ||
5 min | 0 | 1 | 0 | 0 | 1 | 40% | |||
10 min | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 100% |
A dor crônica afeta cerca de 100 milhões de adultos, os quais têm sua qualidade de vida e impacto social incalculavelmente afetados por fármacos, incapacitação para o trabalho, e depressão. A SDM é um distúrbio muscular manifestado pela dor crônica com alta prevalência e difícil diagnóstico. O controle e o alívio da dor são necessários para a manutenção do bem-estar e da qualidade de vida do indivíduo portador da SDM, justificando a realização do presente estudo1,2,4,9,17-20.
A massagem do PG durante a terapia de liberação miofascial torna-se um procedimento doloroso, devido a ativação de citocinas pró-inflamatórias na região, acumuladas pela contração muscular regional persistente3,4,15,21. Borg-Stein e Laccarino2 relataram que o tratamento da SDM deve iniciar-se pela prevenção da formação dessas citocinas. Uma das formas de tratamento propostas pelos autores é a aplicação de anestésico local por via infiltrativa na região para alívio dos sintomas dolorosos. Essa metodologia tem se mostrado eficaz em diversos estudos, inclusive utilizando-se a bupivacaína associada a antidepressivo19,22-24. Xie et al.25 corroboram esses estudos, apresentando a injeção de lidocaína como terapia, diminuindo a intensidade, duração e frequência da dor dos pacientes tratados após seis meses de terapia. Porém essa forma de tratamento apresenta falhas, incluindo, medo do paciente à injeção, possível formação do estímulo doloroso e complicações cardiovasculares associadas à injeção de antidepressivos2,18,19,22.
Outra forma de tratamento proposta é a aplicação de anestésico de forma tópica, possuindo uma história expressiva de eficácia e segurança para a realização de procedimentos dermatológicos22. Para o tratamento da SDM, os fármacos mais utilizados estão disponíveis na forma de patch de lidocaína a 5% e a mistura eutética de anestésicos locais como a EMLA (Eutectic Mixture of Local Anesthetics), na forma de creme, contendo prilocaína a 2,5% e lidocaína a 2,5%2,18,26. Rauck, Busch e Marriott27 observaram em seus estudos que o efeito da lidocaína em forma de patch associado ao calor diminuiu significativamente a dor durante o procedimento de liberação do PG. Firmani, Miralles e Casassus28 utilizaram a lidocaína em forma de patch em concentração de 5% para comparar ao placebo em relação à intensidade de dor e atividade eletromiográfica do músculo trapézio, sendo este, possível fator agravante da SDM quando encontrado em superatividade. Esses autores observaram que a intensidade de dor e a atividade eletromiográfica diminuíram nos pacientes do grupo lidocaína, demostrando sua eficácia de tratamento. O EMLA tem sido amplamente utilizado, tendo sua eficácia relatada quando comparadas a outras terapias2,18,29,30, porém esses fármacos não satisfazem a sua utilização nos pacientes portadores de SDM. O tempo de espera para sua efetividade é em torno de uma a cinco horas, impossibilitando a utilização para a liberação dos PG durante a sua manipulação. A utilização de patch foi uma terapêutica desenvolvida de forma a permanecer por longos períodos aderido ao paciente, não possuindo efetividade total no controle da dor. O desenvolvimento de um protocolo anestésico local de ação rápida para a realização do tratamento dos PG auxiliará na melhora da dor durante a sua manipulação5,16. O uso do gel anestésico desenvolvido para o presente estudo influenciou na diminuição da dor durante a manipulação do PG, de forma que os pacientes não apresentaram o sinal de ressalte durante a sua compressão, indicando total dessensibilização da área em um curto período, facilitando a remoção das citocinas locais.
A lidocaína em gel tem eficácia comprovada quando utilizada em tecido mucoso, como a mucosa uterina, geniturinária e mucosa oral20,23,24,31-34. Pereira et al.35 demonstraram que o uso da lidocaína em gel a 5% em cirurgias oculares, apresentou resultados eficazes quanto a injeção prévia subconjuntival de lidocaína. Em tecido cutâneo, apesar de menor efetividade, a lidocaína demonstra resultados promissores em concentrações superiores a 5%23,36. Porém, Bastazini Júnior et al.31 relataram que a maior concentração de anestésico não influencia na sensibilidade durante os procedimentos dermatológicos quando comparados à mesma formulação em baixa concentração. Quando a lidocaína é utilizada em baixa concentração, apresenta resultados analgésicos inferiores. Segundo Arab et al.37 a concentração de lidocaína a 2% apresentou menor efeito analgésico local comparado a outras terapias como a utilização de pontas geladas, durante venopunção de fístulas arteriovenosas. Em contrapartida, o presente estudo demonstrou que o anestésico utilizado na concentração de 7%, obteve o pico analgésico após 10 minutos de sua aplicação, sendo comparada a outras concentrações utilizadas com períodos semelhantes, nas quais houve resposta dolorosa. Fato esse que o torna viável para a prática clínica quando utilizado a 7% após 10 minutos de aplicação.
Não foram encontrados na literatura estudos realizados com a aplicação de gel anestésico para a manipulação do PG durante o tratamento da SDM. Devido à escassez de evidências dessa metodologia de tratamento, torna-se necessária a realização de novos estudos clínicos fisioterápicos que desenvolvam um protocolo de anestésico local, com a finalidade de proporcionar alívio da dor causada por procedimento de liberação miofascial. O presente estudo piloto calibrou instrumentos para que um estudo com casuística maior pudesse ser realizado.
O presente estudo definiu como protocolo a utilização de anestésico tópico a 7% de lidocaína em tempo de utilização de 10 minutos.