versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.110 no.1 São Paulo jan. 2018 Epub 01-Fev-2018
https://doi.org/10.5935/abc.20170181
A fibrilação atrial é causa de um em cada quatro acidentes vasculares cerebrais, que podem ser prevenidos com anticoagulação oral, uma terapia subutilizada globalmente. Considerando os desafios desse tratamento, instrumentos de saúde móvel para suporte à decisão compartilhada podem melhorar o conhecimento do paciente e otimizar o processo decisório.
Desenvolver e avaliar um aplicativo móvel para suporte à decisão compartilhada na profilaxia tromboembólica em fibrilação atrial.
Foi desenvolvido um aplicativo para ser usado durante a consulta médica, contendo um vídeo sobre fibrilação atrial, calculadoras de escores de risco, gráficos explicativos e orientações sobre os fármacos disponíveis para o tratamento. Durante o desenvolvimento, 30 pacientes interagiram com o aplicativo, que foi avaliado qualitativamente e pela aplicação de um questionário de conhecimento sobre a doença e de uma escala de conflito em tomadas de decisão.
O número de acertos no questionário de conhecimento sobre a doença teve um aumento significativo após a interação com o aplicativo (de 4,7 ± 1,8 para 7,2 ± 1,0, p < 0,001). A escala de conflito em tomadas de decisão, aplicada após a escolha da terapia com o suporte do aplicativo, resultou em uma média de 11 ± 16/100 pontos, indicando baixo conflito decisório.
O uso de um aplicativo móvel durante a consulta sobre anticoagulação em fibrilação atrial melhora o conhecimento sobre a doença, permitindo uma escolha compartilhada com baixo conflito decisório. Mais estudos são necessários para verificar se isso se traduz em benefício clínico.
Palavras-chave: Anticoagulantes / uso terapêutico; Fibrilação Atrial; Acidente Vascular Cerebral; Hemorragia; Adesão à Medicação; Telemedicina
Atrial fibrillation is responsible for one in four strokes, which may be prevented by oral anticoagulation, an underused therapy around the world. Considering the challenges imposed by this sort of treatment, mobile health support for shared decision-making may improve patients’ knowledge and optimize the decisional process.
To develop and evaluate a mobile application to support shared decision about thromboembolic prophylaxis in atrial fibrillation.
We developed an application to be used during the clinical visit, including a video about atrial fibrillation, risk calculators, explanatory graphics and information on the drugs available for treatment. In the pilot phase, 30 patients interacted with the application, which was evaluated qualitatively and by a disease knowledge questionnaire and a decisional conflict scale.
The number of correct answers in the questionnaire about the disease was significantly higher after the interaction with the application (from 4.7 ± 1.8 to 7.2 ± 1.0, p < 0.001). The decisional conflict scale, administered after selecting the therapy with the app support, resulted in an average of 11 ± 16/100 points, indicating a low decisional conflict.
The use of a mobile application during medical visits on anticoagulation in atrial fibrillation improves disease knowledge, enabling a shared decision with low decisional conflict. Further studies are needed to confirm if this finding can be translated into clinical benefit.
Keywords: Anticoagulants / therapeutic use; Atrial Fibrillation; Stroke; Hemorrhage; Medication Adherence; Telemedicine
A Fibrilação Atrial (FA) afeta 33,5 milhões de pessoas mundialmente1 e é causa de 28% de todos os Acidentes Vasculares Cerebrais (AVC).2 A profilaxia com anticoagulantes orais (ACO) é capaz de reduzir o risco de AVC em 60-70%,3-6 no entanto com risco de sangramento variável.
As diretrizes de FA recomendam a aplicação dos escores de risco CHA2DS2-VASc (para AVC) e HAS-BLED (para sangramento), no intuito de reconhecer os pacientes que mais se beneficiarão dos anticoagulantes.7-10 Mais recentemente, o escore de SAMe-TT2R211 foi validado para predizer um mau controle da anticoagulação com cumarínicos, auxiliando na escolha do tipo de anticoagulante. Diversos outros escores também estão disponíveis,12 no entanto, seu uso deve ser criterioso. A atual diretriz europeia,8 por exemplo, indica o uso dos escores de sangramento para identificar fatores de risco modificáveis para sangramento maior e não para contraindicar a anticoagulação. Além disso, os escores não levam em consideração as preocupações, objetivos e valores dos pacientes, assim como não avaliam custos, posologia e periodicidade de consultas e exames, fatores que impactam na aderência medicamentosa.13 A complexidade desse processo decisório reflete-se no número subótimo de pacientes que recebem prescrição de ACO, que mantêm sua anticoagulação no alvo e que aderem à medicação.13-15
Novas abordagens para o manejo de doenças crônicas têm frisado a centralização no paciente, ao qual são fornecidas ferramentas para uma decisão compartilhada sobre seus tratamentos, melhorando desfechos e a efetividade dos sistemas de saúde.16,17 Os pacientes com FA parecem ser especialmente propensos a se beneficiar dessas estratégias, dada a importância da apropriação do paciente de decisões que exigem ação própria, como tomar a medicação e monitorar o tratamento.18
A tecnologia de saúde móvel - referida mais comumente pelo seu termo em inglês, mobile health (mHealth) - parece promissora em expandir a cobertura dos cuidados de saúde, facilitar a tomada de decisões e melhorar o manejo de doenças crônicas.17-20 Em 2015, mais de 3 bilhões de downloads de aplicativos (apps) de saúde foram feitos ao redor do mundo.21 É importante que essa nova tecnologia inclua também grupos específicos como idosos e adultos de baixa renda com acesso limitado à comunicação móvel.18,22 Neste artigo, descrevemos o desenvolvimento de um aplicativo em mHealth para ser usado durante a consulta médica, com o objetivo de facilitar a decisão compartilhada sobre a profilaxia tromboembólica na FA. O aplicativo foi testado em pacientes de baixa renda e baixa escolaridade medindo-se o conhecimento sobre a doença antes e após seu uso.
A equipe de desenvolvimento foi composta por uma cardiologista, um eletrofisiologista, um desenvolvedor de software e uma designer.
Inicialmente, foram definidos os seguintes aspectos fundamentais: condição/problema a ser abordado (profilaxia tromboembólica na FA); usuário/população-alvo (pacientes com FA e baixo nível sócio-econômico-cultural); metas iniciais do aplicativo (aumento de conhecimento sobre a doença e o tratamento); situação na qual o aplicativo seria utilizado (durante a consulta médica); dispositivo para a versão inicial (tablet do médico) e linguagens de programação (Android e iOS).
Foi então realizada ampla revisão literária, incluindo os principais ensaios clínicos randomizados, revisões sistemáticas, metanálises e diretrizes sobre FA e ACO, de onde foram identificados os principais escores a serem utilizados e as informações mais relevantes a serem transmitidas ao usuário.
Com o intuito de traduzir essa informação em conhecimento para o paciente, foi desenvolvida uma navegação simplificada em cinco telas (Figura 1): (1) Conhecendo a doença - um vídeo sobre como ocorre a FA e como ela pode causar um evento tromboembólico; (2) Individualizando os riscos - uma calculadora integrada com os escores de CHA2DS2-VASc, HAS-BLED e SAMe-TT2R2;11 (3) Entendendo riscos e benefícios - uma tela com pictogramas para visualização das porcentagens de risco de AVC e sangramento com cada opção de tratamento; (4) Conhecendo as opções de tratamento - um resumo das principais características dos fármacos disponíveis; e (5) Fazendo uma escolha - a tela final, em que as informações são salvas e o número de celular do paciente pode ser cadastrado para continuar recebendo informações, via Short Message Service (SMS).
Figura 1 Telas principais do aplicativo aFib, desenvolvido para auxiliar na decisão compartilhada sobre profilaxia tromboembólica na fibrilação atrial.
Esse formato de navegação priorizou os pontos principais, proporcionando acesso adicional a informações mais detalhadas pelos links, conforme necessidade dos usuários. Por exemplo, na área das medicações, são informados posologia, custo aproximado, vantagens e desvantagens de cada fármaco e pode-se acessar por um link a bula oficial da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Também o uso da tecnologia de push, por meio de SMS, é uma estratégia para aumentar o fornecimento de informações sem sobrecarregar o paciente em apenas um encontro. Periodicamente, são enviados lembretes sobre a importância de aderir à medicação, realizar exames, além de conteúdo sobre a doença, que pode ser salvo e consultado na caixa de mensagens.
Optou-se por um design limpo e claro, com um código de cores para os riscos e utilizando informação gráfica sempre que possível para complementar a informação escrita. A terminologia foi adaptada para se adequar aos usuários-alvo. As informações pessoais de saúde foram protegidas com uma identificação única e criptografadas. Uma política de privacidade foi apresentada ao usuário antes do uso.
Estudo de intervenção em pacientes identificados com FA no ambulatório de anticoagulação do Instituto de Cardiologia de Porto Alegre, nos meses de abril e maio de 2016.
A população estudada compreendeu pacientes em acompanhamento no ambulatório de anticoagulação, durante a espera para a coleta do tempo de protrombina (TP). Antes de iniciar o acompanhamento nesse ambulatório, os pacientes recebem as orientações referentes a sua doença e ao uso de ACO em consulta com seu médico assistente e, após, recebem orientações sobre o ajuste da dose a cada 1 a 3 meses. Em 10 manhãs aleatórias de aplicação da intervenção, foram convidados a participar do estudo todos os pacientes com FA que compareceram para coleta, sem nenhuma recusa. Nenhum paciente apresentou deficiência visual, auditiva ou cognitiva graves que impedissem a interação com o aplicativo, que seriam critérios de exclusão.
No projeto piloto, a versão beta do aplicativo foi usada em consulta com 10 pacientes, que forneceram feedback sobre questões como usabilidade, linguagem escrita e visual, entendimento das informações, design e adequabilidade do tempo para percorrer as telas. Antes da consulta, foi aplicado um questionário desenvolvido pelos pesquisadores para verificar o nível de conhecimento médio dessa população sobre FA. Esse questionário procurou avaliar o mínimo de informações essenciais que o paciente precisaria ter para compreender sua condição e aderir ao tratamento. Eram feitas 8 afirmações e o paciente podia escolher entre “verdadeiro”, “falso” ou “não sei”. Todas as afirmações eram verdadeiras. O resultado foi de uma média de 5,9 acertos sobre um total de 8 (73% de acertos), com desvio padrão de 1,37. Em estudo prévio nesse mesmo ambulatório, a taxa de acertos em escore de conhecimento havia sido de 64%.19 Estimando-se que, após a intervenção explanatória, esse número de acertos aumentasse para 8 pontos (100% de acertos), foram necessários 18 pacientes para um erro alfa de 5% e um erro beta de 90%.
Após ajustes realizados com o feedback dado pelos pacientes no projeto piloto, o aplicativo foi testado em uma amostra de 20 pacientes.
Como desfecho primário, analisamos a pontuação dos pacientes no questionário de conhecimento sobre a doença, antes e após a interação com o aplicativo.
Como desfecho secundário, foi avaliada a pontuação dos pacientes na Escala de Conflito em Tomadas de Decisão em Saúde (ECTDS) de O’Connor,20 utilizada para a avaliação de estratégias de decisão compartilhada.20,21 A ECTDS foi validada para a língua portuguesa em 2013 por Martinho et al.,22 e inclui questionamentos sobre incerteza, conhecimento, valores e suporte fornecido. O escore resultante das questões varia de 0 (nenhum conflito decisional) a 100 (conflito decisional extremamente alto).
Ainda como desfecho secundário, foi analisada a percepção de risco de AVC e de sangramento com o uso de ACO. Os pacientes foram questionados se acreditavam ter um risco baixo, moderado ou alto de cada evento. Essa pergunta foi repetida após a interação com o aplicativo e os resultados foram comparados o risco “real”, calculado pelos escores de CHA2DS2-VASc e HAS-BLED.
Os dados foram analisados no programa SPSS versão 20.0. Foram elaboradas tabelas de frequências absolutas e percentuais para caracterização da amostra. A normalidade dos dados foi testada por meio do teste de Shapiro-Wilk.
As variáveis contínuas com distribuição normal foram descritas em médias e desvios-padrão e as com distribuição não normal em medianas e intervalos interquartis. As médias do escore de conhecimento sobre a doença antes e após a intervenção foram comparadas pelo teste t de Student pareado e a percepção de risco foi comparada pelo teste de Wilcoxon. O nível de significância adotado foi p < 0,05.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Fundação Universitária do Instituto de Cardiologia. Foram mantidos sigilo, privacidade e anonimato dos dados coletados e aplicado termo de consentimento livre e esclarecido aos pacientes.
A idade média dos 20 pacientes estudados foi de 67,7 anos, a maioria era do sexo masculino (60,0%), de cor branca (83,3%) e residiam com familiares (53,3%). A escolaridade foi autorreportada como ensino fundamental incompleto em 73,3% dos casos, sendo que 33,3% estudaram menos de 4 anos. A renda familiar era menor do que 2 salários mínimos em 53,3% dos pacientes. A maioria dos pacientes usava anticoagulantes há pelo menos um ano (66,7%). A Tabela 1 resume as características socioeconômicas da população estudada e o tempo de anticoagulação.
Tabela 1 Características socioeconômicas da população e tempo de uso de anticoagulantes
Características | |
---|---|
Idade (anos) | 67,7 ± 9,4 |
Sexo masculino (%) | 60 |
Cor branca (%) | 83,3 |
Com quem moram | |
Sozinhos (%) | 16,7 |
Companheiro (a) (%) | 26,7 |
Família (%) | 53,3 |
Instituição (%) | 3,3 |
Escolaridade | |
0-4 anos (%) | 33,3 |
5-8 anos (%) | 40 |
>8 anos (%) | 26,7 |
Renda Familiar | |
4-10 salários mínimos (%) | 26,7 |
2-4 salários mínimos (%) | 20 |
< 2 salários mínimos (%) | 53,3 |
Tempo de Anticoagulação | |
< 1 mês (%) | 13,3 |
1 - 11 meses (%) | 13,3 |
1-5 anos (%) | 33,3 |
> 5 anos (%) | 33,4 |
Não faz uso atualmente | 3,3 |
A Tabela 2 mostra as prevalências dos principais fatores de risco incluídos nos escores CHA2DS2-VASc, HAS-BLED e SAMe-TT2R2, bem como a pontuação média dos pacientes nesses escores. Entre as comorbidades, as mais prevalentes foram hipertensão arterial (80%), diabetes mellitus (30%) e insuficiência cardíaca (30%). Em relação aos outros fatores que interferem no risco de sangramento e na anticoagulação, os mais comuns foram o uso de medicamentos que interagem com cumarínicos (43,3%) e o uso de antiplaquetários ou anti-inflamatórios (26,7%). A maioria dos pacientes (86,6%) tinha um CHA2DS2-VASc maior ou igual a 2 e 76,6% tinham um escore de SAMe-TT2R2 também maior ou igual a dois.
Tabela 2 Prevalência das variáveis presentes nos escores de CHA2DS2-VASc, HAS BLED e SAMe-TT2R2 e média dos escores
Hipertensão arterial sistêmica (%) | 80 |
Pressão arterial sistólica > 160mmHg (%) | 10 |
Diabetes Mellitus (%) | 30 |
Insuficiência cardíaca congestiva ou fração de ejeção < 40% (%) | 30 |
Doença cardiovascular (%) | 23,3 |
Acidente vascular cerebral ou acidente isquêmico transitório prévios (%) | 16,7 |
Doença hepática* (%) | 0 |
Doença renal † (%) | 6,7 |
Doença pulmonar (%) | 16,7 |
RNI de difícil controle ou lábil ‡ (%) | 23,3 |
História de sangramento maior ou predisposição (%) | 16,7 |
Uso de antiplaquetários ou anti-inflamatórios (%) | 26,7 |
Uso de medicamentos que interagem com cumarínicos (%) | 43,3 |
Uso abusivo de álcool (%) | 3,3 |
Tabagismo (%) | 10 |
CHA2DS2-VASc ≥ 2 § (%) | 86,6 |
CHA2DS2-VASc por escore (%) | |
0 | 3,3 |
1 | 10 |
2 | 23,4 |
3 | 23,4 |
4 | 20 |
5 | 13,3 |
7 | 3,3 |
8 | 3,3 |
CHA2DS2-VASc médio | 3 ± 1,8 |
HAS-BLED médio | 2 ± 1,2 |
SAMe-TT2R2 ≥ 2 // (%) | 76,6 |
*Doença hepática crônica (ex: cirrose), ou evidência bioquímica de disfunção hepática significativa (bilirrubinas > 2 a 3 vezes o limite superior, transaminases ou fosfatase alcalina > 3 vezes o limite superior);
†Hemodiálise crônica, transplante renal, creatinina sérica > 2,2 mg/dl;
‡ Que está no alvo < 60% das vezes;
§ Um escore ≥ 2 indica necessidade de anticoagulação; // Um escore ≥ sinaliza os pacientes que necessitam de intervenções adicionais para atingir um controle de anticoagulação aceitável com cumarínicos.
O número de acertos no questionário de conhecimento sobre a doença teve um aumento significativo após a interação com o aplicativo, de 4,7 (± 1,8) para 7,2 (± 1,0), p < 0,001. A Figura 2 ilustra os acertos de cada paciente antes e após a interação.
Figura 2 Médias de acertos no questionário sobre a doença antes (4,7) e após (7,2) a intervenção, comparadas por teste T de amostras pareadas, mostrando um aumento significativo do conhecimento dos pacientes após a interação com o aplicativo. As barras demonstram o desvio padrão e os círculos a pontuação de cada paciente. FA: Fibrilação Atrial, App: Aplicativo.
A ECTDS aplicada após a escolha da terapia com o suporte do aplicativo resultou em uma média de 11 ± 16/100 pontos.
Quanto à percepção de risco, antes da interação com o aplicativo, 20% dos pacientes tinham uma percepção adequada do seu risco de AVC e 75% acreditavam ter um risco menor do que o risco real. Após a interação, a percepção adequada aumentou para 30%, com p não significativo (0,608). No que concerne ao risco de sangramento, antes de receber as informações do app, 45% dos pacientes demonstravam uma percepção correta e 35% acreditavam ter um risco maior do que o real. Após o app, houve um aumento não significativo (p = 0,218) na percepção adequada, para 60%. A Figura 3 ilustra as variações nas percepções de risco.
Figura 3 Percepção de risco de AVC e sangramento pelos pacientes antes e após a interação com o aplicativo, comparada ao seu risco “real”, calculado pelos escores de CHA2DS2-VASc e HAS-BLED, mostrando um aumento não significativo na percepção adequada de risco. O teste utilizado para comparação foi o de Wilcoxon. AVC: Acidente Vascular Cerebral, App: Aplicativo.
O desenvolvimento de aplicativos em mHealth direcionados para populações e problemas de saúde específicos é viável e deve ser estimulado. Este estudo em pacientes de baixa renda e baixa escolaridade demonstrou aumento do conhecimento sobre FA e anticoagulação após o uso de um aplicativo, possibilitando ao paciente uma escolha compartilhada sobre anticoagulação com baixo conflito decisório. No entanto, a percepção de risco de AVC e sangramento não foi alterada pelo uso do aplicativo.
A profilaxia tromboembólica na FA é um problema global, sendo subutilizada, de difícil manutenção e sabidamente propensa à má aderência.23 Uma das estratégias propostas para otimizar a utilização dos ACO é a decisão compartilhada, hoje recomendada pelas diretrizes como parte de um manejo integrado da doença, sendo indicador de qualidade de desempenho clínico.8,24 O entendimento do paciente sobre a terapia e sua análise individual do risco-benefício é crucial nesse processo.25 No entanto, existem lacunas significativas nesse conhecimento, mesmo em pacientes em tratamento há vários anos.18
Diversos estudos citam instrumentos criados para facilitar as estratégias de decisão compartilhada na anticoagulação em FA, atuando por meio de mudança de comportamento e educação do paciente na forma de panfletos, folders, intervenções por vídeo ou softwares. Uma metanálise da Cochrane de 2013 revisou esses estudos, reportando que não existem evidências suficientes para avaliar o impacto dessas estratégias no Tempo de Razão Normalizada Internacional na faixa terapêutica (TTR, time in therapeutic range).26 Outra recente revisão concluiu que as estratégias de decisão com participação do paciente são poderosas ferramentas para melhorar o manejo da FA e que é necessário desenvolver e testar esses instrumentos.18 Subsequentemente, o estudo TREAT, um estudo randomizado e controlado de intervenção comportamental em pacientes que recentemente tinham iniciado varfarina, demonstrou significativa melhora na TTR em 6 meses, comparado com os cuidados usuais.27 Outro estudo com uma intervenção multiprofissional em cuidados com FA, incluindo suporte de software, conduzida por profissionais da enfermagem e supervisionada por cardiologista, demonstrou uma redução significativa no número de mortes cardiovasculares e hospitalizações (14,3 vs. 20,8%; razão de risco 0,65; CI 95% 0,45-0,93).28
Essas intervenções partem do princípio de que é responsabilidade do profissional de saúde o fornecimento das informações essenciais ao paciente e o estímulo à continuidade da busca por conhecimento. A tecnologia aparece como aliada nessa questão, facilitando o acesso, a organização, a transmissão e a retenção da informação. Em especial, a tecnologia móvel vem inaugurar uma nova era nos cuidados em saúde, trazendo o cuidado para mais perto do paciente e permitindo interações médico-paciente de maior qualidade.
Com um mercado em franca ascensão, o segmento mHealth contou, em 2015, com cerca de 45 000 editores e mais de 3 bilhões de downloads de apps.29 As avaliações existentes são, em geral, favoráveis. Um recente levantamento da American Heart Association sobre mHealth e prevenção de doenças cardiovasculares incluiu 69 estudos com apps para perda de peso, aumento de atividade física, cessação de tabagismo, controle glicêmico, hipertensão e dislipidemia. Os resultados, apesar de heterogêneos, foram positivos para as mudanças de comportamento propostas, sendo sugerido que os futuros estudos usem metodologia analítica mais rigorosa, amostras mais diversificadas e acompanhamento de longo prazo para verificar a sustentabilidade dos efeitos.30
Sobre a questão da população-alvo, destaca-se, na literatura, a necessidade de essas novas tecnologias abrangerem também outros grupos populacionais específicos: idosos com alterações relacionadas à idade (p.ex.: visão ou mobilidade reduzidas), minorias que necessitem de conteúdos e intervenções culturalmente sensíveis e adultos de baixa renda que podem ter acesso inconsistente à comunicação móvel.30-32
A FA é um tema bastante explorado em mHealth. A maioria dos estudos relata experiências sobre a utilização de dispositivos que permitem a monitorização domiciliar do ritmo cardíaco. Na questão da educação do paciente, a American Heart Association e a European Society of Cardiology, possuem aplicativos e material na web de excelente qualidade, em língua inglesa, para auxiliar na decisão compartilhada.33,34 Também estão disponíveis diversas calculadoras de risco para uso médico. No entanto, não se encontra na literatura a descrição do desenvolvimento desses aplicativos, tampouco sua avaliação. No Brasil, também não encontramos nenhum instrumento para suporte à decisão compartilhada em FA, seja em mHealth ou em outras mídias.
Como pontos fortes do nosso estudo, citamos que o desenvolvimento do aplicativo foi todo baseado em evidências, levando em conta muitos fatores citados em diretrizes de decisão compartilhada e de cuidados com o paciente anticoagulado.25,35 Foi incluída uma avaliação do nível de conhecimento prévio do paciente e o estilo de aprendizagem foi adequado às suas preferências de terminologia e navegabilidade. A quantidade e a profundidade das informações discutidas foram adaptadas e poderiam ser ampliadas ou reduzidas, conforme o entendimento de cada indivíduo.
Como outra vantagem, a possibilidade de salvar a avaliação do paciente para uma posterior consulta permite que o instrumento seja uma ponte dentro do cuidado multiprofissional. Em um ambulatório integrado, por exemplo, o paciente poderia assistir ao vídeo e ter seus fatores de risco avaliados durante a triagem e, na consulta médica, focar na discussão dos tratamentos.
Também a população escolhida foi apropriada para a implementação de uma estratégia de decisão compartilhada. A maioria dos pacientes tinha um escore de SAMe-TT2R2 maior ou igual a dois, indicando menor probabilidade de manter níveis de anticoagulação aceitáveis com o uso de cumarínicos e, portanto, uma necessidade maior de estratégias para controle adequado.
Os resultados encontrados na análise da percepção de risco pelo paciente mostram o quanto esse entendimento é inadequado e carece de atenção. A maioria dos pacientes acreditava ter um risco de AVC menor do que o calculado e um terço acreditava ter um risco de sangramento com o uso de ACO maior do que o calculado. Outros estudos mostraram resultados semelhantes sobre consciência de risco de AVC.36,37 Esse discernimento inadequado pode levar a má aderência ao tratamento, já que o paciente não se percebe em risco para eventos tromboembólicos e, ao mesmo tempo, acredita ter um risco alto de sangramento com a medicação. Após a interação com o app, não houve mudança significativa na percepção de risco. Na tentativa de melhorar essa percepção, na segunda versão do aplicativo, atualmente em teste, foi acrescentada a observação “Este é um risco considerado BAIXO/INTERMEDIÁRIO/ALTO”, com um código de cores para cada nível de risco (verde/amarelo/vermelho), junto às porcentagens exibidas na tela “Entendendo riscos e benefícios”.
Várias limitações são inerentes à criação de um instrumento que utiliza uma tecnologia relativamente nova para a nossa população. O tamanho da tela, os métodos de comunicação visual e a terminologia, embora tenham sido pensados com cuidado, podem ainda ser inadequados para alguns pacientes. É possível que a informação fornecida, mesmo adaptada, possa ter sido excessiva em alguns casos e que a retenção do conhecimento não se mantenha após alguns meses. Espera-se que a continuidade do fornecimento da informação por SMS possa suprir parte dessa questão. Além disso, a interação com o app pode ser repetida em outras consultas, sempre que necessário.
O pequeno número de pacientes avaliados também poderia ser questionado. No entanto, para estudos de avaliação de usabilidade de aplicativos, esse número é habitualmente pequeno e mostrou-se suficiente.38 Outra limitação atual é a necessidade de uma avaliação de desfechos de longo prazo, como TTR, aderência e ocorrência de eventos tromboembólicos e de sangramento. Espera-se que essa limitação seja eliminada futuramente, com um estudo de intervenção randomizado, inserindo o aplicativo no cuidado dos pacientes do nosso ambulatório de anticoagulação e o comparando com os cuidados habitualmente fornecidos.
O uso de um aplicativo em mHealth durante a consulta sobre anticoagulação em FA melhora o conhecimento sobre a doença e sobre o tratamento em pacientes de baixa renda e baixa escolaridade, permitindo uma escolha compartilhada com baixo conflito decisório. Mais estudos são necessários para verificar se essa melhora no conhecimento se traduz em desfechos duros.