versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.42 no.5 São Paulo set./out. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37562016000000010
Staphylococcus aureus é uma bactéria Gram positiva, que pode colonizar a pele e o aparelho respiratório dos seres humanos, podendo essa colonização estar associada ou não a processos patológicos. Essa bactéria produz diversas toxinas relacionadas a sua capacidade de colonização e patogenicidade. As mais importantes são toxic shock syndrome toxin (TSST) e enterotoxina (TX) A, TXB, TXC, TXD, TXE, TXG, TXH e TXI, que apresentam atividades de superantígeno, pirogenicidade, e potencialização da letalidade de outras toxinas.1-3
O papel de superantígeno das toxinas estafilocócicas consiste no estímulo direto de receptores MHC classe II e de células T, independentemente de apresentação antigênica por células apresentadoras de antígenos, estimulando a proliferação e a atividade de linfócitos T CD4 e CD8. Este mecanismo está relacionado ao agravo das doenças alérgicas através da produção de IgE específicas para as toxinas, ou até mesmo por um papel de atuação direta dessas sobre os mastócitos tissulares, levando à sua degranulação.1-3
Na asma, as toxinas estafilocócicas também atuariam como superantígenos, estimulando principalmente a proliferação e a atividade de linfócitos T CD4 e levando a um aumento da produção de IgE específicas para essas toxinas, que, através da sua ligação com mastócitos do trato respiratório, propiciariam uma reação de tipo alérgico. Essa reação levaria a liberação de mediadores, como histamina, cininas, fator de ativação plaquetária e metabólitos do ácido araquidônico (prostaglandinas e leucotrienos), além de quimiocinas, acarretando uma reação inflamatória tanto imediata como tardia, através do recrutamento e da ativação de neutrófilos e eosinófilos, e culminando com a piora da asma.1-3
A participação dos superantígenos estafilocócicos tem sido cada vez mais evidenciada na dermatite atópica, na rinossinusite e na asma, e está correlacionada com a sua gravidade.4-8 Em relação a essa última, Kowalski et al. observaram a presença de IgE anti-TXA, TXC e TSST em 89,7% de 237 asmáticos (dosagem média = 1,096 ± 3,25 kU/l); não houve diferença significativa na prevalência em relação à gravidade da asma, mas as dosagens foram maiores nos casos graves -asmáticos graves, 81,4% (dosagem média = 1,65 ± 3,25 kU/l) e asmáticos não graves, 69,2% (dosagem média = 0,54 ± 0,72 kU/l).9 Em um novo estudo (N = 210), os mesmos autores obtiveram resultados similares, com prevalências de 76,1% em asmáticos graves e 71,1% em asmáticos não graves, com níveis três vezes maiores naqueles graves.10 Bachert et al. detectaram um aumento significativo de IgE antitoxinas estafilocócicas em asmáticos graves versus leves e controles (N = 70). 11 Em um estudo mais recente (N = 387), o mesmo grupo observou um aumento significativo dessas em asmáticos graves não controlados (59,6%), versus asmáticos controlados (40,8%) e controles (13,0%). Dosagens de IgE antitoxinas estafilocócicas elevadas foram consideradas um fator de risco para asma (OR = 7,6) e para asma grave (OR = 11,09).12
Na América Latina, não existem dados publicados na literatura correlacionando a participação de superantígenos estafilocócicos com a gravidade da asma, o que nos motivou a realizar o presente estudo sobre tão importante questão. Investigamos uma população de asmáticos de um hospital universitário na cidade do Rio de Janeiro (RJ), sem fatores de risco para maior colonização ou infecção estafilocócica, a fim de correlacionar a presença e o grau de sensibilização mediada por IgE in vitro às toxinas estafilocócicas com a gravidade clínica da asma.
Estudo transversal, no qual foram incluídos pacientes adultos, de ambos os sexos, com diagnóstico clínico e funcional pulmonar de asma, e em tratamento ambulatorial no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, localizado na cidade do Rio de Janeiro (RJ). Os pacientes foram alocados de forma consecutiva, dentro do período entre 2009 e 2013, em dois grupos, de acordo com a sua gravidade clínica da asma, pelos critérios da Global Initiative for Asthma .13-15 O grupo AL consistiu de pacientes com asma leve intermitente ou persistente e o grupo AMG, de pacientes com asma moderada ou grave.
Segundo os critérios da Global Initiative for Asthma ,13-15 a gravidade da asma pode ser avaliada de acordo com o tratamento necessário para o seu controle. A asma leve engloba os pacientes que utilizam somente medicamentos de alívio e/ou baixas doses de corticosteroides inalatórios ou de antagonistas de receptores de leucotrienos. Já a asma moderada inclui os que utilizam β2-agonistas de longa duração e corticosteroides inalatórios em doses baixas ou moderadas. A asma grave consiste de pacientes que fazem uso de β2-agonistas de longa duração e corticosteroides inalatórios em doses elevadas e/ou outros medicamentos broncodilatadores e anti-inflamatórios para obter o controle da asma.
Os critérios de inclusão foram os seguintes: ser paciente adulto com diagnóstico clínico e funcional pulmonar de asma,16,17 independentemente da presença de rinite e de resultados positivos de testes cutâneos para aeroalérgenos.
Os critérios de exclusão foram os seguintes: presença de DPOC e/ou dermatite atópica; exacerbação da asma nas quatro semanas prévias; presença de infecção respiratória ou uso de antimicrobianos nas últimas seis semanas; uso de corticoterapia sistêmica por sete ou mais dias nas últimas quatro semanas; história de imunodeficiências, neoplasias, colagenoses, insuficiência renal, polipose nasossinusal, sinusopatias crônicas, fibrose cística ou bronquiectasias; gestação; tabagismo nos últimos doze meses; e recusa de participar do estudo ou de assinar o termo de consentimento livre e esclarecido.
O cálculo do tamanho amostral foi baseado em um estudo de Kowalski et al.9 e realizado por meio de um programa de cálculo estatístico específico (OpenEpi). Para uma relação pareada um a um, com um intervalo de confiança de 95% e um poder de 80%, foi estimada uma casuística total de 140 pacientes, 70 em cada grupo.
Todos os pacientes foram submetidos a história clínica; exame físico; exames de rotina (hemograma, VHS, IgE total, parasitológico de fezes, e radiografia de tórax e dos seios da face); provas de função pulmonar (espirometria e PFE); testes cutâneos por puntura com aeroalérgenos; e dosagem sérica de IgE antitoxinas estafilocócicas (TXA, TXB, TXC e TSST). Nas espirometrias foram utilizados espirômetros (Jaeger, Würzburg, Alemanha), respeitando as diretrizes da American Thoracic Society16,17 e valores teóricos segundo Knudson et al.18 Foi compatível com asma a presença de obstrução e prova broncodilatadora positiva com reversão ou melhora significativa.16,17 Na avaliação do PFE, foram utilizados medidores de PFE (Mini-Wright AFS; Clement Clarke International, Essex, Inglaterra), segundo valores teóricos de Nunn e Gregg.19 Os testes cutâneos com aeroalérgenos foram realizados com a técnica de puntura com antígenos padronizados.20 Na dosagem das IgE antitoxinas estafilocócicas foi utilizado um sistema de imunoensaio (ImmunoCAP(r) 100; Phadia, Uppsala, Suécia).21 Valores superiores a 0,35 U/l foram considerados positivos.21
Na comparação das variáveis numéricas foram utilizados os testes t de Student ou de Mann-Whitney, quando indicados, através da análise dos coeficientes de Kolmogorov-Smirnov e de Shapiro-Wilk. Na comparação das variáveis categóricas foram utilizados os testes do qui-quadrado ou de Fisher, quando indicados. Foram considerados um poder de 80% e significância estatística com p < 0,05.
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Todos os pacientes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido e, em caso de recusa a participar do estudo, não tiveram qualquer inconveniente ou prejuízo em relação ao seu tratamento. A confidencialidade dos dados e o anonimato dos pacientes foram assegurados na elaboração e no manuseio do banco de dados.
Foram estudados 142 pacientes; 72 alocados no grupo AL (17 com asma intermitente e 55 com asma persistente), e 70 no grupo AMG (53 asmáticos moderados e 17 asmáticos graves). A mediana das idades foi de 52,5 anos (46 e 56 anos, respectivamente, nos grupos AL e AMG), com preponderância do sexo feminino e de indivíduos brancos. Na amostra geral, a média do índice de massa corpórea (IMC) foi de 27,09 kg/m2, 128 pacientes tinham rinite associada à asma, 131 tinham resultados positivos para teste cutâneo para aeroalérgenos, e 99 tinham antecedentes familiares de atopia. Somente 37 (26,1%) dos casos tinham antecedentes de tabagismo. A média do PFE em percentual do teórico foi de 72,59%, e as médias do VEF1 em percentual do teórico pré-broncodilatador e pós-broncodilatador, respectivamente, foram de 71,55% e 81,48%. A média de eosinófilos foi de 4,4% e a de dosagem de IgE total foi de 574,92 UI/ml. Na Tabela 1 é demonstrada a distribuição das variáveis sociodemográficas e clínicas, e na Tabela 2 são evidenciadas as características funcionais pulmonares e laboratoriais observadas nos dois grupos.
Tabela 1 Características clínicas e sociodemográficas de acordo com a gravidade da asma nos pacientes estudados.a
IMC: índice de massa corpórea. aValores expressos em média ± dp ou n (%). *Testes t de Student (idade) e testes do qui-quadrado ou de Fisher (demais parâmetros).
Tabela 2 Características funcionais pulmonares e laboratoriais de acordo com a gravidade da asma nos pacientes estudados.a
BD: broncodilatador. aValores expressos em média ± dp. *Teste t de Student ou de Mann-Whitney.
Quanto à frequência de IgE antitoxinas estafilocócicas, 62 pacientes tiveram alguma dosagem positiva (43,7%), sendo 29 para TXA (20,4%), 35 para TXB (24,6%), 33 para TXC (23,2%) e 45 para TSST (31,7%). Foram obtidos, em média, os seguintes valores de dosagens: TXA = 0,96 U/l; TXB = 1,09 U/l; TXC = 1,21 U/l; e TSST = 1,18 U/l.
Como demonstrado nas Tabelas 3 e 4, não houve diferenças estatisticamente significativas entre os dois grupos quanto à frequência de sensibilização e às dosagens de IgE antitoxinas estafilocócicas avaliadas.
Tabela 3 Frequência de sensibilização de IgE mediada para toxinas estafilocócicas de acordo com a gravidade da asma nos pacientes estudados.
TXA: enterotoxina estafilocócica A; TXB: enterotoxina estafilocócica B; TXC: enterotoxina estafilocócica C; e TSST: toxic shock syndrome toxin . *Teste do qui-quadrado ou teste de Fisher.
Tabela 4 Concentrações de IgE antitoxinas estafilocócicas de acordo com a gravidade da asma nos pacientes estudados.
TXA: enterotoxina estafilocócica A; TXB: enterotoxina estafilocócica B; TXC: enterotoxina estafilocócica C; e TSST: toxic shock syndrome toxin . *Teste do qui-quadrado ou de Mann-Whitney.
Os aspectos clínicos e sociodemográficos estudados apresentaram diferenças estatisticamente significativas entre os dois grupos em relação à faixa etária, ao IMC, e à prevalência de rinite. A faixa etária significativamente superior no grupo AMG pode ser decorrente da tendência de indivíduos mais velhos apresentarem asma mais grave, principalmente aqueles que têm o início da doença numa idade mais avançada.13-15 Já o IMC significativamente mais elevado também no grupo AMG é um achado compatível com a literatura, que considera a obesidade um fator de risco e de agravo para a asma. Mais recentemente, mudanças no microbioma gastrointestinal e respiratório, causadas pela obesidade, vêm sendo relacionadas à etiopatogenia da asma associada a essa condição.13-15,22 A maior prevalência de rinite nos pacientes do grupo AL fala a favor de uma maior presença de atopia nesses pacientes, ao contrário dos demais do grupo AMG, o que corrobora o conceito de que asmáticos mais graves tendem a ter menos manifestações atópicas.13-15
Quanto aos parâmetros funcionais pulmonares avaliados, o PFE absoluto e em percentual do teórico estavam significativamente mais reduzidos no grupo AMG, o mesmo ocorrendo com o VEF1 em percentual do teórico antes e depois da prova broncodilatadora. Tais achados também são esperados e condizentes com os dados da literatura e mostram a concordância usualmente observada entre os parâmetros de gravidade clínicos e funcionais pulmonares.13-15
Dos 142 pacientes, 62 (43,7%) apresentaram positividade para alguma IgE antitoxina estafilocócica estudada, sendo mais prevalente a dosagem de IgE anti-TSST. Nossos resultados são distintos em relação a dois estudos da literatura e semelhantes a outros dois. Kowalski et al. observaram em um estudo uma prevalência de 89,7% em relação à positividade para IgE antitoxinas estafilocócicas em asmáticos graves e não graves e, num segundo estudo, prevalências de 76,1% em asmáticos graves refratários e de 71,1% em asmáticos não graves.9,10 Já Bachert et al. observaram num estudo valores de 38,1% em asmáticos, independentemente da gravidade, e de 62% em asmáticos graves e, num segundo estudo, valores de 59,6% em asmáticos graves não controlados e de 40,8% em asmáticos controlados; esses últimos valores sendo mais próximos dos nossos resultados.11,12
Não incluímos no nosso estudo pacientes com infecções crônicas associadas ou outros processos facilitadores de colonização ou infecção por S. aureus , tais como polipose nasossinusal, bronquiectasias, bronquite crônica e dermatite atópica. Essas condições, através de uma maior colonização ou infecção por essa bactéria, poderiam consequentemente levar a uma maior quantidade de suas toxinas no organismo, propiciando uma maior sensibilização mediada por IgE para esses antígenos; logo, não representando uma população de asmáticos de uma forma homogênea. Os estudos de Kowalski et al.9,10 e Bachert et al.11,12 não tiveram tais critérios de exclusão especificados em sua metodologia, além de incluir pacientes com sinusopatia crônica e polipose nasossinusal em suas casuísticas, como foi o caso do estudo mais recente de Kowalski et al.,10 que, apesar disso, não observaram diferenças estatisticamente significativas nas dosagens entre asmáticos com e sem polipose. Tal fato pode justificar os distintos níveis de sensibilização observados quando comparamos nossos resultados com os dos dois grupos de autores supracitados. Além disso, características específicas da nossa população também podem ter influenciado os nossos resultados. Não existem estudos estimando a colonização por S. aureus na população brasileira; logo, não podemos no momento avaliar se a mesma é inferior ou não à da população europeia observada nos demais estudos. O mesmo vale para a presença ou não dessa bactéria no microbioma respiratório tanto de indivíduos saudáveis como de asmáticos. Também não podemos no momento precisar se os asmáticos no Brasil teriam uma menor resposta imunológica alérgica a essas toxinas estafilocócicas ou não, em comparação com pacientes das demais nacionalidades.
A frequência das IgE antitoxinas estafilocócicas estudadas não mostrou diferenças estatisticamente significativas entre os dois grupos. O mesmo ocorreu com suas dosagens. Nossos resultados são semelhantes qualitativamente, mas distintos quantitativamente, em relação aos estudos de Kowalski et al.,9,10 que observaram dosagens significativamente maiores de IgE antitoxinas estafilocócicas em asmáticos graves. Já em relação aos estudos de Bachert et al.,11,12 nossos resultados foram antagônicos em relação às duas comparações. Essas diferenças, ou seja, a ausência de associações observadas, também podem ser justificadas pelos nossos critérios de exclusão, os quais não foram levados em consideração nos outros estudos, e por características específicas da nossa população, conforme já foi argumentado previamente.
Concluímos que, na população de asmáticos estudada, a presença de anticorpos IgE séricos antitoxinas estafilocócicas TXA, TXB, TXC e TSST foi detectada em 62 pacientes (43,7%) de um grupo de 142, e não houve associação da sua frequência e dosagem com a gravidade clínica da asma. Esses resultados são bastante relevantes, pois este é o primeiro estudo sobre esse tema na América Latina, o qual mostrou resultados distintos, com uma associação "negativa", em relação a estudos europeus prévios.
Como limitações do presente estudo temos que considerar que o mesmo foi realizado em um único centro, em um hospital universitário de nível terciário e em uma única área demográfica do nosso país. O nosso objetivo principal foi avaliar a influência das dosagens de IgE antitoxinas estafilocócicas e sua associação com a gravidade da asma, não sendo este um estudo de prevalência populacional dessa sensibilização em asmáticos e em indivíduos saudáveis da nossa região. Para tal, necessitaríamos de uma casuística muito maior, o que não seria possível em um estudo unicêntrico. Daí, os dois grupos estudados dentro da nossa metodologia foram utilizados um como o controle do outro, sem utilizarmos um terceiro grupo de indivíduos saudáveis.
Novos estudos multicêntricos no Brasil e nos demais países da América Latina são necessários e devem ser realizados para permitir uma estimativa mais representativa e precisa da importância da sensibilização mediada por IgE às toxinas estafilocócicas como um fator agravante da asma, assim como determinar sua prevalência em asmáticos e indivíduos saudáveis. Tais estudos deverão incluir distintamente asmáticos que tenham ou não enfermidades associadas que possam levar a uma maior colonização ou infecção por S. aureus .