versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.1 São Paulo jan./mar. 2018 Epub 26-Abr-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-3838
Os agentes infecciosos figuram entre as principais causas de mortalidade no lúpus eritematoso sistêmico e em pacientes imunocomprometidos1-3. O citomegalovírus humano (CMV) é um vírus de DNA, membro da família herpesviridae. O diagnóstico de replicação de CMV e de doença por CMV pode ser avaliado através de várias técnicas, incluindo sorologia para detecção de componentes virais e achados histopatológicos, embora as técnicas laboratoriais diagnósticas mais importantes para pacientes imunocomprometidos sejam as que quantificam componentes moleculares virais e amplificação de ácido nucleico por reação em cadeia de polimerase (PCR)4,5. Por exemplo, a detecção em leucócitos em sangue periférico e a monitorização precoce da fosfoproteína 65 (antigenemia pp65), abundantemente detectada no tegumento viral (ou matriz viral) por imunofluorescência indireta, têm sido efetivamente utilizadas em centros de transplante na determinação de estratégias terapêuticas precoces6-9. No entanto, o efeito de seu uso em pacientes com doenças autoimunes ainda não foi completamente elucidado e requer maior exploração na literatura científica(5, 10, 11).
Os pacientes com LES que apresentam febre são um desafio para os médicos, que podem se deparar com um problema complexo: a febre pode ser o resultado da ativação da doença e pode ocorrer sem a presença de infecção. Além disso, agudizações podem ser causadas por vários agentes infecciosos. Nessas situações, a rotina exige a realização de uma extensa bateria de testes. No entanto, testes laboratoriais para antigenemia pp65 nem sempre são conduzidos. A presente série de casos descreve um estudo de rastreamento ativo para antigenemia pp65 realizada em pacientes hospitalizados com LES e infecção suspeita indeterminada. O objetivo foi documentar a replicação viral do CMV como possível agente infeccioso etiológico.
A presente casuística observacional e descritiva inclui pacientes internados com LES no período de março de 2015 a março de 2016 no Hospital Universitário Antônio Pedro, em Niterói e no Hospital Universitário Pedro Ernesto, Rio de Janeiro, Brasil. Os critérios de inclusão buscaram selecionar pacientes internados com LES que receberam atendimento multiprofissional, independentemente de idade e sexo, previamente imunodeprimidos e internados por suspeita de infecção. Pacientes recém-diagnosticados com LES e em fase inicial de imunossupressão de indução, pacientes com LES internados para a realização de procedimentos gerais não relacionados primariamente à atividade do LES, pacientes transplantados renais com LES, bem como pacientes diagnosticados com câncer, HIV, sífilis, hepatite viral B ou C e mulheres grávidas foram excluídos do estudo. Pacientes com causa prontamente identificável de infecção, particularmente de origem bacteriana, incluindo acometimentos de pele, trato urinário ou pneumonia, bem como positividade em hemoculturas também não foram considerados no presente estudo.
Os casos de LES foram classificados segundo os critérios SLICC (Systemic Lupus International Collaborating Clinics)12. A presença de replicação de CMV foi avaliada por antigenemia pp65 em amostras celulares obtidas a partir de sangue periférico. Os achados clínicos e os resultados dos testes laboratoriais foram colhidos dos prontuários dos pacientes. Durante a primeira avaliação física dos casos, a atividade do LES foi estimada pelo uso do SLEDAI 2K (Systemic lupus erythematosus disease activity index 2000). Para tanto, utilizamos a mesma primeira amostra de sangue coletada para avaliar a antigenemia pp65 para obter também outros exames complementares, como as dosagens de C3, C4 e anti-DNA13. Foi também realizada uma avaliação geral de morbidade por meio do escore SDI (Systemic Lupus International Collaborating Clinics/American College of Rheumatology Damage Index for Systemic Lupus Erythematosus)14. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal Fluminense (UFF), número CAEE: 43049215.2.0000.5243.
A avaliação da antigenemia pp65 para CMV foi realizada utilizando um kit comercial de imunofluorescência, o CMV turbo Brite (Holanda). O teste usa anticorpos monoclonais específicos para pp65, que aparece nos primeiros estágios da replicação do CMV. Os resultados foram expressos pelo número de células positivas em 2×105 leucócitos (Figura 1). Os pacientes com suspeita de infecção e teste positivo para antigenemia pp65 tiveram a antigenemia pp65 reavaliada após 15 e 30 dias. Quando testado, o DNA total foi extraído de 200 mL de sangue total por meio do mini kit QIAamp DNA (Qiagen, Alemanha), seguindo os protocolos do fabricante. Um teste de PCR quantitativo em tempo real para o DNA de CMV foi realizado com o kit comercial CMV Q-PCR Alert Kit (Nanogen Advanced Diagnostics, Itália) e um termociclador 7300 Real-Time PCR System (Applied Biosystems, EUA), tendo como alvo a região do gene UL123.
Figura 1 Fotomicrografias representativas de antigenemia pp65 positiva (imunofluorescência). A) neutrófilos pp65 positivos de paciente com transplante renal infectado por CMV, utilizado como referência devido à sua aparência granular nuclear típica. B) células LE: neutrófilos contendo inclusões amorfas citoplasmáticas e núcleo periférico (coloração de Wright); uma imagem detalhada é mostrada no canto inferior direito. C) Do caso 5: neutrófilos pp65 positivos com aparência granular lisa. D) Do caso 6: visão panorâmica de neutrófilos pp65 positivos e células semelhantes a células LE; Uma imagem detalhada é mostrada no canto superior direito. E) e F) Do mesmo caso 6 de LES: aspecto dismórfico celular vacuolado, não visto usualmente em casos de pacientes transplantados renais.
Este foi um estudo baseado em laboratório que incluiu 19 pacientes que apresentavam febre, leucopenia/linfopenia, positividade para anti-CMV/IgM ou qualquer manifestação orgânica ou sistêmica indicativa de possível diagnóstico de CMV, como infecção indeterminada. A avaliação da antigenemia pp65 foi realizada em uma amostra de sangue em paralelo aos exames laboratoriais de rotina. Os resultados da antigenemia pp65 foram apresentados aos médicos dos pacientes, que realizaram avaliações independentes adicionais e realizaram o julgamento clínico para o diagnóstico e a determinação das opções de tratamento de CMV.
Houve positividade para antigenemia pp65 em sete pacientes (36,8%), Tabela 1. A idade média era de 33,5 ± 11,2 anos; 16 (84%) eram mulheres e 16 (84%) eram negros. Abaixo encontra-se um histórico clínico mais detalhada dos sete pacientes positivos. Apenas três dos sete pacientes positivos para a antigenemia pp65 apresentaram resultados positivos para anti-CMV/IgM. Os pacientes que tiveram resultados positivos para pp65 frequentemente apresentaram linfopenia, anemia e escores do SLEDAI mais elevados. Cinco pacientes foram tratados com terapia antiviral específica (ganciclovir) e um foi a óbito por causas atribuídas a doença citomegálica (caso 4). Os pacientes tratados para CMV (ganciclovir, combinado ou não com imunoglobulina endovenosa) também foram monitorados ativamente para antigenemia pp65 após 15 e 30 dias, com desaparecimento progressivo significativo da positividade. Alguns dados clínicos e laboratoriais foram comparados entre pacientes que apresentavam ou não antigenemia pp65 positiva, confirmando a significância estatística para linfopenia, anemia e SLEDAI (Tabela 2).
Tabela 1 Características clínicas e laboratoriais dos pacientes que apresentaram positividade para antigenemia pp65.
Parâmetro | Caso 1 | Caso 2 | Caso 3 | Caso 4 | Caso 5 | Caso 6 | Caso 7 |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Idade, anos | 38 | 9 | 49 | 45 | 18 | 40 | 27 |
Etnia, cor da pele | Parda | Negra | Branca | Parda | Branca | Branca | Negra |
SLICC, número de critérios | 5 | 8 | 6 | 11 | 6 | 4 | 8 |
Tempo com LES, anos | 7 | <1 | 3 | 8 | 5 | 15 | <1 |
SDI, número de critérios | 2 | 0 | 2 | 0 | 0 | 0 | 1 |
SLEDAI 2K, número de critérios | 25 | 36 | 24 | 21 | 12 | 23 | 17 |
Hemoglobina, g/dL | 7.2 | 5.8 | 8.7 | 7.3 | 10.2 | 9.5 | 6.0 |
Linfócitos/mm3 | 352 | 410 | 350 | 330 | 1100 | 465 | 517 |
VHS, mm/h | 59 | 93 | 127 | 120 | 70 | 68 | 80 |
Proteína C reativa, mg/dL | 4.8 | 49.5 | 0.6 | 29.1 | 1.2 | 1.2 | 9.6 |
C3/C4 | 47/10 | 40/8 | 74/16 | 49/19 | 17/4 | 58/12 | 54/3 |
Imunossupressão no ano anterior | PD/MMF | Zero | PD | PD/MMF | MP/PD/MMF | PD/CsA | Zero |
Imunossupressão atual | PD | MP/CPM/RTx | CFM | DEX/CsA | PD/MMF | PD | DEX |
Anti-CMV/IgM | NEG | POS | NEG | POS | NEG | NEG | POS |
pp65, céls/2x105 | 38 | 7 | 5 | 12 | 60 | 162 | 93 |
Ganciclovir/IG | GAN | GAN/IG | Não | GAN* | IG | GAN | GAN/IG |
Abreviaturas : VHS = Velocidade de Hemossedimentação; GAN = ganciclovir; IG = imunglobulinas endovenosas; PD = prednisona; MP = pulsos de metilprednisolona; CPM = ciclofosfamida; DEX = dexametasona; CsA = ciclosporina; MMF = micofenolato mofetil; RTx = Rituximab.
Tabela 2 Características clínicas e laboratoriais iniciais dos pacientes com LES segundo positividade da antigenemia pp65.
Parâmetro | POS(n=7) | NEG(n=12) |
---|---|---|
Idade, anos | 32.9 ± 14.9 | 33.8 ± 9.1 |
Sexo, Feminino | 6/7 (85%) | 10/12 (83%) |
Etnia (não-brancos) | 4/7 (57%) | 12/12 (100%) |
SLEDAI | 21.7 ± 8.5 | 9.0 ± 5.2 * |
Hemoglobina, g/dL | 7.9 ± 1.8 | 9.5 ± 2.8 * |
Leucócitos /mm3 | 7.029 ± 4.424 | 8.509 ± 4.332 |
Neutrófilos /mm3 | 5.843 ± 3.811 | 6.593 ± 3.161 |
Linfócitos/mm3 | 503 ± 272 | 1.089 ± 1.093 * |
Eosinófilos/mm3 | 123 ± 273 | 80 ± 106 |
Plaquetas /mm3 | 304 ± 124 | 222 ± 113 |
VHS, mm/h | 89 ± 29 | 71 ± 43 |
Proteína C reativa, mg/dL | 13.7 ± 18.7 | 5.5 ± 8.2 |
Glicose, mg/dL | 128 ± 58 | 107 ± 55 |
Ureia, mg/dL | 38 ± 24 | 62 ± 39 |
TFG, mL/min | 85.9 ± 41.3 | 57.4 ± 47.5 |
Albumina sérica, g/dL | 2.5 ± 0.5 | 2.5 ± 0.6 |
Globulinas séricas, g/dL | 3.7 ± 0.7 | 3.0 ± 0.7 |
Colesterol, mg/dL | 193 ± 82 | 197 ± 65 |
Triglicérides, mg/dL | 269 ± 141 | 187 ± 78 |
LDH U/L | 378 ± 191 | 480 ± 371 |
C3, mg/dL | 52 ± 19 | 72 ± 31 |
C4, mg/dL | 11 ± 7 | 16 ± 10 |
Anti-DNA, U/mL | 104 ± 120 | 100 ± 140 |
Os dados contínuos são reportados como média ± desvio padrão e os categóricos como frequências e porcentagens (%). As diferenças entre os grupos foram avaliadas pelo teste de Mann-Whitney ou pelo teste exato de Fisher, respectivamente. Valores de P foram considerados significativos quanto p <0,05 (*).
Para melhor compreender algumas aparências atípicas na imunofluorescência de neutrófilos da antigenemia pp65 em pacientes com LES, fizemos fotos para comparar casos de LES com casos-padrão de transplante renal. A Figura 1 mostra imagens representativas de células positivas para pp65 de nossa experiência padrão com casos de transplante renal, e novos achados e conjeturas sobre células positivas dismórficas para o pp65, com semelhanças no aspecto às células LE encontradas em casos de LES nesta série.
Caso 1. Uma mulher de 38 anos com SLE há sete anos apresentava poliartrite, serosite, proteinúria e insuficiência renal aguda. A paciente apresentava positividade para FAN e anti-Sm. A biópsia renal identificou nefrite lúpica Classe III associada a achados membranosos (classe V). Houve apenas remissão parcial após seis pulsos mensais de metilprednisolona e ciclofosfamida. A paciente foi então convertida para manutenção com MMF. A internação decorreu da presença de febre, seguida de confusão mental aguda e agravamento da proteinúria. O rastreio infeccioso incluiu hemocultura e urocultura, exames de imagem e punção lombar para coleta de líquido cefalorraquidiano, mas os resultados não foram conclusivos. A paciente recebeu vancomicina e ceftriaxona empiricamente sem melhora clínica. Após três semanas, foi solicitada uma antigenemia pp65 que mostrou-se positiva. À mesma época obtivemos a confirmação de CMV pela carga viral no sangue total. O tratamento com ganciclovir foi iniciado, seguido do desaparecimento da febre e melhoria clínica e laboratorial, incluindo redução parcial da proteinúria.
Caso 2. Uma menina de nove anos que desenvolvera LES no ano anterior, caracterizada por anemia hemolítica, poliartrite, pleurite, pericardite e proteinúria, apresentou positividade nos exames para FAN, anti-dsDNA e anticoagulante lúpico, bem como consumo de complemento. A doença evoluiu para uma forma disseminada grave, incluindo lesões valvares cardíacas, pancreatite e disfunção renal. Foram necessárias diálise, ventilação mecânica e várias transfusões de sangue. Ela também apresentou crise convulsiva generalizada seguida de instabilidade hemodinâmica, levando a uma longa estada pela unidade de terapia intensiva. A paciente foi submetida a vários estudos microbiológicos e esquemas antibióticos. Além disso, ela foi submetida a diferentes tentativas de terapia imunossupressora com pulsos de corticosteróides, plasmaferese, ciclofosfamida, imunoglobulina endovenosa e rituximab. Após melhora clínica inicial e estabilização hemodinâmica, a paciente continuava com febre baixa e leucopenia. Nesta fase, ela apresentou positividade para anti-CMV/IgM. Exames adicionais indicaram positividade para antigenemia pp65. Ela foi tratada com ganciclovir por seis semanas, até a antigenemia pp65 negativar. Após uma longa internação, a paciente apresentou melhora clínica progressiva e recebeu alta.
Caso 3. Uma mulher de 49 anos diagnosticada com LES três anos antes apresentava lesões cutâneas, alopécia e FAN positivo, incluindo positividade para anti-Sm, anti-dsDNA e consumo de complemento. Três meses antes da internação ela desenvolveu nefrite lúpica com proteinúria nefrótica, hematúria dismórfica e Coombs direto positivo. A nefrite foi tratada com corticosteroides endovenosos e ciclofosfamida. A paciente foi internada em decorrência de febre, desorientação mental e alucinações. Ela foi tratada empiricamente com antibióticos. A triagem para infecção por CMV revelou antigenemia pp65 positiva porém baixa, e nenhum tratamento específico para CMV foi realizado. A paciente evoluiu bem.
Caso 4. Uma paciente do sexo feminino com 45 anos de idade fora internada oito anos antes por fotossensibilidade, úlcera oral, poliartrite, hemiparesia, vasculite retiniana, depressão e polineuropatia associadas a linfocitopenia e anemia hemolítica. À época ela apresentou positividade para FAN, anti-Sm, anti-dsDNA, consumo de C3 e C4 e proteinúria. O tratamento inicial incluiu prednisona e MMF. Após quatro anos ela foi acometida por tuberculose pulmonar. Um ano antes da internação, a paciente manifestou uma paniculite lúpica confirmada por biópsia, tendo desenvolvido nódulos de mama bilaterais, incluindo esteatonecrose com algumas microcalcificações grosseiras. A hospitalização mais recente foi decorrente de febre e dispneia com diagnóstico de pneumonia, que evoluiu para sepse. Ela foi submetida a várias transfusões de sangue. O estado clínico geral não apresentou melhora significativa, quando uma investigação para CMV usando a antigenemia pp65 mostrou-se positivo. O tratamento específico para CMV com ganciclovir começou com uma rápida melhoria inicial, o que levou ao início do desmame da ventilação mecânica. No entanto, no décimo dia de tratamento com ganciclovir ocorreu um piora clínica inesperada, com diminuição da consciência e óbito. Uma carga viral positiva de DNA para CMV ainda estava presente.
Caso 5. Uma mulher de 18 anos diagnosticada com LES cinco anos antes, ocasião em que apresentou exantema malar, poliartrite, derrame pleural e nefrite lúpica (IV) com proteinúria de 3,2 g/dia (anti-dsDNA positivo), estava em tratamento com MMF, prednisona e hidroxicloroquina. Dois meses antes da internação mais recente, ela foi hospitalizada por sepse após trauma cutâneo na coxa seguido de infecção. A hemocultura identificou S. Pyogenes, o que levou à introdução de antibioticoterapia. Contudo, houve melhora apenas parcial e, após três semanas, a paciente apresentou lesões cutâneas eritematosas, esplenomegalia, aumento linfonodal difuso, hipertrigliceridemia e baixos níveis séricos de fibrinogênio. Foi estabelecido o diagnóstico de síndrome de ativação macrofágica. A investigação de antigenemia pp65 mostrou-se positiva. Inicialmente, o tratamento cursou com imunoglobulina endovenosa e prednisona em altas doses, sem a inclusão de ganciclovir. Após boa resposta clínica, a paciente recebeu alta.
Caso 6. Uma mulher de 40 anos com histórico de LES por quinze anos, caracterizada por vasculite urticariforme, poliartrite, anemia hemolítica e FNA positivo, evoluiu com períodos de reativação e remissão de manifestações cutâneas e hematológicas. Com o passar do tempo, o tratamento passou a incluir hidroxicloroquina, azatioprina, dapsona, metotrexato e ciclosporina com respostas variáveis e, além disso, corticosteroides em baixas doses. A internação mais foi decorrente de febre, dor lombar e critérios para sepse urinária. A paciente apresentava proteinúria nefrótica e uma investigação confirmou trombose da veia renal esquerda. O lóbulo inferior do pulmão direito apresentava infiltrado difuso associado a hepatoesplenomegalia. A antigenemia pp65 era positiva, mas nenhum tratamento antiviral específico foi prescrito. Houve melhora inicial com antibioticoterapia para infecção urinária e a paciente recebeu alta da unidade de terapia intensiva. No entanto, devido a piora clínica observada duas semanas mais tarde e manutenção da positividade da antigenemia pp65, foi iniciado tratamento com ganciclovir. Após 15 dias a paciente exibiu melhora clínica significativa e negativação da antigenemia pp65.
Caso 7. Um homem de 27 anos de idade foi diagnosticado com LES, clinicamente caracterizado por pleurisia, artrite e proteinúria não nefrótica associada a positividade para fator antinuclear (FAN), autoanticorpos anti-DNA de dupla hélice (anti-dsDNA), anti-Sm e consumo de complemento. Como foi encontrado líquido pleural purulento e positividade para adenosina deaminase (ADA), o paciente foi tratado para tuberculose. Três meses mais tarde o paciente apresentou quadro de endocardite bacteriana. A hemocultura foi positiva para estafilococos coagulase-negativa. Desde então, foram realizadas várias antibioticoterapias prolongadas e transfusões de sangue. O paciente estava usando corticosteroide oral e apresentava febre persistente. A antigenemia pp65 foi positiva e o tratamento com ganciclovir foi iniciado. Houve diminuição da febre, mas ainda foram observados picos ocasionais até o final da terceira semana com ganciclovir. A cintilografia com gálio mostrou captação endocárdica e um ecocardiograma transesofágico revelou perfuração mitral. Foi realizada uma nova abordagem antibiótica. Também foram receitadas imunoglobulinas endovenosas em alta dose. Uma plexopatia de Parsonage-Turner do lado direito, atribuída à infecção por CMV, melhorou por completo com o uso de ganciclovir. O paciente foi submetido a cirurgia cardíaca por lesão valvar.
O presente estudo é o resultado de uma avaliação retrospectiva de pacientes internados com LES que apresentaram febre e achados clínicos consistentes com infecção indeterminada. A relação entre infecção por CMV e LES ainda não está bem caracterizada. Os fatores de risco para CMV, a doença ativa, sua manifestação clínica e tratamentos para LES ainda não estão claramente definidos. Infecções primárias por citomegalovírus geralmente são assintomáticas em pessoas imunocompetentes, mas podem se manifestar como mononucleose por CMV em cerca de 10% dos adultos, caracterizada por febre, disfunção hepática e linfocitose em curso auto-limitado geralmente leve. Contudo, doença grave por CMV pode acometer indivíduos imunossuprimidos. O LES é uma das patologias que melhor exemplifica as doenças autoimunes. Portanto, investigamos a freqüência de um biomarcador de replicação de CMV (antigenemia pp65) em um grupo de pacientes internados com LES.
O CMV é um importante agente infeccioso nem sempre descartado de forma sistemática. As infecções continuam a figurar entre as principais causas de morbidade e mortalidade em pacientes com LES. Na prática clínica, apesar da presença ubíqua deste patógeno na população geral, parece que o diagnóstico de infecção por CMV não é feito com a freqüência esperada. Os motivos para tal descompasso não são claros, mas é provável que elementos como a falta de disponibilidade de métodos diagnósticos altamente precisos, mesmo em centros de referência, contribuam para a aparente divergência15. Além disso, por um lado, algumas características clínicas da infecção por CMV lembram os achados clínicos da agudização do LES e, por outro lado, os pacientes com lúpus são propensos a infecção viral ou a reativação de vírus latentes devido ao próprio lúpus e/ou à terapia imunossupressora. Estudos populacionais de grande porte são necessários para avaliar todas essas possibilidades.
Apesar da alta taxa de mortalidade das formas mais invasivas16, o impacto das infecções por CMV sobre morbidade e mortalidade em pacientes com LES é ainda escassamente documentado. Contudo, na prática clínica o CMV tem sido associado a vasculopatias, fenômeno de Raynaud17, febres de origem indeterminada, pneumonia, miocardite, nefrite, meningoencefalite, bem como o aparecimento de anticorpos antifosfolípides18. Formas invasivas tem sido documentadas principalmente através de biópsias (ou necrópsias) em que se procurou documentar a presença de corpos de inclusão ou marcadores imunoistoquímicos em tecidos16. De forma geral, no transplante, a antigenemia pp65 é menos sensível em comparação à RT-PCR, especialmente em doenças gastrointestinais invasivas ou na presença de neutropenia. Contudo, na doença invasiva do trato gastrointestinal, seja em transplantes de órgãos ou doenças inflamatórias como doença de Crohn ou colite ulcerativa, o uso de estudo de biópsia de tecidos, incluindo imunoistoquímica com detecção direta de CMV, é de grande valia18. Em geral, a infecção por CMV é de difícil determinação a partir apenas dos dados clínicos. Por exemplo, em nossos achados os estudos sorológicos (anti-CMV/IgG ou anti-CMV/IgM) não eram confiáveis para indicar ou excluir uma possível infecção primária ou reativação da doença. Portanto, com base nos dados clínicos sugestivos de doença por CMV, a maioria absoluta dos centros médicos utiliza análises moleculares como PCR para fazer o diagnóstico de CMV4,5. Questões sobre a possibilidade de pacientes com LES produzirem anticorpos em condições patológicas, e se tal fato poderia comprometer o diagnóstico de CMV por sorologia, ou mesmo a própria antigenemia pp65 em si, ainda permanecem sem resposta.
A viremia do CMV é muito prevalente entre os pacientes imunossuprimidos. Várias estratégias de diagnóstico são corriqueiramente utilizadas na prática clínica, como PCR e antigenemia pp65. Alguns centros de transplante monitoram de perto a antigenemia e iniciam prontamente tratamento preventivo e/ou profilático para evitar as complicações advindas do CMV, principalmente nos primeiros seis meses após o transplante31. No entanto, dados sobre o monitoramento de CMV em doenças autoimunes são escassos, bem como protocolos sobre quando e como monitorar a infecção por CMV em pacientes autoimunes. Neste estudo, o nosso interesse residia na aplicação da técnica de imunofluorescência com anticorpos monoclonais ligados à fosfoproteína 65 em leucócitos circulantes, como indicação de replicação ativa de CMV. Essa técnica, descrita pela primeira vez em 198819, provou ser eficaz e mais rápida do que o isolamento viral. Assim, ela é amplamente aplicada para monitorar pacientes submetidos a transplantes de órgãos20. Como é o caso do nosso centro, a disponibilidade de pessoal bem treinado para testes de detecção de antigenemia CMV pp65 é importante para reduzir a subjetividade na interpretação dos exames. Em nosso estudo, consideramos positivo qualquer imunocoloração nuclear de pp65 presente nas lâminas, independentemente do aspecto celular ou da presença de diferenças granulares sutis ou alterações vacuolares (Figura 1), que merecem atenção futura.
Como citado anteriormente, a infecção por CMV em pacientes com lúpus pode deflagrar ou mesmo piorar a atividade da doença, que encontra-se associada a elevação da taxa de mortalidade. Por outro lado, a inflamação é um dos mecanismos que podem reativar CMV latente18. O LES é caracterizado por períodos de doença aguda e remissão. Pacientes com doenças autoimunes, incluindo os indivíduos com hemoculturas positivas para bactérias e/ou fungos, também podem ser co-infectados com CMV10. Alguns estudos sugeriram um possível elo entre atividade de CMV e LES5,21,22, enquanto infecção por CMV vem ganhando atenção como um fator complicador potencial no contexto imunossupressor do LES10,23. Embora a ocorrência de infecção por CMV em LES esteja bem descrita, o papel do vírus como fator etiológico no LES não está bem estabelecido e a associação do lúpus com soroprevalência de CMV não é clara24. A inflamação crônica associada à autoimunidade promove um microambiente ideal onde o CMV latente pode ser reativado. Os processos envolvendo a ativação de linfócitos T e inflamação tendem a facilitar tal reativação18.
A casuística apresentada no presente estudo mostrou que é possível tomar uma decisão precoce e até mesmo tratar infecções por CMV por meio de terapia antiviral muito eficaz e específica25. Contudo, a relação entre infecção por CMV e atividade de LES, ou se o CMV foi reativado devido a inflamação intensa e sepse em alguns casos, são questões que ainda carecem de maiores esclarecimentos. Além disso, não se sabe se a melhoria inflamatória também pode determinar uma redução da replicação viral18. Não podemos considerar que nossos casos apresentavam doença citomegálica, mas sim suspeita de CMV, uma vez que foram monitorados pela pesquisa de antigenemia pp65. No entanto, na maioria dos nossos casos houve melhora clínica significativa após a introdução de terapia antiviral específica. Por exemplo, vários efeitos antivirais indiretos podem ocorrer em função da imunoglobulina endovenosa, que seria uma opção terapêutica para síndrome de ativação macrofágica, atividade lúpica e até a própria doença por CMV26. Da mesma forma, co-infecções específicas podem estar presentes, considerando o caso em que uma tuberculose recentemente curada foi correlacionada com atividade lúpica e com um plexo nervoso comprometido27,28.
A antigenemia pp65 oferece resultados dentro de três a cinco horas após a coleta,(29,) sendo muito mais rápido que o ensaio de PCR. O teste tem baixo custo em comparação ao PCR, é altamente específico e requer uma pequena amostra de sangue periférico30. O exame pode ser facilmente repetido permitindo a documentação da replicação quantas vezes forem necessárias ao longo da investigação clínica e monitorar os resultados do tratamento através de variações na replicação viral, o que é comparável ao acompanhamento destinado a receptores de transplantes de órgãos31. Por outro lado, a validade da antigenemia pp65 como ferramenta diagnóstica para pacientes com LES apresenta alguns aspectos que precisam ser discutidos mais detalhadamente. Por exemplo, sabemos que o valor de corte para receptores de transplante renal varia de 8 a 20 células/200.000 leucócitos (92% de sensibilidade e 70% de especificidade) dependendo do centro32. Em receptores de transplantes de medula, uma única célula positiva basta para considerar o resultado como positivo33. Assim, o monitoramento de rotina para CMV em transplantados pode ser aplicado como abordagem preventiva, utilizando a antigenemia pp65 como marcador de infecção ou replicação viral, como fizemos em nosso grupo31. Em 2013, um estudo10 relatou um valor de corte de 10 células por 200.000 leucócitos para associar CMV a mortalidade em doenças autoimunes (75% de sensibilidade e 72,2% de especificidade).
Os pacientes com LES e linfopenia devem ser cuidadosamente monitorados para CMV, devido ao alto risco associado a altas cargas virais de CMV11. Nossos históricos clínicos exibiram altas taxas de transfusões de sangue, o que é motivo de preocupação pela possibilidade de estabelecimento de uma rota de transmissão de CMV. Infecções por novas cepas podem ocorrer, geralmente levando a novas infecções primárias, particularmente graves em pacientes imunossuprimidos. Isso significa que os pacientes podem enfrentar infecção primária, reativação ou mesmo uma nova infecção por uma cepa diferente de CMV, gerando uma preocupação constante: infecção ou atividade da doença versus infecção e atividade da doença. Uma estratégia para prevenir esta via de transmissão, além da transfusão de componentes soronegativos de CMV, é a filtragem de componentes sanguíneos para reter leucócitos34,35.
Em conclusão, entre os pacientes com causas indeterminadas de infecção, a positividade da antigenemia pp65 pode ser significativamente freqüente. Em nosso estudo não foi possível indicar se a replicação de CMV detectada estava relacionada a doença citomegálica e tampouco se a medicação antiviral beneficiava os pacientes. Não obstante, um simples e barato exame de antigenemia pp65, associado a achados clínicos e laboratoriais sugestivos, pode contribuir para a tomada de uma decisão precoce em relação ao tratamento antiviral. Mais estudos com um maior número de pacientes são necessários para esclarecer questões como sensibilidade e especificidade nos diferentes contextos clínicos do LES.