versão impressa ISSN 2359-4802versão On-line ISSN 2359-5647
Int. J. Cardiovasc. Sci. vol.30 no.5 Rio de Janeiro set./out. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/2359-4802.20170058
A doença isquêmica do coração configura a principal causa mundial isolada de morte e perda de qualidade de vida.1 No Brasil, estima-se que ela esteja relacionada a uma taxa anual de aproximadamente 55 óbitos por 100.000 habitantes.2,3 A síndrome coronariana aguda (SCA), em seus diferentes espectros de manifestação, assume protagonismo nessas estatísticas, sendo os procedimentos de revascularização miocárdica e a farmacoterapia antitrombótica os pilares fundamentais de seu tratamento.
A hemostasia é um processo fisiológico mantido através de uma complexa interação entre endotélio, plaquetas e fatores de coagulação. Em condições emergenciais e de desequilíbrio, a hemostasia pode culminar na formação de trombos arteriais ou venosos, traduzindo-se na ocorrência de eventos coronarianos agudos, cerebrovasculares ou episódios de tromboembolismo. Neste contexto, de forma adjuvante à terapia anticoagulante, os fármacos antiplaquetários se destacam no manejo dessas condições.4
Situações que cursam com injúria e descontinuidade do revestimento endotelial estimulam a adesão de plaquetas a proteínas da matriz subendotelial. Essa interação ativa sinais intracelulares que promovem a liberação de difosfato de adenosina (ADP), adrenalina, serotonina, trombina e tromboxano A2, potentes agonistas da ativação plaquetária. Uma vez que as plaquetas são ativadas, ocorre a ligação dos complexos de glicoproteína IIb-IIIa ao fibrinogênio, constituindo a etapa final da agregação das plaquetas e geração do trombo.5
Os fatores ativadores deste processo e dos receptores envolvidos nele se tornaram alvos para o desenvolvimento de agentes antitrombóticos. A medicina baseada em evidências possibilitou o advento, implementação e refinamento da abordagem terapêutica atual. Entretanto, mediante uma maior expectativa de vida da população e a coexistência de múltiplas comorbidades, deparamo-nos frequentemente com cenários clínicos nos quais o risco de complicações isquêmicas caminha lado a lado ao risco de complicações hemorrágicas.6 Assim, faz-se necessário um domínio pleno do arsenal antiplaquetário no que tange à sua indicação, dosagem e momento de administração.
O objetivo desta revisão é definir o papel dos fármacos antiplaquetários no manuseio da SCA, revisitando aspectos já consolidados e abordando tópicos atuais e ainda controversos acerca deste tema.
O ácido acetilsalicílico (AAS) em baixa dosagem inibe seletivamente a cicloxigenase (COX)-1, determinando atividade antiplaquetária, ao passo que em doses elevadas inibe a COX-1 e a COX-2, com efeitos anti-inflamatórios e analgésicos. Sua absorção é rápida, com pico de concentração plasmática obtido após 30 minutos da ingestão da formulação regular e 4 horas após a formulação de liberação entérica.7
Tendo em vista que os efeitos colaterais gastrointestinais do AAS aumentam proporcionalmente à sua dose, recomenda-se na SCA uma dose de ataque de 150-325 mg via oral (engolido se formulação regular e mastigado se formulação entérica), ou 80-150 mg por via intravenosa em locais que dispõem desta apresentação, seguido por 81-100 mg como manutenção.8 No estudo pioneiro Second International Study of Infarct Survival (ISIS)-2, o AAS promoveu redução significativa de 23% na mortalidade cardiovascular comparado a placebo após 5 semanas de tratamento em pacientes com infarto agudo do miocárdio (IAM) com supradesnivelamento do segmento ST, sendo esse efeito aditivo e sinérgico quando associado à estreptoquinase, reduzindo em 42% a taxa de eventos.(9 )Tais benefícios foram corroborados por diversos estudos subsequentes e pela compilação de seus dados em grandes metanálises, tornando-se assim um dos pilares da farmacoterapia antitrombótica nos diferentes espectros da SCA.10
São raras as situações que configuram uma clara contraindicação ao AAS, com destaque para sangramentos digestivos ativos e hipersensibilidade conhecida (urticária, broncoespasmo ou anafilaxia), embora estejam descritos diferentes protocolos para dessensibilização que permitem seu uso crônico com eficácia e segurança comprovadas.11
A associação entre AAS e um antagonista do receptor P2Y12, denominada terapia antiplaquetária dupla, representa a base do tratamento de pacientes com SCA e daqueles submetidos à intervenção coronária percutânea (ICP). A ticlopidina é um derivado tienopiridínico de primeira geração que, a despeito de sua eficácia e em virtude de seus efeitos colaterais hematológicos (trombocitopenia, anemia aplásica, púrpura trombocitopênica trombótica, neutropenia) e gastrointestinais, foi rapidamente substituída pelo clopidogrel.12
O clopidogrel é um agente tienopiridínico que bloqueia de forma irreversível o receptor P2Y12. O estado de equilíbrio na inibição da função plaquetária com o clopidogrel é alcançado pela dose de manutenção de 75 mg após 5-7 dias de seu início, ao passo que com a administração de doses de ataque de 300 mg e 600 mg, esse efeito é atingido em 6 e 2 horas, respectivamente, aspecto relevante no contexto das emergências médicas.13
No histórico ensaio clínico Clopidogrel in Unstable Angina to Prevent Recurrent Events (CURE), 12.562 pacientes com SCA sem supradesnivelamento do segmento ST tratados com AAS foram randomizados para tratamento com clopidogrel ou placebo por um período de 3 a 12 meses.14 O grupo clopidogrel exibiu uma redução significativa de 20% no risco de morte cardiovascular, reinfarto ou acidente vascular encefálico (AVE) comparado ao grupo placebo, sendo que o benefício já é aparente nas primeiras horas após o início da terapia e independente da realização de estratificação invasiva. No cenário do IAM com supradesnivelamento do segmento ST, dois importantes estudos validaram o clopidogrel como terapêutica adjuvante efetiva. Entre 3.491 pacientes randomizados para 300 mg de ataque e 75 mg de manutenção de clopidogrel contra placebo no ensaio clínico Clopidogrel as Adjunctive Reperfusion Therapy-Thrombolysis in Myocardial Infarction (CLARITY-TIMI) 28, dos quais 99,7% foram submetidos à trombólise, constatou-se uma redução de 36% no risco de óbito, IAM recorrente ou artéria coronária relacionada ao infarto ocluída no momento da angiografia.15 Já no estudo Clopidogrel and Metoprolol in Myocardial Infarction Trial (COMMIT), dentre 45.852 pacientes randomizados, sendo 50% submetidos à trombólise, a administração de uma dose diária de 75 mg de clopidogrel por um período médio de 28 dias promoveu redução de 9% nas taxas de morte, reinfarto ou AVE comparada a placebo.16
Assim, amparado pelos resultados de ensaios clínicos randomizados em SCA e pelas características farmacodinâmicas e farmacocinéticas do clopidogrel, recomenda-se uma dose de ataque de 600 mg para pacientes com previsão de estratificação de risco invasiva ou encaminhados para ICP primária e de 300 mg para pacientes submetidos à terapia fibrinolítica. Exceção deve ser adotada em pacientes trombolisados com idade ≥ 75 anos, onde se omite a dose de ataque. Na ausência de um benefício claro com a utilização de uma dose dobrada (150 mg) na manutenção do clopidogrel, esta deve ser de 75 mg.8
Entretanto, o clopidogrel exibe limitações e necessidades não atendidas, em parte explicadas por suas propriedades, como um início de ação e término lentos e potencial de inibição plaquetária limitado. A variabilidade interindividual à ação do fármaco é grande, estimando-se em até 35% o porcentual de pacientes que exibem uma resposta terapêutica inadequada.17 Os mecanismos envolvidos são multifatoriais e incluem interações medicamentosas (ex.: inibidores da bomba de prótons como omeprazol e esomeprazol), o ambiente e comorbidades clínicas (ex.: aderência à terapêutica, tabagismo, diabetes mellitus, obesidade, SCA), além de polimorfismos genéticos, com ênfase aos alelos determinantes de perda de função do CYP2C19.18 Sabe-se que pacientes portadores destas variantes exibem maior risco de trombose de stent, recorrência de IAM e morte.19 Porém, apesar de ser assunto ainda sob o escrutínio de estudos em andamento, as evidências hoje disponíveis não endossam a individualização da terapia baseada no resultado de testes genéticos ou da mensuração da função plaquetária.20,21 Com isso, abriu-se um vasto campo de pesquisas com diferentes propostas de tratamento, novos fármacos antagonistas do receptor P2Y12 e bloqueio de novos alvos na superfície das plaquetas.
Assim como o clopidogrel, o tienopiridínico de segunda geração prasugrel é uma pró-droga e requer biotransformação para se tornar um metabólito ativo. Entretanto, possui um início de ação mais precoce, cerca de 30 minutos após a administração de uma dose de ataque de 60 mg, além de uma reposta mais previsível, pela ampla absorção, necessidade de uma única etapa de oxidação mediada pelo CYP3A4 e CYP2B6, conferindo maior biodisponibilidade, maiores níveis de inibição plaquetária e menor variabilidade de resposta entre os pacientes.22
No ensaio clínico Trial to Assess Improvement in Therapeutic Outcomes by Optimizing Platelet Inhibition with Prasugrel (TRITON)-TIMI 38, 13.608 pacientes admitidos por SCA com ou sem supradesnivelamento do segmento ST submetidos à ICP foram randomizados para receber prasugrel 60 mg de ataque e 10 mg de manutenção ou clopidogrel 300 mg de ataque e 75 mg de manutenção por até 15 meses.23 O tratamento com prasugrel mostrou-se superior com uma redução significativa de 19% no risco de morte cardiovascular, IAM ou AVE não fatal, com destaque para a redução de infarto (24%) e trombose de stent (52%), sendo o benefício ainda maior entre os pacientes com diabetes.
Consistente com a maior potência antiplaquetária do prasugrel, o estudo constatou um aumento significativo de 32% no risco de sangramento grave, incluindo sangramentos fatais e ameaçadores à vida. Em alguns perfis de pacientes, o benefício clínico líquido, no qual se pesa a eficácia anti-isquêmica e a segurança, mostrou-se desfavorável ao prasugrel, incluindo em pacientes com passado de AVE ou acidente isquêmico transitório (AIT), com idade ≥ 75 anos e peso corporal < 60 kg. Nestes dois últimos, mediante a necessidade de prescrição do fármaco e na impossibilidade de alternativas terapêuticas, recomenda-se o uso de dose de manutenção de 5 mg.24 Não há, até o momento, indicações para a prescrição de prasugrel a pacientes com SCA que não realizaram ICP, bem como em janela de tempo outra que após o conhecimento da anatomia coronariana e efetivação do procedimento intervencionista. Em pacientes com indicação de cirurgia de revascularização miocárdica, o prasugrel deve idealmente ser suspenso por 7 dias.
Primeiro representante clinicamente disponível da classe denominada ciclopentiltriazolopirimidina, o ticagrelor é um antagonista reversível do receptor P2Y12, exercendo seu efeito inibitório através de uma ligação não covalente a um sítio de ligação plaquetário distinto do ADP. Diferentemente dos fármacos tienopiridínicos, o ticagrelor não é uma pró-droga e apresenta ação imediata após sua absorção oral. Exibe, assim, um rápido início de ação após a ingestão de uma dose de ataque de 180 mg e com pico de ação em 2 horas. Com meia-vida plasmática de 8-12 horas, o ticagrelor exige uma dose de manutenção de 90 mg a cada 12 horas e por ligar-se ao receptor de modo reversível, apresenta um término de ação mais precoce, ao redor de 2-3 dias, embora sua bula recomende a suspensão por 5 dias que antecedam uma intervenção cirúrgica. Uma vez que o metabolismo do ticagrelor é mediado pelo CYP3A4 ou CYP3A45, deve-se evitar a administração concomitante de fortes indutores ou inibidores do CYP3A4 durante a sua utilização.25
No ensaio clínico Platelet Inhibition and Patient Outcomes (PLATO), 18.624 pacientes representativos de todas as manifestações da SCA (com única exceção daqueles com IAM com supradesnivelamento do segmento ST submetidos à trombólise) foram randomizados para receber ticagrelor ou clopidogrel pelo período de 12 meses.26 No braço ticagrelor, houve uma redução significativa de 16% no risco de morte cardiovascular, IAM ou AVE. Em uma análise hierárquica pré-especificada, o ticagrelor reduziu isoladamente a ocorrência de morte cardiovascular (21%), IAM (16%) e trombose definitiva de stent (33%), sem diferença quanto à taxa de sangramento grave ou fatal. Apesar da consistência dos resultados obtidos entre os diversos subgrupos analisados, constatou-se uma interação entre pacientes tratados na América do Norte e no resto do mundo, sem um benefício claro do ticagrelor no primeiro grupo. Credita-se o uso de doses elevadas de manutenção do AAS (≥ 200 mg) como provável justificativa a esse achado, motivando um alerta para a prescrição de doses < 200 mg no uso crônico.27
O ticagrelor exibe efeitos pleiotrópicos não mediados por seu bloqueio do receptor P2Y12, como a inibição da captação de adenosina pelos eritrócitos, o que aumenta o nível circulante de adenosina.28 Sabidamente, a adenosina possui inúmeras propriedades, incluindo vasodilatação coronariana, redução de isquemia e injúria de reperfusão, inibição de respostas inflamatórias a condições de estresse, efeito cronotrópico e dromotrópico negativo, redução da taxa de filtração glomerular e estimulação de fibras C vagais nos pulmões. Estes efeitos ainda estão em investigação e justificariam, entre os usuários de ticagrelor, a maior prevalência de dispneia, porém sem alteração de provas de função pulmonar, de pausas ventriculares sem repercussão clínica ou necessidade de marcapasso definitivo, elevação dos níveis séricos de creatinina e ácido úrico, bem como maior estabilidade elétrica e redução de mortes súbitas arrítmicas, esta última em caráter especulativo.29,30
A Tabela 1 fornece uma compilação das principais indicações, dosagens e recomendações acerca da prescrição dos antagonistas do receptor P2Y12 nas SCAs.
Tabela 1 Indicações dos antagonistas do receptor P2Y12 nas síndromes coronarianas agudas
Fármaco | Indicação | Dose de ataque | Dose de manutenção | Duração do tratamento | Suspensão para cirurgia |
---|---|---|---|---|---|
Clopidogrel | IAM com supradesnível de ST pós-trombólise | 300 mg* | 75 mg/dia | 1 ano | 5 dias |
Clopidogrel | SCA sem supradesnível de STICP primária | 300-600 mg | 75 mg/dia | 1 ano | 5 dias |
Prasugrel | SCA tratada com ICP | 60 mg | 10 mg/dia† | 1 ano | 7 dias |
Ticagrelor | SCA (exceto pós-trombólise) | 180 mg | 90 mg de 12/12 horas | 1 ano | 3-5 dias |
IAM: infarto agudo do miocárdio; SCA: síndrome coronariana aguda; ICP: intervenção coronariana percutânea.
*Omite-se a dose de ataque se idade ≥ 75 anos.
†Dose de manutenção de 5 mg se peso < 60 kg ou idade ≥ 75 anos.
c) Inibidores da glicoproteína IIb-IIIa
Os inibidores da glicoproteína (IGPs) IIb-IIIa aprovados para uso clínico - abciximabe, tirofibana e epitifibatide - constituem potentes antagonistas plaquetários de administração parenteral, sendo apenas os dois primeiros comercializados no Brasil. As características farmacológicas destes encontram-se resumidas na Tabela 2.
Tabela 2 Propriedades farmacológicas dos inibidores da glicoproteína IIb-IIIa
Abciximabe | Tirofibana | |
---|---|---|
Estrutura | Anticorpo monoclonal | Antagonista não peptídico |
Peso molecular | 48 kDa | < 1 kDa |
Início de ação | Rápido | Rápido |
Reversibilidade | Lenta (12 horas) | Rápida (2 horas) |
Meia-vida | 10-30 minutos | 2 horas |
Excreção | Desconhecida | Renal (40-70%) e biliar |
Dose de ataque | 0,25 mg/kg | 25 µg/kg |
Dose de manutenção | 0,125 µg/kg/min por 12 horas | 0,15 µg/kg/min por 18 horas |
Ajuste de dose | Não | ↓ 50% se clearance ≤ 30 mL/min |
O abciximabe é um anticorpo monoclonal com alta afinidade pelos receptores da glicoproteína IIb-IIIa. Após dose de ataque de 0,25 mg/kg, observa-se um bloqueio superior a 80% dos receptores, com redução da agregação plaquetária em resposta ao estímulo pelo ADP a menos de 20% do valor basal. Essa inibição é mantida pela infusão contínua de abciximabe a uma dose de 0,125 µg/kg/min, até um máximo de 10 µg/min. Relata-se a ocorrência de trombocitopenia em 1-4% dos pacientes tratados com o fármaco, comumente detectada nas primeiras 24 horas e em até 2 horas após o início de sua administração. Acredita-se que seja uma complicação mediada por anticorpos, com reversão na maior parte dos casos após sua suspensão, sendo por vezes necessária a transfusão de plaquetas.31
A tirofibana é um derivado tirosínico não peptídico que age através de bloqueio reversível e seletivo do receptor de glicoproteína IIb-IIIa, impedindo sua ligação ao fibrinogênio e ao fator de von Willebrand. De excreção renal e biliar, a tirofibana possui meia-vida plasmática de 1,5-2 horas, sendo o ajuste de dose necessário em pacientes com insuficiência renal com depuração de creatinina ≤ 30 mL/min e dispensado em casos de doença hepática. Quando administrada em dose de ataque de 25 µg/kg, a tirofibana exibe eficácia equivalente à do abciximabe. Casos de trombocitopenia grave, embora raros e reversíveis, também foram relatados. Atribui-se a ocorrência da trombocitopenia grave a um fenômeno imunomediado, uma vez que a ligação da tirofibana promove uma alteração conformacional no receptor, com a geração de anticorpos contra o novo epítopo exposto.32
As evidências que validaram a utilização de IGP IIb-IIIa na ICP, dada sua capacidade de redução de IAM periprocedimento e necessidade de revascularização de urgência, originaram-se sobretudo de estudos clínicos conduzidos anteriormente ao advento dos tienopiridínicos e implante rotineiro de stents. Na era contemporânea da cardiologia intervencionista, metanálises foram realizadas com o intuito de avaliar o real papel desempenhado por esses agentes como terapia adjuvante à ICP.
No tratamento da SCA sem supradesnivelamento do segmento ST, uma metanálise envolvendo 31.402 pacientes demonstrou um benefício discreto mas significativo na redução de morte e IAM aos 30 dias favorável à utilização dos IGP IIb-IIIa, notadamente entre os pacientes considerados de alto risco (ex.: pacientes com marcadores de necrose miocárdica positivos, elevada carga trombótica, ou lesões complexas).33 Uma metanálise reunindo sete estudos randomizados e 19.929 pacientes avaliou o momento mais adequado para a administração de IGP IIb-IIIa.34 A estratégia de infusão precoce, anterior à admissão do paciente ao laboratório de intervenção, não reduziu a incidência de mortalidade aos 30 dias, bem como de IAM recorrente. No entanto, associou-se a uma maior taxa de sangramento grave.
Embora a ICP primária reduza a mortalidade quando comparada à fibrinólise, observa-se reperfusão subótima em uma proporção não desprezível de pacientes, atribuindo-se à embolização distal um papel central na gênese deste fenômeno. Neste sentido, houve um grande interesse no papel dos IGP IIb-IIIa neste cenário clínico. Uma metanálise incluindo grandes ensaios clínicos contemporâneos conduzidos na vigência de pré-tratamento com clopidogrel e totalizando 10.085 pacientes, analisou a eficácia e segurança dos IGP IIb-IIIa como terapia adjunta à ICP primária no IAM com supradesnivelamento do segmento ST.35 Não se constatou redução de mortalidade aos 30 dias com a utilização desses inibidores, ou de recorrência de IAM, porém houve um aumento na taxa de sangramento grave. No entanto, empregando-se uma análise de metarregressão, observou-se um benefício favorável aos IGP IIb-IIIa entre os pacientes de maior risco (idade ≥ 65 anos, instabilidade hemodinâmica, IAM anterior, diabéticos).
Mediante a hipótese de que maior concentração local de abciximabe potencializaria seus efeitos antiplaquetários, antitrombóticos e anti-inflamatórios, testou-se a administração intracoronariana deste medicamento em bolus durante a ICP primária. Uma metanálise incluindo seis estudos randomizados e 1.246 pacientes concluiu que, comparada à infusão intravenosa, a administração intracoronariana de abciximabe promoveu redução significativa de 57% de mortalidade e de 43% na necessidade de revascularização do vaso-alvo aos 30 dias, sem incremento na taxa de sangramento grave, embora esses achados não tenham sido confirmados em um grande estudo randomizado subsequente envolvendo 2.065 pacientes.36,37
Assim, os IGP IIb-IIIa desempenham um importante papel como terapia adjunta à ICP, mas sua prescrição fica restrita a situações não programadas, sobretudo no laboratório de intervenção, com destaque aos pacientes com SCA sem supradesnível do segmento ST de alto risco e sem tratamento prévio com inibidores do receptor P2Y12, à presença de complicações trombóticas durante a ICP (oclusão abrupta do vaso, fluxo epicárdico lento, dissecção coronariana, oclusão de ramo lateral), ao IAM com supradesnivelamento do segmento ST em pacientes de alto risco ou diante de grande carga trombótica. Fundamentando a opção pela administração desses agentes, deve-se considerar o perfil de risco dos pacientes para a ocorrência de eventos hemorrágicos, sabidamente promotores de maior morbimortalidade.
Embora a utilização de IGP IIb-IIIa não tenha influenciado a eficácia dos novos fármacos antiplaquetários orais (ticagrelor, prasugrel) no tratamento das SCA, seu emprego em pacientes tratados com os novos inibidores do receptor P2Y12, assim como mediante variantes genéticas do CYP2C19, hiporresponsividade ao clopidogrel, ou opção por redução ou supressão de sua dose de manutenção, requer novas investigações.
Na fase aguda da SCA, cenário caracterizado por um estado pró-trombótico e por intensa ativação de plaquetas, a dupla antiagregação plaquetária representa uma importante etapa terapêutica, sendo intuitivo supor que uma potente e precoce ação farmacológica seja capaz de conferir eficácia anti-isquêmica, com redução de eventos trombóticos (infarto periprocedimento, trombose de stent, reoclusão coronariana), notadamente entre pacientes submetidos à estratificação de risco invasiva e ICP. Entretanto, contrapontos ao pré-tratamento com antagonistas do receptor P2Y12 incluem um aumento na prevalência de complicações hemorrágicas advindas da terapia antitrombótica, assim como um eventual retardo na instituição do tratamento cirúrgico em pacientes multiarteriais com indicação de revascularização prolongando o tempo de hospitalização e aumentando o risco de sangramentos relacionados à cirurgia. No momento, são escassas as evidências advindas de ensaios clínicos randomizados com casuística e poder estatístico adequado para uma resposta clara e definitiva ao tema.
Dentre os estudos pioneiros que sugerem o benefício da terapia antiplaquetária dupla precoce e iniciada imediatamente após o diagnóstico está o Clopidogrel for the Reduction of Events During Observation (CREDO), que randomizou 2.116 pacientes, dos quais 66% com diagnóstico de SCA.38 O objetivo do estudo era avaliar o benefício de uma dose de ataque de 300 mg de clopidogrel 3-24 horas antes da realização de ICP, bem como da manutenção da terapia dupla por 12 meses. O pré-tratamento com clopidogrel foi associado a uma redução não significativa de 18% no risco de óbito, IAM ou revascularização de urgência aos 28 dias. Entretanto, em uma análise pré-especificada de subgrupos, constatou-se uma redução significativa de 38,6% no desfecho primário em pacientes cuja terapêutica fora iniciada 6 horas antes da ICP, fundamentando conceitualmente a adoção dessa estratégia.
Na era dos novos e potentes inibidores do receptor P2Y12, o estudo Comparison of Prasugrel at the Time of Percutaneous Coronary Intervention or as Pretreatment at the Time of Diagnosis in Patients with Non-ST Elevation Myocardial Infarction (ACCOAST) randomizou 4.033 pacientes com SCA sem supradesnivelamento do segmento ST para receberem uma dose de ataque de 30 mg de prasugrel no momento do diagnóstico (pré-tratamento), acrescida de 30 mg em caso de ICP, comparada a 60 mg imediatamente antes do procedimento.39 O desfecho primário de eficácia, composto por morte cardiovascular, IAM, AVE, revascularização de urgência ou uso não programado de IGP IIb-IIIa aos 7 dias não diferiu entre os grupos, ao passo que o desfecho de segurança, ocorrência de sangramento grave pela classificação TIMI, foi quase o dobro entre aqueles pré-tratados com prasugrel, sendo assim desaconselhado seu uso nessas circunstâncias.
Embora no estudo PLATO o ticagrelor tenha sido administrado precocemente, antecedendo a estratificação invasiva, o estudo não realizou uma comparação entre o pré-tratamento ou não com o fármaco. Já no estudo Administration of Ticagrelor in the Cath Lab or in the Ambulance for New ST Elevation Myocardial Infarction to Open the Coronary Artery (ATLANTIC), 1.862 pacientes com IAM com supradesnivelamento do segmento ST foram randomizados para uma dose de ataque de 180 mg de ticagrelor antes da transferência para ICP primária, incluindo no transporte pré-hospitalar, contra uma dose de ataque administrada no laboratório de intervenção.40 A resolução do supradesnivelamento do segmento ST ≥ 70% ou fluxo TIMI 3 na artéria relacionada ao infarto no momento da angiografia, desfechos substitutos que consistiram na hipótese de investigação do estudo, não diferiu entre as estratégias. Os autores observaram uma interação altamente significativa relacionada ao uso de morfina pré-hospitalar, evidenciando um benefício no objetivo primário entre pacientes que não fizeram uso do derivado opioide. Estudos em andamento estão avaliando os efeitos da morfina nas propriedades farmacocinéticas e farmacodinâmicas dos inibidores do receptor P2Y12.41 Um interessante achado em um dos desfechos secundários do estudo, relativo à ocorrência de trombose definitiva do stent aos 30 dias, consistiu na redução significativa dessa complicação favorecendo o pré-tratamento, a despeito de uma diferença de apenas 31 minutos entre a administração do fármaco nos dois grupos. Trata-se de uma evidência, embora geradora de hipótese, que fornece sustentação ao início precoce da dupla antiagregação.
Comparações diretas entre ticagrelor e prasugrel fazem-se necessárias. Um estudo randomizado avaliando a ocorrência de complicações isquêmicas ou hemorrágicas em 1.230 pacientes com diagnóstico de IAM submetidos à ICP não demonstrou diferença entre os fármacos, sendo prematuramente interrompido por futilidade.42 Desenhado para acessar a superioridade do ticagrelor frente ao prasugrel em 4.000 pacientes com SCA e planejamento de estratificação invasiva, o estudo Rapid Early Action for Coronary Treatment (ISAR-REACT) 5, dotado de maior robustez estatística, contribuirá para a definição das normativas futuras.(43 )Por sua vez, o cotejamento entre o pré-tratamento ou não com dupla antiagregação plaquetária será investigado no ensaio clínico Downstream Versus Upstream Strategy for the Administration of P2Y12 Receptor Blockers (DUBIUS), atualmente em andamento, que prevê a inclusão de 2.520 pacientes com SCA sem supradesnivelamento do segmento ST submetidos à estratégia invasiva precoce (NCT02618837).
A dupla inibição plaquetária por um período de 1 ano é recomendada a pacientes com diagnóstico de SCA, sobretudo aqueles submetidos à revascularização miocárdica percutânea, independentemente do tipo de stent; esta recomendação é fundamentada em resultados de ensaios clínicos randomizados como o CURE e, mais recentemente, TRITON-TIMI 38 e PLATO, que apontam um benefício precoce e contínuo da terapia antiplaquetária dupla ao longo de 12 meses de tratamento.44,45
Tópico recente de discussão refere-se à manutenção da terapia antiplaquetária dupla por período de tempo superior a 12 meses entre indivíduos submetidos à ICP. Uma metanálise englobando seis ensaios clínicos randomizados e 33.435 pacientes com histórico de IAM prévio demonstrou que estender a dupla antiagregação após 1 ano promove redução significativa de eventos cardiovasculares adversos combinados quando comparada à monoterapia com AAS, demonstrando ainda redução isolada de morte cardiovascular, IAM, AVE e trombose de stent à custa do incremento na ocorrência de sangramento grave.46
Assim, a prescrição de terapia antiplaquetária dupla por período superior a 12 meses em pacientes submetidos à ICP na vigência de uma SCA pode ser considerada.47 Tal decisão deve-se pautar na análise de risco e benefício, ofertando esta opção aos pacientes predispostos à recorrência de eventos isquêmicos (ex.: IAM prévio; diabetes mellitus; disfunção ventricular esquerda; tipo, diâmetro e extensão do stent implantado; insuficiência renal crônica; insuficiência arterial periférica) mas que não exibam risco elevado de sangramento. A adoção de escores de risco mostra-se uma ferramenta auxiliar no processo de decisão, devendo prevalecer um julgamento clínico ponderado e principalmente a individualização de condutas. Outros tópicos especulativos de interesse e sob investigação atual consistem na monoterapia a longo prazo com agente antiplaquetário de maior potência inibitória, como o ticagrelor (NCT01813435; NCT02270242), bem como na associação entre um inibidor P2Y12 e inibidores do fator Xa, em detrimento ao AAS, no manejo de pacientes com SCA.48
Pacientes com fibrilação atrial, episódio recente de tromboembolismo venoso e portadores de próteses valvares mecânicas podem requerer ICP na vigência de uma SCA. Neste cenário, a conduta envolve terapêutica tripla, composta por um agente anticoagulante e dois fármacos antiplaquetários, incluindo o AAS, situação que eleva exponencialmente o risco de complicações hemorrágicas.49 Considerando-se a maior potência e ausência atual de evidências científicas, deve-se evitar o uso de prasugrel ou ticagrelor, sendo o clopidogrel o antagonista P2Y12 de escolha nessa situação. A redução na duração da terapia tripla agregaria maior segurança ao tratamento, com interrupção de um antiplaquetário assim que possível.50 Embora existam fluxogramas propostos por consenso de especialistas (Figura 1), o tema ainda é controverso e pesquisas em andamento avaliando a eficácia e segurança dos novos anticoagulantes orais associados a clopidogrel ou ticagrelor influenciarão as normativas futuras acerca do tema.
Fonte: Adaptado de Roffi et al.44
Figura 1 Terapia tripla após intervenção coronariana percutânea na síndrome coronariana aguda em pacientes que requerem anticoagulação oral.
No estudo What is the Optimal antiplatElet and Anticoagulant Therapy in Patients with Oral Anticoagulation and Coronary StenTing (WOEST), 573 pacientes em uso de anticoagulação oral com varfarina submetidos à ICP, dos quais aproximadamente 30% na vigência de uma SCA, foram randomizados para receber clopidogrel isolado ou em associação com AAS.51 Ao final de 1 ano de acompanhamento, a terapia tripla promoveu um aumento significativo no risco de sangramento, incluindo as manifestações graves, sem benefício na redução de morte, IAM, AVE, revascularização do vaso-alvo ou trombose de stent. Amparado por essa hipótese investigativa, o ensaio Open-Label, Randomized, Controlled, Multicenter Study Exploring Two Treatment Strategies of Rivaroxaban and a Dose-Adjusted Oral Vitamin K Antagonist Treatment Strategy in Subjects with Atrial Fibrillation who Undergo Percutaneous Coronary Intervention (PIONEER AF-PCI) demonstrou que a associação entre rivaroxabana 15 mg e um inibidor P2Y12, bem como rivaroxabana 2,5 mg duas vezes ao dia e terapia antiplaquetária dupla, reduziu a ocorrência de sangramento clinicamente significante quando comparados à terapia tripla com varfarina, além de mortalidade geral ou hospitalização recorrente por eventos adversos.52,53
A farmacoterapia antiplaquetária ocupa um papel decisivo no manejo clínico e invasivo das SCAs. O maior conhecimento fisiopatológico das cascatas envolvidas neste processo possibilitou o advento de formas mais eficazes de tratamento trazendo, muitas vezes, um maior risco de sangramento. Entretanto, a segurança de qualquer prescrição mostra-se primordial na prática contemporânea, uma vez que as complicações hemorrágicas carreiam um elevado risco de morbimortalidade. Muitas pesquisas em andamento tornam o tópico atual, controverso e sujeito a constantes mudanças de normativas. Assim, pautando-nos sempre pelo bom senso, individualização de condutas e estimativa de riscos e benefícios, podemos interferir de forma direta no prognóstico e evolução dos pacientes.