versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.35 no.2 Rio de Janeiro 2019 Epub 14-Mar-2019
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00201118
Antropologias, Saúde e Contextos de Crise1 é uma coletânea de textos organizada por Rosana Castro, Cíntia Engel & Raysa Martins. Esta obra deriva-se de uma série de problematizações ao longo de diversos eventos científicos e grupos de pesquisa no que concernem aos diálogos entre antropologias, processo saúde-doença e sistemas terapêuticos, retratando mais precisamente o que foi discutido na II RAS (Reunião de Antropologia da Saúde) no ano de 2017, em Brasília.
A capa da obra indica o teor do conteúdo que será abordado nos capítulos. Foi ilustrada por uma pichação em uma parede com o seguinte dizer: “Vandalismo é a fila do SUS! Não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor!”. Em outras palavras, aponta os (des)serviços no campo da Saúde e suas relações com o (des)governo dos últimos anos, aspecto este tão importante na agenda de investigação das Ciências Sociais com o atual universo político e social do Estado brasileiro 2.
Antropologias, Saúde e Contextos de Crise é um livro atual que consegue não somente acrescentar à produção do conhecimento no campo das Ciências Sociais em Saúde, como também denunciar de modo crítico-reflexivo sobre os aspectos macro e microestruturais que engendram o processo saúde-doença no país. Ademais, o livro é emblemático ao ser publicado em ano eleitoral e, exatamente, na terceira década em que o Sistema Único de Saúde (SUS) legitima-se com a Constituição Federal de 1988 pela ideia central de que as pessoas possuem o direito à saúde. Isto é: “Este direito está ligado à condição de cidadania. (...) o SUS supõe uma sociedade solidária e democrática, movida por valores de igualdade e de equidade, sem discriminações ou privilégios” 3 (p. 43).
O início da obra possui três textos que contextualizam a dimensão da crise em saúde no Brasil. Após a apresentação do livro elaborada por Soraya Fleischer, as organizadoras e Sônia W. Maluf delatam inúmeros elementos de ordem política e econômica que historicamente afetaram/afetam a saúde pública brasileira, situando o campo antropológico diante dessa realidade.
Na sequência desses textos introdutórios, o livro foi dividido em três partes: I - Etnografias em Contextos de Crise; II - Antropologias da e na Saúde: Debates, Propostas e Impasses; III - Tecnologias de Engajamento: Conhecer, Fazer, Resistir; cada uma composta por quatro capítulos.
Na Parte I, as organizadoras reuniram textos que apontam de que formas os empreendimentos etnográficos conseguem iluminar situações do cotidiano no que diz respeito ao processo saúde-doença em dadas microrrealidades sociais. As organizadoras trazem capítulos sobre o “vivido” e o “experienciado” no contexto dos cuidados básicos (e precários) de saúde em comunidade, em relação aos impactos da Reforma Previdenciária, nas dificuldades de reconhecimento de direitos à saúde na condição de brasileiros no exterior, bem como nas limitações da Reforma Psiquiátrica.
Na Parte II, há discussões sobre a legitimação e o ofício do campo antropológico na Saúde. Nesta seção, abordam-se experiências, limites e potencialidades de diálogos ou estranhamentos sobre o processo de ensino-aprendizagem da/na Antropologia e suas relações com a área e as políticas em Saúde.
Na Parte III, a obra abrange uma série de questões relacionadas ao valor do campo antropológico no sentido de compreender as lógicas e as visões de mundo de determinados grupos e contextos sociais. Comunidades quilombolas, homens e suas práticas sexuais em face do HIV/aids, assim como “pessoas com deficiência”, fazem parte dos principais eixos de análise nessa seção, que ajuda entender a necessidade de desnaturalizar e questionar os modos de lidar com o Outro, ou, ainda, fornece outras possibilidades de ser e agir no mundo.
Com base na produção acadêmica sobre as relações entre Antropologia e Saúde no país ao longo das últimas décadas 4,5,6,7, pode-se afirmar que Antropologias, Saúde e Contextos de Crise torna-se uma referência indispensável aos docentes, pesquisadores e formuladores de políticas no campo da Saúde Pública. Ainda que o livro reitere inúmeros debates já amplamente discutidos no campo das Ciências Sociais em Saúde, pode-se afirmar que a obra avança em defesa do SUS e da qualidade dos seus serviços. Isso se justifica na medida em que deixa explícita a necessidade de revelar ou fazer emergir como a redução dos recursos públicos associada aos “bastidores” privatistas e coorporativos impactam negativamente na saúde da população, sobretudo nos grupos sociais que historicamente mais carecem de cuidado. Desse modo, a obra estimula os leitores a pensarem e se mobilizarem em torno de que as atuais articulações político-econômicas para o setor Saúde (mas não somente...) possuem intenções de desmonte do SUS.
Indubitavelmente, o livro, portanto, configura-se pela perspectiva de Bourdieu 8 em que o conhecimento dito “científico” nunca é politicamente isento. Em suma, ainda que a obra tenha sido compartimentada em seções específicas pela particularidade das discussões, a sua composição entre os capítulos consegue abranger uma série de aspectos que (des)mobilizam o cenário atual em Saúde e os lugares das antropologias nesse contexto. Assim, o livro caracteriza-se por um ato político e de resistência em todos os sentidos, uma vez que consegue oferecer ao leitor um equilíbrio entre a intervenção/atuação do campo antropológico e as realidades de vulnerabilidade e violências que marcam e afetam a população brasileira.