versão impressa ISSN 0101-2800
J. Bras. Nefrol. vol.36 no.2 São Paulo abr./un. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20140034
A prevalência de doença renal crônica (DRC) no Brasil e no mundo tem aumentado de maneira alarmante nas últimas décadas.1,2 No Brasil, não há dados que descrevam a magnitude da prevalência de DRC. Contudo, se a realidade norte-americana, estimada em 10% da população, fosse empregada em nosso país, poder-se-ia estimar uma prevalência de 15 milhões de indivíduos com disfunção renal.3
Embora as técnicas dialíticas tenham avançado continuamente, nota-se que taxas de mortalidade nos pacientes com DRC se mantêm elevadas, chegando a 20% nos EUA durante os dois primeiros anos de hemodiálise (HD).4 A desnutrição energético-proteica (DEP) constitui uma das principais causas de morbimortalidade nos pacientes com DRC. Este achado é tipificado pela associação inversa entre as taxas de mortalidade e marcadores do estado nutricional.5,6 Ademais, sabe-se que a DEP constitui um distúrbio nutricional frequente na DRC, variando entre 30% a 74% em trabalhos que usaram a avaliação global subjetiva (AGS) para seu diagnóstico.7-10 A etiologia da DEP é multifatorial, incluindo ingestão alimentar inadequada, aumento do catabolismo proteico e diminuição de síntese proteica.11
Considerando a elevada prevalência de DEP e sua estreita associação com morbimortalidade, o diagnóstico nutricional nesse grupo merece especial atenção, principalmente no que se refere ao critério ou método empregado para esse fim. Como não há ainda um método único capaz de diagnosticar com fidedignidade a condição nutricional do paciente com DRC, tem se recomendado o emprego de vários marcadores, os quais podem ser objetivos e/ou subjetivos.12,13
Dentre os marcadores nutricionais subjetivos, os métodos compostos de avaliação do estado nutricional têm ganhado destaque. Estes métodos se baseiam em uma combinação de elementos subjetivos e objetivos do estado nutricional, os quais fornecem um conjunto de informações sobre a condição e o grau de déficit nutricional. No contexto da DRC, a AGS e o malnutrition inflammation score (MIS) se sobressaem como métodos compostos mais empregados tanto na prática clínica quanto em estudos. Por essa razão, este trabalho tem como objetivo fazer uma revisão do uso da AGS e MIS, focando em sua capacidade de diferenciar os pacientes bem nutridos daqueles com DEP, de diagnosticar o grau de DEP (leve, moderada ou grave) e avaliar sua capacidade preditiva de desfechos clínicos.
A AGS compreende um método que engloba aspectos subjetivos e objetivos do estado nutricional, incluindo componentes da história clínica e do exame físico. É uma ferramenta simples e de baixo custo, que pode ser aplicada por profissionais de saúde que receberam treinamento prévio.14 A AGS foi originalmente desenvolvida por Detsky et al. em 1984,15 com o objetivo de avaliar o estado nutricional de pacientes cirúrgicos em (A) bem nutridos, (B) DEP moderada e (C) DEP grave. Como obteve boa sensibilidade e especificidade ao predizer infecções pós-operatórias nessa população, a AGS passou a ser reformulada para ser aplicada em grupos específicos, a fim de aumentar sua reprodutibilidade e o seu valor preditivo.14 Desde então, sua aplicação tem aumentado em diversos grupos populacionais,16-18 incluindo os com DRC.14
A primeira validação da AGS para indivíduos em HD e diálise peritoneal (DP) se deu em 1993 por Enia et al.19 Nesse estudo, verificou-se que pacientes com DEP diagnosticados pela AGS tinham valores menores de albumina sérica, percentual de gordura corporal, circunferência muscular do braço e de ingestão proteica. Posteriormente, um estudo multicêntrico em DP, conduzido nos EUA e Canadá, o CANUSA (1996), modificou a AGS original e propôs um novo modelo com uma escala de 7 pontos. Os autores observaram que a escala expandida fornecia melhor associação com a mortalidade, sendo que o decréscimo de 1 ponto se associava com um aumento de 25% na mortalidade.20 Esta versão foi posteriormente validada por Steiber et al.10 em pacientes em HD.
A AGS-7p é recomendada pelo guia norte-americano de condutas em nefrologia, National Kidney Foundation/Dialysis Outcome Quality Initiative12 e pelo European Best Practice Guideline on Nutrition (EBPG)13 como método válido para identificar pacientes com DEP. Esta versão apresenta uma estrutura semelhante à original.
Outras modificações da AGS original foram propostas, variando quanto à escala de pontuação,21,22 componentes e modo de avaliação.6,23
Também partindo da AGS original, Kalantar-Zadeh et al.24 propuseram um novo método composto denominado malnutrition inflammation score (MIS). O MIS conta com um total de 10 componentes, sendo 70% dos itens avaliados comuns à AGS e os restantes 30% por componentes adicionais (albumina sérica, a capacidade de ligação do ferro (TIBIC) e índice de massa corporal (IMC)). No trabalho original do MIS, o aumento da pontuação (mais próxima a 30) se associou com pior condição nutricional e com maiores taxas de hospitalizações e mortalidade.24
Um tema importante quando se refere aos métodos compostos de avaliação do estado nutricional é se os mesmos são capazes de diagnosticar corretamente a condição de DEP. Para tanto, deve-se avaliar se esses métodos apresentam boa sensibilidade (verdadeiro positivo) e especificidade (falso positivo) para esse fim. Quando há um método ouro para avaliar o estado nutricional, a sensibilidade e especificidade são avaliadas encontrando o ponto de corte ou valor com melhor capacidade de predizer o desfecho, no caso, a DEP.
Em pacientes com DRC, como não há um padrão ouro para avaliar o estado nutricional, os guias de conduta na área de nutrição e DRC recomendam que se use uma combinação de métodos para minimizar os erros com diagnóstico nutricional. Estes podem ser a antropometria, bioimpedância elétrica, albumina sérica, ingestão alimentar, entre outros.12,13
Sendo assim, a maioria dos trabalhos que avaliaram a precisão dos métodos compostos de avaliação do estado nutricional o fizeram por meio da validação concorrente, ou seja, a partir da comparação entre métodos objetivos e subjetivos na avaliação do estado nutricional.7,10,21,24-34 Esses trabalhos mostram que pacientes classificados como bem nutridos pela AGS e pelo MIS apresentaram marcadores nutricionais significantemente maiores do que daqueles classificados como desnutridos. Os marcadores nutricionais avaliados nesses trabalhos foram IMC, percentual de gordura, dobras cutâneas, circunferência da cintura, ângulo de fase, massa celular corporal e albumina sérica. Com isso, os métodos compostos de avaliação do estado nutricional mostram-se capazes de diferenciar o paciente bem nutrido daquele com DEP.
Contudo, a capacidade em diagnosticar o grau de DEP (leve, moderado ou grave) da AGS e MIS não está clara. Trabalhos que realizaram a validação concorrente por meio da comparação entre os graus de DEP pela AGS com variáveis antropométricas e laboratoriais mostraram resultados divergentes. Enquanto alguns estudos apontaram que a AGS foi capaz de diferenciar o grau de DEP,10,30,35 outros não identificaram diferença entre os grupos.27,33 O trabalho de Cooper et al.,27 que incluiu pacientes em DP e HD avaliou a sensibilidade e especificidade da AGS em diagnosticar DEP e o seu grau (leve a moderado ou grave) empregando como método padrão o conteúdo de nitrogênio corporal avaliado pela análise de ativação de nêutron in vivo. Nesse estudo, a AGS apresentou boa sensibilidade (verdadeiro positivo) ao identificar pacientes com DEP, mas baixa especificidade (falso positivo) em avaliar o grau de DEP.27
A falta de consenso entre os estudos quanto à capacidade da AGS em classificar o grau de DEP pode ser decorrente da diferença na metodologia dos estudos, tanto no que se refere ao modelo de AGS empregado, quanto na diversidade de parâmetros e faixas de normalidade utilizadas para classificar o estado nutricional e fazer a validação concorrente. Com relação ao MIS, apesar de alguns estudos terem proposto valores para classificar o estado nutricional,34,36 a ausência de pontos de corte pré-estabelecidos dificulta testar a capacidade do método em avaliar o grau de DEP. Em um trabalho incluindo pacientes em HD que dividiu a amostra em quartis de pontuação do MIS, notou-se que os marcadores objetivos do estado nutricional diferiram somente entre o 1º e 4º quartil.31 Esse resultado sugere reduzida capacidade do MIS em diferenciar o grau de DEP. Contudo, mais estudos com esse foco são necessários para confirmar esses achados.
No que se refere aos modelos de AGS, aquele que apresenta maior precisão para diagnosticar DEP se mantém interrogado. Ao nosso conhecimento, somente um estudo com esse objetivo foi realizado. Campbell et al.35 avaliaram a concordância da DEP diagnosticada pela massa celular corporal (MCC) (contagem de potássio corporal total) com o obtido pela AGS em sua forma original, avaliação global subjetiva patient generated (AGS-PG) e AGS-7p. Entre esses modelos, a AGS em sua forma original obteve maior concordância com a MCC. Contudo, outros trabalhos com esse objetivo devem ser realizados para que se defina qual modelo oferece maior acurácia no diagnóstico de DEP.
A variabilidade intra e interobservador consiste outro ponto importante a se considerar ao aplicar os métodos compostos. Com esse objetivo, Visser et al.37 e Steiber et al.10 avaliaram a concordância intra e interobservador da AGS em grupo de avaliadores que receberam treinamento. Em ambos os estudos, notou-se boa concordância intraobservador e moderada concordância interobservador. Esses achados enfatizam a importância do treinamento cuidadoso e periódico para aplicação desses métodos e de se priorizar, sempre que possível, um mesmo avaliador no acompanhamento do estado nutricional.
A associação entre morbimortalidade e DEP avaliada pela AGS e pelo MIS já foi descrita em diversos estudos em pacientes com DRC. Estudos incluindo pacientes no estágio 5 da DRC (não dependente de diálise)22 e em HD26,38 mostraram que pontuação de AGS indicativa de DEP foi um preditor de mortalidade, mesmo após ajuste para covariáveis, como sexo, idade, proteína c-reativa e doença cardiovascular (DCV).22,26,38 Em consonância com esses achados, de Mutsert et al.,39 ao estudarem uma coorte de pacientes em HD e DP, mostraram que para cada ponto de redução na pontuação da AGS, o risco relativo de morte aumentava de maneira significante. Ademais, a DEP severa aumentou em 5 vezes o risco de mortalidade em relação ao grupo classificado como bem nutridos. Já em outro trabalho incluindo pacientes em DP, a associação entre mortalidade e DEP diagnosticada pela AGS não se manteve após ajuste para diabetes e DCV.9 Apesar do resultado menos favorável do último trabalho, esses dados sugerem que a AGS indicativa de DEP tem bom poder preditivo de mortalidade, resultado também mostrado para eventos de hospitalização em pacientes em HD.26,38
Com relação ao MIS, sua capacidade em predizer desfecho de mortalidade também foi demonstrada em estudos incluindo pacientes em HD24,31,36 e transplante renal.40 Em especial, o trabalho de Ho et al.,36 que incluiu pacientes em HD acompanhados por até 12 meses para eventos de mortalidade, merece atenção por mostrar que a chance de morte dos pacientes com valores de pontuação do MIS acima de 5 era de 80% e acima de 8 de 100%.
Esse conjunto de resultados demonstra, portanto, que a associação entre o pior estado nutricional e aumento de morbimortalidade se faz presente independente do modelo e/ou método composto empregado. Logo, a AGS e o MIS apresentam boa capacidade preditiva de desfechos.
O emprego de métodos compostos para avaliar o estado nutricional de pacientes com DRC tem ganhado atenção por suas vantagens, tais como a gerar uma avaliação global do estado nutricional utilizando número reduzido de aparelhos para sua realização. Com base nos estudos apresentados, pode-se concluir que esses métodos são capazes de diferenciar o paciente bem nutrido daquele com DEP e que os mesmos apresentam bom poder em predizer piores desfechos de morbimortalidade. Logo, estes métodos constituem uma alternativa válida e de grande aplicabilidade para o diagnóstico de DEP. Contudo, algumas particularidades devem ser consideradas. No que diz respeito à AGS, diferentes modelos foram propostos e não se pode afirmar, ainda, qual modelo oferece maior precisão para o diagnóstico de DEP. Segundo, os pontos de corte propostos para classificar estado nutricional merecem cautela por não representarem, com precisão, o grau de DEP. Nesse sentido, é importante que outros métodos objetivos do estado nutricional sejam empregados para complementar as informações avaliadas pelos métodos compostos. Terceiro, salienta-se a importância do treinamento prévio e cuidadoso dos avaliadores, buscando a redução da variabilidade intra e interobservadores.