versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.26 no.6 São Paulo nov./dez. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20142013086
A clínica fonoaudiológica utiliza diversos instrumentos para validar suas ações. É comum o emprego de protocolos de avaliação, muitas vezes subjetivos, para definição das diferentes etapas e procedimentos da fonoterapia. Nos últimos anos, observa-se a crescente busca por instrumentos e análises mais diretas, quantificadoras, buscando-se uma maior precisão dos dados coletados, bem como dos diagnósticos e prognósticos.
A análise perceptivo-auditiva é utilizada amplamente nas áreas de voz e linguagem e pode ser complementada por outras avaliações instrumentais, a fim de que o sujeito seja avaliado e tratado sob todos os aspectos de seu distúrbio comunicativo. A análise acústica de fala e voz vem sendo empregada há bastante tempo como um instrumento de análise dos casos alterados, promovendo diagnósticos mais precisos, bem como acompanhamento do processo terapêutico, tanto pelo fonoaudiólogo como pelo paciente( 1 - 4 ). Já a análise articulatória, na área da fala e da motricidade orofacial, surge como nova possibilidade, principalmente no âmbito nacional( 5 - 10 ), de integração dessas análises já citadas, utilizando-se, por exemplo, a ultrassonografia para avaliação dos movimentos de língua( 11 - 22 ) e do osso hioide( 19 , 23 - 27 ), sem a inserção de dispositivos no interior da cavidade oral.
A investigação dos movimentos de língua é uma das possibilidades de uso desse tipo de avaliação articulatória, a qual não é considerada invasiva, é acessível e com mínimas interferências na visualização dos movimentos intraorais( 28 , 29 ), possibilitando a investigação em diversas subáreas da Fonoaudiologia. O conhecimento de fonoaudiólogos sobre as possibilidades de uso da ultrassonografia em variadas alterações fonoaudiológicas, enfoque deste artigo, pode influenciar pesquisas importantes na área e consequentes descobertas relevantes. O uso do ultrassom permite ao fonoaudiólogo realizar análise articulatória dos dados do sujeito avaliado e do paciente em processo terapêutico( 11 , 12 , 30 ).
Apresentar estudos dos últimos cinco anos que utilizaram a ultrassonografia na área da Fonoaudiologia, os quais evidenciam possibilidades de aplicabilidade dessa técnica nas diferentes subáreas da Fonoaudiologia.
Foi realizada uma revisão narrativa da literatura com base na pergunta que norteou o presente estudo: Em que áreas e de que forma os dados ultrassonográficos podem contribuir para o conhecimento fonoaudiológico?
Para responder a essa pergunta, foi realizado um levantamento bibliográfico no período de maio a julho de 2013. O mesmo foi realizado, inicialmente, na base de dados internacional PubMed, a qual é mantida pelo Centro Nacional de Informação Biotecnológica (NCBI) do Instituto Nacional de Saúde (NIH). Optou-se por essa estratégia de busca em razão de ela catalogar artigos científicos publicados em periódicos indexados nas principais coleções científicas mundiais.
Os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) empregados na pesquisa foram: "ultrasonic"; "speech"; "phonetics"; "Speech, Language and Hearing Sciences"; "voice"; "deglutition" e "myofunctional therapy", contemplando algumas das áreas da Fonoaudiologia. Também foram pesquisados os termos: "ultrasound"; "ultrasonography"; "swallow"; "orofacial myofunctional therapy" e "orofacial myology" na busca, mesmo não sendo descritores previstos pela Biblioteca Regional de Medicina (BIREME), por serem encontrados diversas vezes nos artigos da área. As combinações dos descritores e termos ocorreram da seguinte forma: ultrasonic AND speech, ultrasound AND speech, ultrasonography AND speech e, assim, sucessivamente com os demais descritores e termos.
Após a busca por artigos por meio dos descritores e termos citados, iniciou-se a pesquisa pelos resumos dos estudos e, caso estes fossem de interesse para o presente estudo, iniciou-se a procura pelos respectivos artigos na íntegra.
Desse modo, a fim de se obter alguns artigos completos não disponíveis na PubMed, também foi utilizada como base de dados o Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), através da busca por assunto com o título do trabalho.
Priorizaram-se as bases de dados citadas devido à facilidade de acesso estabelecida por convênios específicos realizados pela Universidade Federal de Santa Maria, da qual fazem parte as autoras deste artigo.
Como critérios da pesquisa na base de dados, foram selecionados: estudos dos últimos cinco anos, e estudos em seres humanos. Desse modo, foram encontrados 320 resumos na pesquisa realizada por meio da base de dados PubMed. A Figura 1 apresenta o número total de resumos para cada subárea da Fonoaudiologia, anterior à adoção dos critérios de inclusão e exclusão dos artigos que compuseram a presente revisão bibliográfica.
Figura 1. Total de resumos selecionados na base de dados PubMed conforme o cruzamento dos descritores
Conforme exposto no item Estratégia de Pesquisa, após a busca realizada na base de dados, realizou-se uma pré-seleção do material coletado a partir da leitura dos resumos. Os critérios de inclusão do trabalho na presente revisão foram: empregar a ultrassonografia como instrumento para a obtenção de dados; relacionar a informação ultrassonográfica a alguma das áreas de interesse da Fonoaudiologia - fala, fonética, voz, motricidade orofacial e deglutição; estar disponível na íntegra, ou na PubMed, ou no Portal de Periódicos CAPES.
Na pré-seleção, foram descartados estudos duplicados, não disponibilizados na íntegra e que não apresentassem relação direta da ultrassonografia com a Fonoaudiologia, por exemplo: artigos que empregaram a ultrassonografia na investigação de biópsias, carcinomas, deglutição esofágica, entre outros. Com isso, ao final do levantamento, foram selecionados: 12 artigos para a subárea ultrassom versus fala/fonética; cinco para ultrassom versus voz; um para ultrassom versus músculos mastigatórios e dez para ultrassom versus deglutição. Embora sejam descritores utilizados na presente revisão, não foram encontrados estudos ao cruzar os termos "ultrassom" e "Fonoaudiologia" ("Speech, Language and Hearing Sciences"). Portanto, foram selecionados para a presente revisão 28 artigos, sendo o mais antigo de 2008 e o mais recente de 2013.
A análise dos dados foi realizada de forma descritiva e separada para cada subárea da Fonoaudiologia, como descrito anteriormente.
Foram analisados os itens:
objetivos;
sujeitos considerados no estudo;
procedimentos importantes e
resultados principais do estudo.
Os estudos relacionados à pesquisa "Ultrassom e Fala" visaram, de forma geral:
aplicar as imagens de ultrassonografia na terapia de fala( 11 , 12 , 30 );
investigar os efeitos coarticulatórios, por exemplo, da sílaba CV (consoante-vogal)versus CVC (consoante-vogal-consoante), ou do contexto vocálico( 13 , 18 , 31 );
pesquisar alguns descritores dos movimentos de língua, dentre eles, a velocidade e a distância percorrida( 14 , 16 );
caracterizar os gestos envolvidos na produção de segmentos consonantais, como o fonema /r/( 15 );
descrever estratégias articulatórias compensatórias e movimentos encobertos( 32 ) e
propor medidas articulatórias via ultrassonografia( 22 ).
A definição das amostras restringiu-se aos objetivos das pesquisas. Portanto, os artigos que aplicaram dados ultrassonográficos para a investigação da fala pesquisaram sujeitos com fala típica( 13 , 15 , 16 , 18 , 31 ) e atípica( 11 , 12 , 14 , 16 , 30 , 32 ). As alterações de fala eram decorrentes de desordens na fala( 11 , 12 ), glossectomia( 14 , 16 ), perda auditiva( 30 ) e fissura palatina( 32 ). As pesquisas para essa subárea tiveram em média 8,5 sujeitos; destes, 64,9% eram adultos e 35,1%, crianças.
Assim como a caracterização do grupo de sujeitos, os aspectos metodológicos observados são bastante heterogêneos, também restritos à proposta da pesquisa (Quadro 1).
Quadro 1. Estudos que abordaram a aplicação da ultrassonografia na fala Legenda: US = ultrassom; VOT = Voice Onset Time
Os principais resultados dos artigos são igualmente apresentados no Quadro 1. Destacam-se as diversas possibilidades de aplicação das imagens de ultrassonografia de língua na subárea da fala, desde a identificação de padrões gestuais em um procedimento avaliativo até a inserção dessa tecnologia como um procedimento terapêutico disponível à clínica fonoaudiológica.
Com o cruzamento dos descritores relacionados à "ultrassonografia" e "fonética", encontrou-se um estudo( 21 ) direcionado à pesquisa de segmentos de fala. O referido artigo objetivou analisar as imagens das formas da língua de um sujeito, falante nativo de um dialeto do Nepal, durante a produção de plosivas e africadas, vozeadas e desvozeadas, dentais, retroflexas e palatais. Nesse estudo, os autores acreditam que as informações espaciais e dinâmicas obtidas via imagem de ultrassonografia de língua podem complementar os dados obtidos com a eletropalatografia estática, relacionados à localização e ao tipo de constrição da língua no palato.
Os resultados evidenciaram diferenças nas formas de língua, mesmo que algumas discretas, entre a localização da constrição da consoante vozeada e desvozeada, da consoante no início e no final da sílaba e entre os diferentes pontos articulatórios do dialeto investigado( 21 ).
A associação entre ultrassom e fonética (Quadro 2), embora ainda tímida, conforme a presente pesquisa bibliográfica, já permitiu verificar que as imagens ultrassonográficas são capazes de fornecer especificidades de uma dada língua, com base na análise da dinâmica dos sons em tempo real. Tal instrumentalização também pode estimular pesquisas na área da fonética sobre a organização de sequências silábicas, coarticulação e organizações estruturais dos sons.
Os estudos encontrados e destacados no Quadro 3 apresentaram objetivos bem diferenciados, que investigam desde a tonicidade e comprimento de músculos, medição de onda mucosa, adaptação de válvulas de fala, até revisão de literatura. Muitos estudos comparam e buscaram discutir as vantagens, as desvantagens e a aplicabilidade de instrumentos, como o ultrassom, a eletroglotografia, a videofluoroscopia, a tomografia computadorizada, entre outros( 33 - 36 ). Muitas dessas técnicas são amplamente utilizadas na área médica e por profissionais fonoaudiólogos, mas o ultrassom, por exemplo, é um método que necessita de estudos e que vem sendo recrutado em maior escala em pesquisas na área fonoaudiológica.
Os estudos tiveram em média 49 sujeitos participantes( 34 - 36 ), os resultados apresentam avanços para área e contribuem para difundir o uso de novas técnicas, aperfeiçoá-las e validá-las.
Os cinco estudos relataram a importância do uso do método do ultrassom combinado com outras técnicas, podendo diminuir o risco de complicações pós-cirúrgicas( 36 ), determinar com melhor exatidão segmentos laríngeos( 35 ), determinar variações de comprimento muscular( 34 ), bem como contribuir para diagnóstico e plano terapêutico eficientes( 33 , 37 ).
O único estudo encontrado( 8 ) (Quadro 4) relacionando a técnica ultrassonográfica e os músculos mastigatórios (mesmo tendo empregado descritores relacionados, de forma geral, à motricidade orofacial) apresenta um trabalho interdisciplinar e a proposta de um tratamento integrado em distúrbios frequentes na clínica fonoaudiológica - alterações musculares decorrentes de distúrbios oclusais.
Quadro 4. Estudo que abordou a aplicação da ultrassonografia na avaliação de um músculo mastigatório
A técnica ultrassonográfica permitiu a medição da espessura do músculo masseter, bem como o diagnóstico, o plano terapêutico e o prognóstico interdisciplinar - ortodôntico, ortognático e fonoaudiológico. A técnica mostrou-se eficiente para as medições, possibilitou o acompanhamento e a definição de critérios de alta para os pacientes( 8 ).
Acredita-se que existam estudos de outras áreas (por exemplo, a odontológica) que também se destinam à pesquisa dos músculos mastigatórios por meio de imagens de ultrassonografia, os quais poderiam também ser de especial interesse para a Fonoaudiologia. No entanto, esses não foram incluídos neste artigo, em razão de não terem sido localizados por meio das estratégias de busca aqui consideradas.
Na pesquisa dos descritores ultrassom versus deglutição, trabalhos os quais são apresentados no Quadro 5, foi bastante recorrente entre os estudos selecionados a investigação do deslocamento do osso hioide durante o ato de deglutir( 19 , 23 - 26 ). Além dessa medida, outros três trabalhos pesquisaram ainda a espessura da musculatura lingual( 20 , 27 ) e a pressão exercida pela língua no palato( 19 ).
Quadro 5. Estudos que abordaram a aplicação da ultrassonografia na deglutição Legenda: US = ultrassom; AVE = Acidente Vascular Encefálico
Os demais objetivos dos estudos voltaram-se para a comparação do ultrassom e técnicas já consagradas para a investigação da deglutição, como a videofluoroscopia e a videoendoscopia( 23 , 27 , 38 ). Também para a diferenciação de padrões de deglutição somática e visceral( 17 ) e, por fim, para a pesquisa de padrões de movimento dos músculos gênio-hioideos( 39 ).
Quanto à amostra avaliada nos trabalhos mencionados( 17 , 19 , 20 , 23 - 27 , 38 , 39 ), os grupos foram compostos por sujeitos com deglutição típica (de crianças a idosos) e com deglutição alterada, decorrente de algumas doenças de base, como o Acidente Vascular Encefálico (AVE). O número de sujeitos foi bastante variável entre os artigos, de cinco a 104 sujeitos, obtendo-se como média 42,5 sujeitos.
As pesquisas(19,23-26) destacaram o ultrassom como um importante instrumento para avaliação do deslocamento do osso hioide na investigação da deglutição. A redução do movimento do osso hioide foi associada com o aumento do risco de invasão de resíduos nas vias aéreas e laringe. Ao se comparar a imagem de ultrassom com outros instrumentos de avaliação( 23 , 27 , 38 ), aquele foi considerado como um método confiável, relativamente barato e não invasivo de investigação, todavia que tem recebido pouca atenção na literatura.
Através do emprego do ultrassom, alguns autores puderam verificar que a pressão da língua no palato e o movimento hioide são fenômenos distintos na sequência da deglutição( 19 ). No entanto, houve correlação entre a espessura da língua, verificada por meio de imagens ultrassônicas, e o estado nutricional de pacientes com disfagia pós-AVE. Assim, a desnutrição pode induzir a sarcopenia (diminuição da massa e da força muscular) e a disfunção e anormalidade da língua também podem ser um indicativo para a disfagia( 20 ).
Em razão de a ultrassonografia ainda ser subutilizada em pesquisas sobre disfagia, em grande parte dos estudos são sugeridas novas análises envolvendo essa técnica na padronização de medidas confiáveis para avaliação da deglutição. No entanto, em sua maioria, já confirmam as imagens ultrassonográficas como uma possibilidade na avaliação da dinâmica da deglutição.
Encontraram-se pesquisas que estudaram o uso da técnica ultrassonográfica na área da Fonoaudiologia nos últimos cinco anos. Esses estudos confirmaram as novas possibilidades de uso do ultrassom em todas as subáreas da Fonoaudiologia consideradas na presente revisão bibliográfica, primando por um diagnóstico mais preciso, avaliações mais detalhadas, processos terapêuticos diferenciados e uma maior relação custo-benefício.
A maioria (27 dos 28 artigos selecionados para a presente revisão bibliográfica) dos estudos encontrados foi realizada em outros países, evidenciando a necessidade de atualização e busca pela utilização de novos instrumentos nas pesquisas e na clínica fonoaudiológica no Brasil.