versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.113 no.1 São Paulo jul. 2019 Epub 27-Jun-2019
https://doi.org/10.5935/abc.20190095
O eletrocardiograma (ECG) foi revigorado com o reconhecimento de alterações elétricas que ainda não haviam sido observadas de maneira definitiva. Nesse contexto, principalmente na definição dos substratos arritmogênicos, a associação do ECG com o vetorcardiograma (VCG) propiciou mais informações sobre os fenômenos elétricos cardíacos, possibilitando distinguir os casos potencialmente fatais dos benignos. A obtenção de um VCG ao mesmo tempo da realização do ECG trouxe um ganho muito importante para definir patologias extremamente sofisticadas, com alterações estruturais ou dinâmicas que envolvem canais e correntes iônicas, cujas funções são diminuídas ou exageradas em razão de mutações genéticas.
Os aspectos clássicos da relação ECG/VCG no diagnóstico diferencial das áreas inativas, dos distúrbios de condução, das sobrecargas atriais e ventriculares e das associações entre esses distúrbios elétricos continuam vigentes e assertivos, e ficam mais claros quando vistos pelo binômio ECG/VCG. Além disso, a orientação espacial tridimensional das atividades atrial e ventricular cria uma ferramenta de observação muito mais completa do que o modo linear do ECG.
A análise moderna do ECG e do respectivo VCG, obtidos simultaneamente pela técnica recente chamada de eletrovetorcardiograma (ECG/VCG), trouxe um ganho importante no diagnóstico diferencial de algumas patologias. Desse modo, são abordadas aqui as principais utilidades dessa análise na elucidação de diagnósticos importantes da atividade diária na clínica cardiológica.
Palavras-chave Eletrocardiografia/métodos; Vetocardiografia/métodos; Fenômenos Eletrofisiológicos; Medicina Interna/métodos
The electrocardiogram (ECG) has been reinvigorated by the identification of electrical alterations that were not definitely clarified before. In this context, and mainly regarding the definition of arrhythmogenic substrates, the association of the ECG with the vectorcardiogram (VCG) has gathered much more information about the cardiac electrical phenomena, thus allowing us to differentiate potentially fatal cases from benign ones. Obtaining a VCG concomitantly with the performance of an ECG has led to a significant gain in the definition of extremely sophisticated pathologies, which function suffer some type of structural or dynamic alterations, involving either the reduction or enhancement of ionic channels and currents.
The classic aspects of the ECG/VCG association in the differential diagnosis of myocardial infarctions, conduction disorders, atrial and ventricular hypertrophies, and the correlations between these electrical disorders are still valid and assertive. The association of these pathologies is further clarified when they are seen through the ECG/VCG dyad.
The three-dimensional spatial orientation of both the atrial and the ventricular activity provides a far more complete observation tool than the ECG linear form. The modern analysis of the ECG and its respective VCG, simultaneously obtained by the recent technique called electro-vectorcardiogram (ECG/VCG), brought a significant gain for the differential diagnosis of some pathologies. Therefore, we illustrate how this type of analysis can elucidate some of the most important diagnoses found in our daily clinical practice as cardiologists.
Keywords Electrocardiography/methods; Vectocardiography/methods; Electrophysiological Phenomena; Internal Medicine/methods
O estudo vetorcardiográfico iniciou-se na década de 1940, mas o ápice das publicações foi entre as décadas de 1960 e 1970, quando se relacionou esse método com as mais diversas doenças cardíacas conhecidas na época. A grande dificuldade, à ocasião, estava ligada ao fato de o aparelho não poder ser deslocado com facilidade. Assim, as imagens não eram obtidas de imediato, e o VCG era uma ferramenta usada a posteriori, para tirar as dúvidas dos ECGs em situações especiais. Somando-se a isso, o surgimento da ecocardiografia e seu posterior aprimoramento, bem como o advento da tomografia computadorizada e da ressonância magnética, resultaram em um arrefecimento da utilização do ECG, mas principalmente do VCG, a partir da década de 1980 até o final da década de 1990. Esse gap temporal, associado ao menor interesse pelo ECG/VCG, culminou numa significativa redução do número de centros cardiológicos capacitados a realizar e interpretar o VCG.
Entretanto, com o desenvolvimento da eletrofisiologia invasiva (mapeamento eletroanatômico), da genética e da biologia molecular, muitas doenças elétricas foram reveladas, o que propiciou um novo reconhecimento de padrões clínico-eletrocardiográficos, já que essas patologias poderiam levar à morte súbita.1-7
O aprimoramento tecnológico observado na década de 1990 também alcançou o ECG/VCG; afinal, a sofisticação da computação, dos sistemas de algoritmos e as transformadas de Fourier possibilitaram a obtenção da informação vetorcardiográfica de maneira muito mais simples e rápida, em cores e em 3D.
Desse modo, o ECG foi revigorado, com o reconhecimento de alterações elétricas que ainda não haviam sido observadas de modo definitivo, constatando-se um crescente aumento do número de publicações relacionadas ao ECG/VCG a partir dos anos 2000 até a década atual. Nesse contexto, principalmente na definição dos substratos arritmogênicos, observou-se que a associação entre os métodos ECG e VCG poderia oferecer mais informações sobre os fenômenos elétricos cardíacos e, assim, ampliar sua utilização, possibilitando distinguir os casos potencialmente fatais dos benignos.8-10
Atualmente, a realização e leitura do VCG acontecem apenas em pouquíssimos centros específicos ao redor do mundo. Além disso, temos como atribuição o ensino sobre o ECG nos cursos de graduação e pós-graduação na área médica. Desse modo, entende-se que urge a necessidade de se ensinar VCG, o que facilitará sobremaneira, por sua visão espacial da ativação elétrica cardíaca, a compreensão e fixação dos conceitos eletrocardiográficos básicos e mais complexos.11
A obtenção de um VCG ao mesmo tempo da realização do ECG proporcionou um ganho muito importante para definir patologias extremamente sofisticadas, com alterações estruturais ou dinâmicas que envolvem canais e correntes iônicas, cujas funções são diminuídas ou exageradas em razão de mutações genéticas.
Os aspectos clássicos da relação ECG/VCG no diagnóstico diferencial das áreas inativas, dos distúrbios de condução, das sobrecargas atriais e ventriculares e das associações entre esses distúrbios elétricos continuam vigentes e assertivos.12,13 Essas associações ficam mais claras quando vistas pelo binômio ECG/VCG (Figura 1).
Na última década, foi desenvolvido o binômio ECG/VCG nas situações das mais variadas patologias, podendo conferir sofisticação às entidades clínicas já conhecidas e muita acuidade nas recentes definições eletrocardiográficas (BrS, repolarização precoce [RP], etc.). A experiência, tanto acadêmica como científica, viabilizou a reunião dessas novas aquisições, ECG/VCG, abrindo uma janela para a observação dos fenômenos elétricos. Assim, a literatura tem mostrado que o VCG, mais sofisticado, facilita a observação de fenômenos pontuais que não são definidos no ECG.
Como poucos centros realizam vetorcardiografia de rotina, não há dúvida de que este estudo comparativo requer treinamento específico, como qualquer outro método diagnóstico, por meio de bibliografia e cursos de ensino a distância bastante didáticos. Portanto, o intuito desta publicação vem ao encontro do reconhecimento de tal condição.
A experiência das últimas décadas com o VCG mostra sua maior especificidade e sensibilidade para detectar as sutilezas diagnósticas. O VCG apresenta algumas vantagens quando comparado ao ECG; porém, ao estarem juntos, podem ajudar a diferenciar situações bem comuns na prática clínica.
A orientação espacial tridimensional das atividades atrial e ventricular cria uma ferramenta de observação muito mais completa que o modo linear do ECG. A análise moderna de ambos os métodos simultaneamente propiciou um ganho importante no diagnóstico diferencial de algumas patologias (Figura 2).1,3,4,8,14,15
Figura 2 A ativação elétrica do coração e sua projeção nos três planos espaciais, originando as alças vetorcardiográficas nos respectivos planos.
A análise eletrovetorcardiográfica no diagnóstico das áreas eletricamente inativas (AEI) é muito rica e consistente, pois as dificuldades na definição das ondas Q patológicas ou a perda de ondas R no ECG podem ser muito bem visualizadas no ECG/VCG. Essa parceria torna possível definir as reais mudanças provocadas pelas AEI no sentido e na orientação das alças vetorcardiográficas, tanto no plano horizontal (PH) como no plano frontal (PF) (Figura 3).16-18
Figura 3 A. Área inativa inferior. Observa-se a existência de área elétrica inativa na parede inferior, com alça vetorcardiográfica do QRS orientando sua saída para cima e para a esquerda. B. Área inativa anterosseptal. Aspecto de extensa área elétrica inativa de V1 a V6 e a respectiva alça no plano horizontal, com ativação anômala do septo e rotação exagerada para trás, acompanhada de deformação da alça de QRS.
Outro importante diferencial obtido pelo ECG/VCG é a pesquisa da presença de AEI na parede inferior, de bloqueio divisional superior esquerdo ou de ambas as patologias associadas. A relação das AEI com a ocorrência de bloqueios divisionais ou tronculares pode ser bem caracterizada pelo ECG/VCG. As AEI inferiores com bloqueio divisional anterossuperior (BDAS) e as AEI anteriores com bloqueio de ramo direito (BRD) são exemplos típicos da importância do ECG/VCG para o diagnóstico diferencial (Figuras 3A e 4).19,20
Figura 4 Aspectos das alças do ECG/VCG na AEI inferior. Na Figura 3A, é possível notar a saída da alça do QRS no PF para cima, com mais de 30 ms de duração (15 cometas). A. Bloqueio divisional anterossuperior (BDAS). Observa-se a saída para baixo da alça do QRS (pela divisão posteroinferior), com rotação anti-horária e maior porção da alça para cima e para a esquerda. B. Associação entre BDAS e área eletricamente inativa (AEI) inferior. Pode-se notar que a alça de QRS no PF sai para cima com rotação horária e, após 30 ms, muda o sentido, com rotação anti-horária, caracterizando o BDAS.
A orientação espacial dos bloqueios divisionais pode ser mais bem compreendida por meio do ECG/VCG. A orientação do vetor septal e o sentido da ativação da alça vetorcardiográfica caracterizam muito bem os bloqueios divisionais e suas associações com o ECG/VCG, pois definem o caminho elétrico desse fenômeno, caracterizando exatamente as posições dos bloqueios (Figuras 4A e 5).21-24
Figura 5 Aspectos eletrovetorcardiográficos do BDAS (Figura 4A). A. Bloqueio divisional posteroinferior (BDPI) esquerdo. B. Bloqueio divisional anteromedial (BDAM) esquerdo.
O VCG complementa o ECG na análise dos infartos agudos do miocárdio e faz o diagnóstico diferencial das associações com bloqueios e sobrecargas. Não há dúvida de que as situações muito comuns na rotina, como ausências ou exageros das ondas R de V1 a V3, necessitam de uma definição mais sofisticada nessa região, na qual se apresentam várias expressões de patologias diversas. Nesse contexto, o ECG/VCG pode identificar a presença de (Figuras 5B e 6):22-27
Figura 6 Exemplos de diagnósticos diferenciais identificados pelo ECG/VCG em diversas patologias, como BDAM (Figura 5B), sobrecarga ventricular direita (SVD) Figura 6A; infarto lateral Figura 6B.
Figura 6 Exemplos de diagnósticos diferenciais identificados pelo ECG/VCG em diversas patologias, como BDAM (Figura 5B), pré-excitação ventricular (WPW) Figura 6C; e síndrome de Brugada Figura 6D.
a) Bloqueio divisional anteromedial (BDAM) esquerdo
b) Sobrecarga ventricular direita (SVD)
c) Infarto lateral
d) Pré-excitação ventricular (WPW)
e) Síndrome de Brugada (BrS).
Na identificação dos bloqueios completos e divisionais, o ECG/VCG é "gold standard", pois consegue defini-los isoladamente ou associados a outros bloqueios. O caminho elétrico marcado pelas alças de ativação ventricular consegue discriminá-los, bem como outras associações (Figura 7).21,23,28
Figura 7 Aspectos vetorcardiográficos da associação de BDPI com BRD: eixo para a direita no plano frontal (BDPI), com maior parte da alça do QRS no PF para baixo e para a esquerda, e alça de QRS no plano horizontal terminando com um retardo para frente e para a direita (BRD).
Os atrasos finais de condução, definidos anteriormente como bloqueios incompletos de ramo direito, são bem definidos pelo ECG/VCG. Esses achados podem ser confundidos com os fenômenos esquerdos e ainda mimetizar AEI. Desse modo, o ECG/VCG afasta as dúvidas quanto à presença desses atrasos, que podem ser variantes do normal ou até sugerir distúrbio de condução em áreas específicas do ventrículo direito.
A ocorrência do atraso final de condução (AFC) está clara no ECG/VCG pelo padrão S1S2S3, com a onda S de D2 maior que a onda de D3, qR em aVR e presença de onda S de V1 a V6. Assim, o ECG/VCG confirma a posição do AFC para trás e para a direita no PH, e para a direita e para cima no PF (Figura 8).25
Uma das identificações definitivas realizadas pela parceria ECG/VCG é a ocorrência da pré-excitação ventricular (WPW). A presença da onda delta fica muito clara no início da alça de QRS pela proximidade dos cometas no local, o que caracteriza o atraso causado pela via anômala, definindo, inclusive, a posição do feixe anômalo no anel valvar (Figura 9).26
Figura 9 Aspectos eletrovetorcardiográficos da pré-excitação ventricular, destacando-se, com as setas, a presença da onda delta.
Uma das novas aquisições diagnósticas do ECG/VCG são os critérios para definir os padrões da BrS, bem como do fenômeno da RP. É muito importante salientar que, nos casos típicos, não há dificuldade no reconhecimento eletrovetorcardiográfico de ambas as condições. Devido à gravidade da primeira, à variabilidade da segunda entre casos normais e outras patologias e à possibilidade de a RP apresentar-se em uma região mais anterior, a diferenciação adequada tornou-se fundamental. Sob a ótica do ECG/VCG não há, até o momento, diretrizes estabelecidas para anormalidades da onda J.
Nosso grupo de pesquisa estudou padrões específicos das anormalidades da onda J: a síndrome de Brugada (BrS) e a repolarização precoce (RP). Foi realizada uma importante análise qualitativa e quantitativa do ECG/VCG em toda a população estudada, especificamente dos aspectos que englobam a porção terminal da alça do QRS, o ponto J e o segmento ST. A análise dos VCGs mostrou nítido AFC em todos os indivíduos (BrS e RP). O AFC é definido por um atraso de condução maior que 10 ms na porção final do QRS em todos os planos, para a direita ou para a esquerda (lentificação dos "cometas", que tendem a se aproximar e, eventualmente, se fundir).
No PH, as alças do QRS tiveram rotação anti-horária, e o AFC iniciou-se posteriormente e terminou anteriormente; a principal diferença entre os grupos foi a posição do AFC.
Na BrS tipo 1 (ver Figura 6D), observam-se: rotação anti-horária do segmento terminal do QRS, ponto J e início do segmento ST ao redor da porção medial, que se assemelha a um "nariz". A posição do AFC foi no quadrante direito em todos os pacientes com BrS, e sua duração foi significativamente mais longa. Um AFC maior ou igual a 30 ms teve sensibilidade de 100% e especificidade de 77% para BrS. O grupo com essa síndrome mostrou uma "quebra" ao final da alça do QRS após o AFC, semelhante a um "nariz", logo antes do início da alça da onda T. Esse padrão de "nariz" esteve presente em todos os pacientes com BrS tipo 1.
Na RP9,25 (Figura 10), há uma rotação horária (porção terminal do QRS) dos mesmos segmentos, a qual se parece com um "anzol". Em todos os casos de RP, a posição do AFC foi no quadrante esquerdo e com duração mais curta. Em 100% dos pacientes com RP, o final da alça do QRS mostrou um formato de "anzol".
Figura 10 Aspectos eletrovetorcardiográficos característicos da repolarização precoce. Plano horizontal: início da alça do QRS com rotação anti-horária; AFC iniciou‑se posteriormente e terminou anteriormente e no quadrante esquerdo em todos os pacientes com RP. No segmento terminal da alça do QRS (já com rotação horária), 100% dos indivíduos com RP apresentaram, no final da alça do QRS, um formato de “anzol”.
Aspectos eletrovetorcardiográficos característicos da BrS tipo 1 (ver Figura 6D): plano horizontal - início da alça do QRS com rotação anti-horária; AFC iniciou-se posteriormente e terminou anteriormente e no quadrante direito em todos os pacientes com BrS; no segmento terminal da alça do QRS, a BrS mostra "quebra" ao final da alça do QRS após o AFC, semelhante a um "nariz", logo antes do início da alça da onda T. Esse padrão de "nariz" esteve presente em todos os pacientes com BrS tipo 1, porém em nenhum dos pacientes com RP.
Uma patologia arritmogênica muito importante, a cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito (CAVD), tem no diagnóstico eletrovetorcardiográfico uma ferramenta quase que definitiva. O AFC com baixa voltagem e com muita duração à direita (para frente ou discretamente para trás) caracteriza o fenômeno com muita precisão, sendo muito importante o diagnóstico diferencial, já que a patologia pode levar a arritmias graves (Figura 11).
Figura 11 Aspectos eletrovetorcardiográficos encontrados na CAVD, destacando-se, ao final da alça de QRS, um atraso de grande duração.
A CAVD se apresenta por vezes com aspecto semelhante ao BRD, mas com a voltagem muito baixa, diferente do bloqueio. Ela também pode ter aspecto de AFC à direita e discretamente para trás. A presença da onda T negativa em V1, V2, V3 e posterior esquerda no PH do ECG/VCG é fundamental para o diagnóstico preciso.
Os novos procedimentos de ablação de arritmias, como na BrS, têm sido acompanhados pelo ECG/VCG, podendo colaborar na caracterização dos casos que tiveram sucesso ou não no procedimento. A experiência inicial e já consagrada do ECG/VCG na WPW e nos processos de ablação dessa síndrome propiciou subsídios para as novas observações descritas. A BrS tem se mostrado muito dinâmica na questão do substrato arritmogênico, e o acompanhamento com ECG/VCG pode ser muito proveitoso na definição do processo (Figura 12).29,30