versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.14 no.3 São Paulo jul./set. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082016RB3594
A esclerose lateral amiotrófica (ELA) é uma doença neurodegenerativa progressiva e fatal, caracterizada pela fraqueza muscular secundária e comprometimento dos neurônios motores, que são as células do sistema nervoso central que controlam os movimentos voluntários dos músculos. Dois tipos de neurônios motores são afetados na ELA: neurônios motores superiores (NMS) ou primeiros neurônios, os quais estão localizados na área motora do cérebro, e neurônios motores inferiores (NMI), ou segundos neurônios, que estão localizados no tronco cerebral e na porção anterior da medula espinhal.
Os NMS regulam a atividade dos NMI por meio do envio de mensagens químicas (neurotransmissores). A ativação dos NMI permite a contração dos músculos voluntários do corpo, e, no tronco cerebral, os NMI ativam músculos da face, boca, garganta e língua. Os NMI, na medula espinhal, ativam todos os outros músculos voluntários do corpo, como aqueles dos membros (superiores e inferiores), tronco, pescoço, bem como diafragma, dentre outros.(1)
A ação da ELA nos músculos NMI pode gerar salivação excessiva (sialorreia). Costa et al.,(2) demonstraram a classificação clínica da gravidade da sialorreia em leve (exteriorização da saliva em pequena quantidade, estase leve, com baixo risco de aspiração pulmonar); moderada (exteriorização de saliva de moderada quantidade; troca de até três babadores/dia); e severa (grande exteriorização de saliva, troca de mais de três babadores por dia, penetração laríngea da saliva e alto risco de aspiração pulmonar).
A bactéria Clostridium botulinum produz uma toxina causadora da patologia denominada botulismo. As toxinas produzidas por C. botulinum estão entre as substâncias mais letais conhecidas na ciência.(1,2) São conhecidos cerca de sete tipos diferentes de toxinas que C. botulinum pode produzir, denominadas por letras: A, B, C, D, E, F e G. Apesar das toxinas apresentarem semelhança estrutural, seus sítios de ação são diferentes, resultando em efeitos variáveis. Apenas o tipo A é liberado para uso clínico no Brasil. Recentemente, o tipo B, com maior efeito em junções autonômicas, foi liberado para uso nos Estados Unidos (Myobloc, Elan, San Francisco, CA, EUA).
Certas toxinas produzidas pela bactéria causadora do botulismo podem ser purificadas e industrializadas. Dessa forma, a toxina de cunho venenoso passa a se denominar toxina botulínica Botox®, utilizada principalmente para diminuição de rugas e linhas de expressão facial.(3–5) Recentemente, o Botox® foi utilizado não só no campo da estética, mas também como forma de tratamento de alguns sintomas de doenças degenerativas como ELA e doença de Parkinson, entre outras.
A administração de Botox® nas glândulas salivares de pacientes com certas afecções neurológicas procura diminuir a sialorreia apresentada, relacionada à falha do controle da musculatura facial e oral que atua na deglutição, além de ajudar em parâmetros de fonação e inclusão do paciente em âmbito social.(6,7) Diversos estudos tiveram como objetivo demonstrar o método alternativo que visa ajudar no tratamento da sialorreia, um dos sintomas geralmente manifestados por portadores de doenças neurodegenerativas. Dentre eles, destacamse Portes(3) que avaliou dez pacientes, entre 5 e 21 anos, todos com mais de 10kg e disfágicos, Costa et al.(2) que desenvolveu pesquisas com 22 pacientes que receberam toxina botulínica nas glândulas salivares, 14 (63,6%) eram do sexo masculino e 8 (36,4%), do feminino. A faixa etária variou de 4 a 34 anos, com média de 12,5 anos e mediana de 13 anos. Manrique(8) selecionou cinco pacientes com ELA diagnosticados há, no mínimo, 2 anos para aplicação de Botox® em glândulas salivares guiadas por ultrassom. Ao todo, foram avaliados 37 pacientes, sendo 35 (94,6 %) portadores de ELA, e 2 (5,4%) de outras patologias neurodegenerativas (Quadro 1).
Quadro 1 Resumo dos principais estudos que utilizam toxina botulínica em pacientes com esclerose lateral amiotrófica
Autor | Estudo | Participantes | Resultados |
---|---|---|---|
Costa CC, et al.(2) | Injections of botulinum toxin into the salivary glands to the treatment of cronic sialorrhoea. | 22 | Redução da sialorreia em todos os casos, 2 pacientes apresentaram pouca redução devido a presença de glândulas multicísticas. Sem efeitos colaterais. |
Portes KP(3) | Aplicação da toxina botulínica em glândulas salivares como tratamento da sialorréia crônica em pacientes com doença neurológica. | 10 | Melhora aparente no quadro de todos os pacientes, com redução no número de troca de babadores diários. Sem efeitos colaterais. |
Manrique D(8) | Application of type A botulinum toxin to reduce saliva in amyotrophic sclerosis lateral. | 5 | Boa condição de melhora em 4 dos 5 pacientes sem efeitos colaterais, 3 permaneceram 4 meses sem queixas. |
Indivíduos saudáveis secretam de 1.000 a 1.500mL de saliva em 24 horas. Muitas doenças neurológicas evoluem no que se diz respeito à salivação excessiva, apresentando ao portador dificuldades no controle motor oral.(7) Manrique(8) ressaltou que quando a produção de saliva excede a habilidade do indivíduo de transportála da boca até o estômago, a estase, o escape extraoral e a aspiração podem ocorrer, além de concomitantes dificuldades na mastigação e articulação. A sialorreia ocorre em torno de 50% dos pacientes com ELA, 70% na doença de Parkinson, e entre 10 a 80% dos pacientes com paralisia cerebral.(8)
A sialorreia presente nos pacientes com ELA prejudica a mastigação e a fala, podendo ocorrer escape extraoral e dificuldade de aspiração salivar, afetando diretamente a qualidade de vida do paciente no âmbito social, dificultando sua inclusão, e acentuando os quadros de depressão, também dificultando a reabilitação.(8,9) Outras propostas com intuito de redução de saliva já são utilizadas rotineiramente, como as drogas anticolinérgicas, que apresentam também efeitos colaterais como retenção urinária e cefaleia.(9,10)
Há também a possibilidade de ser realizada uma cirurgia em pacientes que a doença ainda não está em um estágio muito avançado, o qual consiste na retirada de uma das glândulas salivares. Trata-se de uma cirurgia delicada, que expõe o paciente aos riscos da anestesia geral.
Dessa forma, surge a necessidade de um método alternativo aos tratamentos já existentes. O Botox® sai do ramo da estética para ser utilizado como tratamento paliativo em doenças neurodegenerativas. Para que sua aplicação seja realizada, o paciente precisa fazer um tratamento odontológico prévio e não ter feito uso do Botox® em outros locais nos últimos 6 meses.
O tratamento com Botox® ainda não é a primeira opção. Assim, a administração de toxina botulínica é realizada diante da intolerância aos efeitos dos anticolinérgicos. Algumas glândulas salivares, como a submandibular, não têm fácil acesso apenas pela palpação, o que gera a necessidade da aplicação ser guiada por ultrassonografia.(11)
A glândula submandibular apresenta uma pequena dificuldade em ser detectada apenas com a palpação.(8) Dessa forma, devem-se utilizar recursos de imagem, como a ultrassonografia, por meio do qual pode-se bem e injetar a toxina nas glândulas de difícil acesso, como a submandibular.(12–14) Recomenda-se a orientação por ultrassom para a localização das glândulas salivares. As doses médias são de 20 a 30 unidades para cada uma das parótidas, e de 10U para as submandibulares. A duração do efeito varia entre 2 e 6 meses, e durações maiores de efeito estão relacionadas a doses também maiores, porém, nestes casos, podem ocorrer reações adversas, como boca seca e disfagia.(14,15) Tal procedimento é pouco invasivo e, apesar de exigir nova aplicação após alguns meses, não apresenta efeitos colaterais, exceto se o valor administrado for superior ao valor citado, e se o paciente possuir algum tipo de anafilaxia quanto à toxina botulínica. Estudos relataram a administração de 30U de Botox® em um ponto central da glândula salivar, não existindo efeitos colaterais ou sistêmicos. Em 10% (4 casos), a ação do Botox® não se fazia presente, sendo que, em 90% (33 casos), houve a melhora da salivação, que foi prolongada pela aplicação continuada.(8,15)
A administração de Botox® apresenta-se como a melhor alternativa em relação a procedimentos mais invasivos, como a cirurgia de retirada de uma das glândulas. O uso de drogas anticolinérgicas pode trazer diversos tipos de efeitos colaterais, como retenção urinária e cefaleia. O tratamento com Botox® apresentou-se de maneira positiva nos estudos já executados. Ainda assim, o quantitativo de trabalhos publicados nesse âmbito apresenta um deficit, o que sugere o desenvolvimento de pesquisas e artigos para popularizar e demonstrar essa prática.
A toxina botulínica amplia os horizontes e traz a possibilidade de benefícios maiores com riscos menores, mesmo que isso exija aplicações periódicas. Os efeitos colaterais locais ou sistêmicos não são manifestados, se a aplicação não superar o valor preconizado de ate 30U nas parótidas e 10U nas submandibulares, conforme pontos da figura 1, o que nos leva a crer que, se houver algum efeito, esse será de natureza anafilática. Diante de todo o avanço da ciência moderna, atualmente não existe cura para ELA, mas há tratamentos paliativos. O uso de toxina botulínica demonstrou resultados positivos quando administrada em pacientes com sialorreia crônica, acometidos por doenças neurodegenerativas, havendo ausência de complicações com a técnica empregada (Figura 2). A possibilidade de gerar efeitos colaterais é ínfima, visto que esses podem ser apenas de natureza anafilática. O controle da sialorreia proporciona melhor alimentação e interação social, reduzindo o constrangimento e aumentando a autoestima do portador.
Fonte: Manrique D. [Application of type A botulinum toxin to reduce saliva in amyotrophic sclerosis lateral]. Rev Bras Otorrinolaringol. 2005;71(5):566-9. Portuguese.(8)
Figura 1 Pontos de aplicação de toxina botulínica em glândulas salivares. Glândula parótida (dois pontos) e submandibulares (um ponto)
Fonte: Costa CC, Ferreira JB. [Injections of botulinum toxin into the salivary glands to the treatment of cronic sialorrhoea]. Rev Bras Cir Cabeça Pescoço. 2008;37(1):28-31. Portuguese.(2)
Figura 2 Aplicação de toxina botulínica na glândula parótida e submandibular direita guiada por ultrassonografia, sob sedação
Dos 37 pacientes estudados, 33 (90%) apresentaram melhora no quadro clínico, sendo 32 (86,5%) portadores de ELA e 1 (2,7%) portador de Parkinson. Demonstraram significativa diminuição no número de babadores de mais de quatro babadores por dia para dois a três por dia. Os pacientes que utilizavam até três babadores ao dia deixaram de usá-lo. Aqueles que apresentavam sialorreia grave passaram à categoria de moderada, e os que tinham sialorreia moderada passaram para a classe leve; 4 (10,8%) pacientes não apresentaram melhora, sendo que 3 (8,1%) eram portadores de ELA e 1 (2,7%) de Parkinson (Tabela 1). Em alguns pacientes com glândulas salivares multicísticas os resultados foram inferiores com relação aos pacientes sem essas alterações patológicas.(8,16)
Tabela 1 Resultados dos estudos com toxina botulínica em pacientes portadores de esclerose lateral amiotrófica e Parkinson
Doença relacionada | Melhora n (%) | Não apresentaram melhora n (%) |
---|---|---|
Esclerose lateral amiotrófica | 32 (86,5) | 3 (8,1) |
Parkinson | 1 (2,7) | 1 (2,7) |
Por inúmeras vezes, procedimentos cirúrgicos e drogas anticolinérgicas, dentre outros métodos, eram utilizados para controle da sialorreia. Hoje, a ciência amplia os horizontes, trazendo um procedimento estético alternativo para auxiliar o bem-estar do portador de doenças neurodegenerativas que manifestem o sintoma da salivação excessiva em seu quadro clínico, melhorando a vida do portador em âmbito físico, psicológico e social.