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Aplicação do questionário SCORED para rastreamento da doença renal crônica entre pacientes hipertensos e diabéticos

Aplicação do questionário SCORED para rastreamento da doença renal crônica entre pacientes hipertensos e diabéticos

Autores:

Paulo Roberto Santos,
Vicente Lopes Monte Neto

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X

Cad. saúde colet. vol.24 no.4 Rio de Janeiro out./dez. 2016

http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x201600040178

Abstract

Introduction

A questionnaire named SCORED was developed in order to predict the probability of an individual chances of having chronic kidney disease (CKD). We aimed to evaluate the performance of SCORED among hypertensives and diabetics registered with the Family Health Strategy (FHE) program in the city of Meruoca, Ceará, Brazil.

Methods

221 participants formed the sample. Glomerular filtration rate <60 mL/min was used as gold standard for CKD diagnosis. We calculated accuracy, sensitivity, specificity and positive and negative likelihood ratios of the SCORED tool for the diagnosis of CKD.

Results

Results of SCORED performance were the following: the score generated was an independent predictor of CKD (OR=1.261; CI 95%=1.108-1.597; p=0.049); the questionnaire had 97% sensitivity and 23% specificity in diagnosing CKD, with positive likelihood ratio of 1.25 and negative of 0.13, and accuracy of 47%. High sensitivity and low negative likelihood ratio enables SCORED to be used as a screening tool for CKD among hypertensive and diabetic people.

Conclusion

The use of this questionnaire has the potential to increase early diagnosis of CKD among patients registered with the FHE, besides its applicability to the general population and in educational campaigns.

Keywords:  renal insufficiency, chronic; mass screening; primary health care; diabetes mellitus; hypertension

INTRODUÇÃO

A doença renal crônica (DRC) foi descrita pela primeira vez como entidade clínica por Richard Bright em 1836 na Inglaterra1. Após dois séculos, a DRC continua sendo um grave problema de saúde pública mundial devido à sua alta prevalência e associação com alta morbimortalidade2. Calcula-se que 10% da população apresenta DRC3,4. Entre os grupos de risco, como hipertensos, diabéticos e idosos, a prevalência é ainda mais alta, em torno de 40%5-7. A pessoa com DRC tem alto risco de morte de causa cardiovascular8,9, e a estimativa da taxa de mortalidade anual é de 15,7 por 100 mil por DRC10.

O diagnóstico precoce da DRC depende de exames laboratoriais simples – tais como urina do tipo I e creatinina sérica –, já que os sintomas só aparecem nos estágios mais avançados da doença. A presença de proteína na urina tipo I e/ou a diminuição da taxa de filtração glomerular (TFG), estimada pelo valor da creatinina sérica, são os componentes diagnósticos da DRC quando persistem por mais de três meses11. Apesar de simples, o diagnóstico precoce da DRC continua sendo um grande desafio mundial de saúde pública. Caso seja feito tardiamente, impossibilita tanto retardar a progressão da perda da função renal como diminuir as complicações cardiovasculares, além de aumentar o custo do tratamento12,13.

Ainda que o diagnóstico da DRC seja feito por exames laboratoriais simples e amplamente disponibilizados pelos laboratórios, há dados que mostram que: a detecção da DRC é baixa na atenção primária de saúde14; a grande parcela de pessoas com DRC desconhece a doença até necessitarem de terapia renal substitutiva (TRS)15; o grande número de diabéticos e de hipertensos é acompanhado sem ter a creatinina sérica dosada16; o rastreamento da DRC entre diabéticos acompanhados por clínicos gerais é menor que 10% (mesmo após número médio de dez consultas)17.

Nos Estados Unidos, foi idealizado um questionário denominado Screening for Occult Renal Disease (SCORED), que rastreia e alerta sobre um risco aumentado de DRC em fase inicial, com a vantagem de apenas utilizar variáveis facilmente entendidas por leigos, sem necessidade de exames laboratoriais18. No Brasil, o SCORED foi traduzido para o português, adaptado culturalmente e validado em amostra de funcionários da Universidade Federal de Juiz de Fora, demonstrando sensibilidade de 80% e valor preditivo negativo de 97% para detecção da DRC19.

Diante da constatação de que muitos indivíduos com risco para DRC não são sequer submetidos a exames laboratoriais para avaliação da função renal, objetivamos neste estudo: [i] determinar a prevalência de DRC entre indivíduos com risco para DRC (hipertensos e diabéticos), utilizando como padrão-ouro a estimativa da TFG, e [ii] testar as propriedades de sensibilidade, especificidade, likelihood ratio positivo, likelihood ratio negativo e acurácia do questionário SCORED na identificação da DRC em uma amostra de hipertensos e diabéticos cadastrados na unidade-sede do programa de Estratégia Saúde da Família (ESF), no município de Meruoca, no Estado do Ceará.

MÉTODOS

A amostra foi formada pelos pacientes cadastrados como hipertensos e/ou diabéticos na unidade-sede da ESF, no município de Meruoca, nos meses de maio a julho de 2014. O único critério de exclusão foi idade inferior a 18 anos. Os sujeitos da amostra foram abordados em seus domicílios por agentes de saúde da ESF a fim de esclarecer-lhes o objetivo do estudo, agendar o comparecimento dos participantes na unidade-sede da ESF para o procedimento da coleta dos dados (idade, gênero, raça-negra ou não-negra –, medicação em uso, presença de comorbidades) e aplicar os questionários Critério Brasil20 e da versão brasileira do SCORED19. Tanto a coleta dos dados como a aplicação desses questionários foram realizados por uma enfermeira dessa unidade, previamente treinada.

O questionário Critério Brasil avalia a posse de bens e nível educacional para classificação de cinco estratos de classe social de A (melhor nível) a E (pior nível)20. O SCORED é constituído por 11 perguntas com respostas “sim” ou “não” referentes a dados demográficos (idade e gênero) e clínicos (presença e ocorrência de morbidades). As respostas “sim” geram pontuação diferenciada de acordo com cada pergunta. A pontuação final varia de 0 a 12, e se ela for maior ou igual a 4, trata-se de alerta para risco de DRC, como validado anteriormente18,19.

Após a coleta dos dados, os agentes de saúde agendavam a data para realização dos exames laboratoriais de urina para detecção de proteinúria (por fitas reagentes Multistick 10 SG da Siemens®) e dosagem sérica de creatinina (pela técnica da reação de Jaffé com reagente da Roche®). A coleta dos dois exames era procedida na unidade-sede da ESF da cidade de Meruoca. No dia da coleta dos exames laboratoriais, era agendada nova data para a realização do segundo exame de creatinina sérica, obedecendo ao intervalo de três meses entre o primeiro e segundo exames.

O cálculo da TFG foi feito a partir do resultado da creatinina sérica e de acordo com a fórmula denominada Chronic Kidney Disease Epidemiology Collaboration (CKD-EPI)21. O diagnóstico de DRC foi estabelecido por dois resultados de TFG<60 mL/min/1,73m2 (TFG normal ≥90mL/min/1,73m2). O cut off da TFG para diagnóstico da DRC em nosso estudo é o mesmo escolhido na validação original do SCORED e deve-se por duas razões: diminuir o risco de detectar DRC nos casos de TFG diminuída em idosos saudáveis pela senilidade dos rins e porque as fórmulas de estimativa da TFG, a partir dos valores de creatinina sérica, foram validadas e apresentavam maior acurácia em TFG<60mL/min/1,73m2.

Tendo como padrão-ouro o diagnóstico de DRC pelo critério laboratorial descrito anteriormente, foram calculadas as seguintes propriedades do SCORED referentes à detecção da DRC: sensibilidade (taxa de pacientes com DRC que obtiveram ≥4 pontos pelo SCORED), especificidade (taxa de pacientes sem DRC que obtiveram <4 pontos pelo SCORED), likelihood ratio positivo (sensibilidade/1 - especificidade), likelihood ratio negativo (1 - sensibilidade/especificidade) e acurácia (proporção de verdadeiro-positivo e falso-positivo pelo SCORED em relação a todas as possibilidades).

As variáveis contínuas foram apresentadas como média e desvio-padrão, em caso de distribuição normal, e como mediana e valores mínimo e máximo, em caso de distribuição anormal. Já as variáveis categóricas foram apresentadas em valores absolutos e percentagem. As comparações foram feitas pelo teste t e Mann-Whitney, respectivamente, para variáveis contínuas com distribuição normal e anormal. Compararam-se as frequências pelo teste do qui-quadrado e de Fisher, quando indicado. Utilizou-se regressão logística para o cálculo de risco para DRC (variável dependente), tendo como variáveis independentes aquelas que diferiram entre os participantes com e sem risco de DRC pelo SCORED, assim como entre os sujeitos com e sem DRC pelo padrão-ouro (TFG estimada pela fórmula CKD-EPI). O software SPSS, versão 22, foi utilizado para os cálculos estatísticos. A significância estatística foi estabelecida para p<0,05.

Todos os sujeitos da amostra assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual Vale do Acaraú sob protocolo nº 623.313.

RESULTADOS

A Tabela 1 mostra as características da amostra.

Tabela 1 Características da amostra 

Variáveis
Gênero, n (%)
Feminino 158 (71,5)
Masculino 63 (28,5)
Idade, x¯ ±DP 69,7 ± 15,5
Classe social, n (%)
A 3 (1,4)
B 49 (22,2)
C 138 (62,44)
D 30 (13,6)
E 1 (0,4)
Etnia, n (%)
Não negra 219 (99,1)
Índice de massa corporal, x¯ ± DP 28,6 ± 5,0
Comorbidade, n (%)
Hipertensão 144 (65,2)
Diabetes e hipertensão 41 (18,6)
Diabetes 19 (8,6)
Miscelânea 17 (7,6)
Em uso de insulina, n (%) 23 (10,4)
Em uso de hipoglicemiante, n (%) 54 (24,4)
Em uso de anti-hipertensivo, n (%) 199 (90,0)
Em uso de estatina, n (%) 50 (22,6)
Creatinina, x¯ ± DP (mg/mL) 1,0 ± 0,4
Com proteinúria, n (%) 145 (65,6)
Taxa de filtração glomerular, x¯ ± DP (mL/min) 71,1 ± 22,8
Pontuação pelo SCORED, Md (mín-máx) 6 (0-10)
Com risco de doença renal crônica pelo SCORED, n (%) 183 (82,8)
Com doença renal crônica pela taxa de filtração glomerular, n (%) 70 (31,7)

DP=desvio padrão; Md=mediana

Conforme a Tabela 2, quando comparados os pacientes com e sem risco de DRC de acordo com o SCORED, aqueles com risco eram mais idosos, de classe social mais baixa, apresentavam maior prevalência de comorbidades, usavam mais hipoglicemiantes e estatinas, tinham creatinina sérica mais elevada e TFG mais baixa do que os sujeitos sem risco de DRC. Na análise multivariada, todas as variáveis independentes citadas foram confirmadas como preditoras do risco de DRC (variável dependente), exceto classe social e uso de estatina.

Tabela 2 Comparação entre os pacientes atendidos na Estratégia Saúde da Família com e sem risco de doença renal crônica pelo SCORED 

Variáveis Sem risco Com risco P
Gênero, n (%) 0,697
Feminino 27 (69,3) 132 (72,5)
Masculino 12 (30,7) 50 (27,5)
Idade, x¯ ± DP 42,6 ± 8,1 64,6 ± 13,8 <0,001
Classe social, n (%)
A 3 (7,7) 0 0,003
B 10 (25,6) 39 (21,4)
C 20 (51,3) 118 (64,9)
D 6 (15,4) 24 (13,2)
E 0 1 (0,54)
Etnia, n (%)
Não negra 38 (97,4) 181 (99,4) 0,318
IMC, x¯ ± DP 29,4 ± 5,2 28,4 ± 5,0 0,285
Comorbidade, n (%)
Hipertensão 34 (87,2) 110 (60,1) 0,005
Hipertensão e diabetes 2 (7,7) 39 (21,3)
Diabetes 2 (5,1) 17 (9,3)
Miscelânea 0 17 (9,3)
Em uso de insulina, n (%) 2 (5,1) 21 (11,5) 0,383
Em uso de hipoglicemiante, n (%) 4 (10,2) 52 (28,5) 0,023
Em uso de anti-hipertensivo, n (%) 37 (94,8) 165 (90,6) 0,382
Em uso de estatina, n (%) 3 (7,6) 48 (26,4) 0,011
Creatinina, x¯ ± DP (mg/mL) 0,8 ± 0,1 1,0 ± 0,4 0,034
Com proteinúria, n (%) 23 (58,9) 124 (68,1) 0,357
Taxa de filtração glomerular, x¯ ± DP (mL/min) 88,9 ± 16,9 67,3 ± 22,1 <0,001
Pontuação pelo SCORED, Md (mín-máx) 3 (0-3) 6 (4-10) <0,001

DP=desvio padrão; Md=mediana; P=probabilidade de significância

Já a Tabela 3 mostra os coeficientes beta, odds ratio e nível de significância calculados pelo método de regressão logística, referentes a cada variável independente.

Tabela 3 Regressão logística para doença renal crônica (variável dependente) segundo as variáveis independentes que diferiram entre os sujeitos com e sem risco de doença renal crônica pelo SCORED 

Variável b OR (IC) P
Idade
Comorbidade
0,126
0,278
1,135 (1,083-1,201)
1,773 (1,034-3,065)
<0,001
0,039
Creatinina –1,711 0,180 (0,059-0,703) 0,013
Taxa de filtração glomerular –0,045 0,955 (0,921-0,992) 0,010
Classe social –0,100 0,904 (0,438-1,914) 0,792
Uso de hipoglicemiante 2,457 11,677 (2,682-50,894) 0,001
Uso de estatina 0,844 2,327 (0,521-10,322) 0,268

b=coeficiente de regressão; OR=odds ratio; IC=intervalo de confiança; P=probabilidade de significância

Segundo a Tabela 4, ao comparar os pacientes com e sem DRC de acordo com a TFG, os sujeitos com DRC eram mais idosos, usavam mais estatina, tinham creatinina mais elevada e pontuação mais alta gerada pelo SCORED do que os indivíduos sem risco. Na análise multivariada, dentre as variáveis citadas, apenas a pontuação gerada pelo SCORED foi preditora independente de DRC.

Tabela 4 Comparação entre os pacientes atendidos na Estratégia Saúde da Família com e sem doença renal crônica de acordo com a taxa de filtração glomerular 

Variáveis Sem DRC Com DRC P
Gênero, n (%)
Feminino 103 (68,7) 56 (78,9) 0,150
Masculino 47 (31,3) 15 (21,1)
Idade, x¯ ± DP 57,5 ± 15,5 67,3 ± 13,3 <0,001
Classe social, n (%)
A 3 (2,0) 0 0,121
B 34 (22,7) 15 (21,1)
C 90 (60,0) 48 (67,6)
D 22 (14,7) 8 (11,3)
E 1 (0,6) 0
Etnia, n (%) 0,534
Não negra 149 (99,3) 70 (98,5)
IMC, x¯ ± DP 28,5 ± 4,7 28,9 ± 5,8 0,601
Comorbidade, n (%)
Hipertensão 92 (61,3) 52 (73,3) 0,265
Hipertensão e diabetes 30 (20) 11(15,5)
Diabetes 16 (10,7) 3 (4,2)
Miscelânea 12 (8,0) 5 (7,0)
Em uso de insulina, n (%) 15 (10,0) 8 (11,2) 0,813
Em uso de hipoglicemiante, n (%) 43 (28,6) 13 (18,3) 0,135
Em uso de anti-hipertensivo, n (%) 137 (91,3) 65 (91,5) 0,810
Em uso de estatina, n (%) 28 (18,6) 23 (32,4) 0,025
Creatinina, x¯ ± DP (mg/mL) 0,8 ± 0,1 1,3 ± 0,5 <0,001
Com proteinúria, n (%) 100 (66,7) 47 (66,1) 1,000
Taxa de filtração glomerular, x¯ ± DP (mL/min) 83,6 ± 14,9 44,1 ± 10,0 <0,001
Pontuação pelo SCORED, Md (mín-máx) 5 (0-10) 6 (3-10) <0,001

DP=desvio padrão; Md=mediana; DRC=doença renal crônica; P=probabilidade de significância

A Tabela 5 mostra os coeficientes beta, odds ratio e nível de significância calculados pelo método de regressão logística, referentes a cada variável independente.

Tabela 5 Regressão logística para doença renal crônica (variável dependente) segundo as variáveis independentes que diferiram entre os sujeitos com e sem doença renal crônica de acordo com a taxa de filtração glomerular 

Variável b OR (IC) P
Idade 0,015 1,015 (0,992-1,043) 0,272
Pontuação do SCORED 0,232 1,261 (1,108-1,597) 0,049
SCORED ≥4 pontos 1,136 1,136 (0,601-16,056) 0,174
Uso de estatina 1,519 1,519 (0,763-3,029) 0,233

b=coeficiente de regressão; OR=odds ratio; IC=intervalo de confiança; P=probabilidade de significância

Assumindo como padrão-ouro a TFG<60 mL/min/1,73m2 em duas medidas com intervalo de três meses, as propriedades do SCORED em indicar risco de DRC foram as seguintes: sensibilidade de 97%, especificidade de 23%, likelihood ratio positivo igual a 1,25, likelihood ratio negativo igual a 0,13 e acurácia de 47%.

DISCUSSÃO

Por que utilizar um questionário para rastrear a DRC?

Como exposto na Introdução, o diagnóstico da DRC é simples e baseado no exame de urina para detecção de proteinúria (indicador de lesão renal) e na dosagem sérica da creatinina para estimativa da TFG (indicador do nível da função renal). Ainda não há concordância sobre o custo-benefício da solicitação dos exames de urina e de creatinina para rastreamento populacional da DRC22. Não obstante, é consenso a necessidade desses exames entre os indivíduos que constituem os grupos de risco para DRC, tais como hipertensos, diabéticos, idosos, cardiopatas e familiares de pessoas com DRC23. Ainda assim, verifica-se mundialmente que a DRC continua sendo diagnosticada tardiamente, em grande parte pelo fato de as pessoas pertencentes aos grupos de risco não serem submetidas aos exames laboratoriais para avaliação da função renal16. Além disso, grande parcela dos indivíduos com diagnóstico de DRC feito na atenção primária não é encaminhada para o nefrologista14,17. Diagnóstico precoce e encaminhamento para o especialista no tempo certo são os dois desafios para o enfrentamento do grave problema de saúde pública que constitui a DRC.

Na prática diária das unidades de diálise, é comum que pacientes iniciem TRS sem o conhecimento prévio da DRC15. Na cidade de Sobral, onde estão localizadas as duas unidades de referência para TRS da região norte do Ceará, de julho de 2012 a junho de 2013, entre os pacientes com DRC que iniciaram TRS, somente 27,6% deles tinham creatinina sérica dosada, apesar de mais da metade desses sujeitos ser hipertensa e diabética (dado não publicado). Nos Estados Unidos, estima-se que apenas 28% dos hipertensos e 22% dos diabéticos tenham a creatinina sérica dosada16. Na atenção primária, a DRC é pouco detectada por clínicos gerais14,17.

O impacto do diagnóstico precoce da DRC é grande, pois propicia: a diminuição da mortalidade de causa cardiovascular; a redução do custo do tratamento, tanto por retardar a progressão da DRC como por postergar o início da TRS; a melhora da qualidade de vida dos pacientes; o encaminhamento no tempo certo para o nefrologista12,13,24, o que permite o acesso a medicamentos de alto custo para o controle dos estados mórbidos associados à DRC, por exemplo, anemia e distúrbio mineral ósseo, como também possibilita o início eletivo da TRS por meio da confecção de acesso vascular (fístula), e não de acesso provisório por cateter, o que diminui drasticamente a mortalidade durante o primeiro ano de TRS25,26.

Portanto, o problema de saúde pública do diagnóstico tardio da DRC deve ser enfrentado com o envolvimento do maior número de pessoas da comunidade, além dos profissionais da área de saúde. Nesse contexto, são muito importantes questionários simples validados para alertar as pessoas sobre uma probabilidade aumentada da presença de DRC, sem dependência de exame laboratorial, que possam ser autoaplicados ou aplicados por leigos (pessoas fora da área de saúde), em vários cenários: empresas, instituições, salas de espera de consultório médico, comunidades, campanhas educativas. Por exemplo, após o preenchimento do SCORED, existe mensagem no rodapé do questionário dizendo: “Se você marcou 4 ou mais pontos, na próxima visita a um médico, um simples exame de sangue deve ser pedido. Somente um profissional de saúde pode determinar com certeza se você tem doença renal”. Questionários desse tipo funcionam como um poderoso instrumento para reforçar a necessidade da realização de exames de avaliação da função renal em pessoas com risco de DRC, colaborando, assim, para aumentar o diagnóstico precoce da doença.

Com e sem DRC pelo SCORED

O instrumento SCORED foi capaz de apontar risco de DRC entre os mais velhos, de classe social mais baixa, em uso de hipoglicemiante e/ou estatina, pacientes com creatinina sérica mais elevada e TFG mais baixa. Porém, na análise multivariada, classe social e uso de estatina não foram variáveis preditoras independentes. Por sua vez, as variáveis idade e presença de diabetes eram esperadas como preditoras de DRC, já que são utilizadas pelo SCORED para gerar pontos. Sendo assim, deve ser ressaltada a capacidade do SCORED (sem depender de exames laboratoriais) em predizer nível mais elevado de creatinina e TFG mais rebaixada entre os sujeitos da amostra.

O SCORED superestimou a prevalência de DRC – 82,8% pelo SCORED versus 31,7% pelo critério baseado na TFG. Mas aqui vale lembrar que a prevalência de DRC pelo SCORED poderia ter sido mais próxima do padrão-ouro caso este tivesse levado em consideração não apenas a TFG, mas também a proteinúria persistente por pelo menos três meses, como preconizado pelo Kidney Disease Improving Global Outcomes (KDIGO). Isso porque a prevalência de proteinúria de apenas uma medida (sem a segunda medida após intervalo de três meses) foi bastante alta (65,5%) na amostra. A escolha do critério baseado apenas na TFG deveu-se por ser esse o critério utilizado na validação original do SCORED.

Com e sem DRC pela TFG

Os pacientes com DRC, segundo o critério TFG<60 mL/min/1,73m2 em duas medidas com intervalo de três meses, eram mais velhos, usavam mais estatina e obtiveram pontuação mais elevada gerada pelo SCORED. Porém, na análise multivariada, apenas a pontuação gerada pelo SCORED foi capaz de predizer de forma independente a presença de DRC. Ressaltamos que nosso resultado valida o questionário SCORED como preditor independente de DRC entre hipertensos e diabéticos, como ainda não evidenciado em nenhum outro estudo brasileiro.

Em estudos nacionais e internacionais, a prevalência de DRC na população geral é confirmada em torno de 10%3,4. Há pelo menos dois trabalhos apontando resultados discordantes que demonstram prevalência menor e maior do que 10%. No Brasil, um estudo pioneiro de rastreamento populacional de DRC foi realizado na cidade de Bambuí, em Minas Gerais, e demonstrou baixa prevalência de DRC entre adultos (0,5%) e idosos (5,1%)27. Porém esse resultado é decorrente do método diagnóstico empregado: considerou-se apenas o nível da creatinina sérica, e não a estimativa da TFG, o que subestima a perda da função renal28. Outro estudo aponta uma prevalência de 23,4% de DRC na população29. O fato é que vieses relacionados às características da amostra (composição étnica, pois a DRC é mais comum entre afrodescendentes do que entre os caucasianos) e ao perfil da região (nível de qualidade da assistência à saúde) onde o estudo foi conduzido podem explicar a diferença.

Sabe-se menos sobre a prevalência da DRC entre pacientes diabéticos e hipertensos atendidos na assistência primária no Brasil. Nosso estudo contribui com fornecimento de dados ao identificar uma prevalência semelhante à encontrada em outros países. A prevalência de DRC entre nossos participantes foi de 31,7%, próxima das prevalências de 34,7 e 39,7% entre diabéticos, respectivamente, na Finlândia e nos Estados Unidos5,6, e um pouco abaixo da prevalência de 42,6% entre hipertensos de um estudo espanhol7.

Propriedades do instrumento

Em nosso estudo, o SCORED apresentou especificidade de 23% em detectar DRC, índice menor do que a especificidade encontrada nos estudos de validação populacional nos Estados Unidos e no Brasil, respectivamente, com 68 e 65%18,19. A diferença é decorrente dos tipos de amostra: indivíduos com risco para DRC em nosso estudo e base populacional nos estudos de validação. Entretanto, o SCORED apresentou maior sensibilidade em nossa amostra (97%) do que nos estudos de validação norte-americano (92%) e brasileiro (80%). Essa alta sensibilidade do SCORED na presente pesquisa, aliada ao baixo likelihood ratio negativo (0,13), habilita o questionário em predizer DRC mesmo entre hipertensos e diabéticos que podem estar sendo atendidos em unidades de saúde sem terem exames laboratoriais realizados ou entre pessoas hipertensas e diabéticas da população que estejam sem acompanhamento. Para o nosso conhecimento, este é o primeiro estudo no Brasil demonstrando essa habilidade do SCORED entre indivíduos com risco para desenvolverem DRC. Ademais, até o momento, o enfrentamento da epidemia de DRC tem sido feito por recomendações baseadas em fatores de risco individuais, e não em método que considere o efeito cumulativo de múltiplos fatores, tal como é realizado pelo SCORED. Por tudo isso, em nossa opinião, a contribuição do SCORED em alertar para o risco de DRC e estimular a realização de exames da função renal em grupos de risco pode ser enorme, diminuindo a parcela de pessoas com DRC que não é avaliada laboratorialmente. Para exercer esse papel, recomenda-se sua aplicação entre pessoas nas salas de espera de atendimento pela ESF, nos domicílios visitados por agentes de saúde, no momento da entrega de medicações para hipertensão e diabetes, em campanhas públicas de saúde ou até mesmo de forma interativa em sites da internet.

CONCLUSÃO

A prevalência de DRC foi de 31,7% entre hipertensos e diabéticos cadastrados em um programa de assistência primária à saúde. Entre eles, o questionário SCORED foi capaz de funcionar como preditor independente de DRC com alta sensibilidade e baixo likelihood ratio negativo. Este estudo valida a utilização do SCORED como ferramenta na estratégia de diminuir os casos de diagnóstico tardio da DRC em grupos de risco. O SCORED traz a perspectiva do uso de métodos preditores de DRC baseado no efeito cumulativo de múltiplos fatores, em um contexto em que o enfoque apenas em “doenças de risco” – como hipertensão e diabetes – não tem sido suficiente para diminuir os casos de detecção tardia da DRC.

REFERÊNCIAS

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