versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.13 no.2 São Paulo abr./jun. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082015RW3159
A ressonância magnética (RM) é um exame bem estabelecido para a avaliação de lesões focais hepáticas. Entretanto, até 60% dos nódulos malignos, particularmente os menores do que 1,0cm e em fígados cirróticos, podem não ser detectados e nem caracterizados pela RM.(1,2)
Os contrastes hepato-específicos foram criados para aumentar a sensibilidade e a especificidade da RM na avaliação das lesões focais hepáticas, bem como suplantar algumas das limitações dos contrastes extracelulares. Dentre os contrastes hepato-específicos atualmente disponíveis, o ácido gadoxético (Gd-EOB-dTPA, Primovist®, Bayer Schering, Berlim, Alemanha) é o único aprovado para uso clínico no Brasil.
O Gd-EOB-dTPA é um contraste hepato-específico paramagnético ligado ao gadolínio, com propriedades combinadas de perfusão e seletividade hepatocitária, desenvolvido primariamente para aumentar a detecção e a caracterização das lesões focais hepáticas. Após a administração intravenosa do Gd-EOB-dTPA, ele rapidamente é distribuído pelo compartimento vascular/intersticial, sendo possível a aquisição de estudo dinâmico multifásico (fases arterial, portal e de equilíbrio).
Aproximadamente 50% da dose injetada do Gd-EOB-dTPA é seletivamente captada pelos hepatócitos funcionantes e posteriormente excretada pela bile, permitindo a aquisição de uma fase hepatobiliar tardia, em aproximadamente 10 a 20 minutos após sua injeção.
Nessa fase, as lesões sem hepatócitos (ou com hepatócitos disfuncionais) aparecem com baixo sinal de RM (mais escuras sobre um fígado claro), com maior contraste fígado/lesão, melhorando a capacidade diagnóstica do método.
Devido a essa especificidade hepatocitária, a dose recomendada de gadolínio é até quatro vezes menor do que a recomendada para os contraste extracelulares.(3–5)
A alta captação do contraste se dá pelas propriedades lipofílicas do Gd-EOB-dTPA, favorecendo a difusão passiva do mesmo por transportadores moleculares OATP1 presentes na membrana basolateral dos hepatócitos normais.(6,7) Após a captação pelos hepatócitos, o Gd-EOB-dTPA é eliminado de forma semelhante pelas vias biliar (50%) e urinária (50%). A nível molecular, a excreção biliar é dependente do transportador molecular MPR2 presente na membrana canalicular da célula.(6,7)
Os carcinomas hepatocelulares, ou hepatocarcinomas (HCC), podem ser diagnosticados de modo não invasivo, nos pacientes com risco aumentado, por meio de exames de imagem. Tipicamente apresentam intenso realce arterial, com lavagem nas fases venosa e de equilíbrio, tanto na tomografia computadorizada quanto na RM.(8,9)
A presença de gordura ou de pseudocápsula (realce periférico simulando cápsula verdadeira) nas fases tardias aumenta a confiança no diagnóstico. Na RM, achados complementares incluem discreto alto sinal em T2 e restrição à difusão das moléculas de água.
Foram descritos padrões distintos para os HCC após a injeção do Gd-EOB-dTPA, dependendo da expressão do transportador molecular OATP1. Como a maioria dos HCC não apresenta hepatócitos funcionantes, cerca de 80 a 90% apresentam hipossinal na fase hepatobiliar em relação ao parênquima hepático adjacente(10,11) (Figura 1).
Figura 1 Paciente com hepatopatia crônica, submetido a ressonância magnética com contraste hepato-específico, mostrando um hepatocarcinoma típico no lobo esquerdo. Na fase arterial (A), a lesão mostra-se predominantemente hipervascularizada, enquanto na fase hepatobiliar tardia (B), apresenta predomínio de hipossinal
Cerca de 10 a 20% dos HCC moderadamente ou bem diferenciados, entretanto, cursam com uma expressão aumentada do transportador OATP1, resultando em isossinal ou hipersinal em relação ao parênquima hepático adjacente.(10,11)
Ocasionalmente, em cerca de 10% dos HCC e, na maioria das vezes, em lesões pequenas, o hipossinal na fase hepatobiliar pode ocorrer sem a hipervascularização na fase arterial ou o hipersinal em T2 e na difusão.(12)
O conceito de HCC inicial (early HCC), descrito pelo Liver Cancer Study Group of Japan e mundialmente aceito hoje em dia, ainda gera confusões entre os patologistas japoneses e os patologistas ocidentais.(13–16) Apesar de terem sido descritos vários marcadores moleculares para o diagnóstico do HCC inicial, com alta taxa diagnóstica quando usados em conjunto, a diferenciação acurada entre nódulo displásico e HCC inicial ainda necessita da identificação da invasão estromal. Assim, frequentemente essa diferenciação não é possível por biópsia, a não ser que a área de invasão estromal esteja incluída no espécime.(17–19)
Tal diferenciação em exames de imagem costumava ser altamente desafiadora, mesmo com a utilização de técnicas avançadas, como TC durante arteriografia hepática ou TC-portografia.
A RM com contraste hepato-específico tem se mostrado um verdadeiro divisor de águas nesse campo. Partindo do princípio de que o HCC inicial costuma apresentar baixo sinal na fase hepatobiliar, e de que o nódulo displásico apresenta iso/hipersinal (Figura 2), a acurácia diagnóstica para o HCC inicial atualmente chega a mais de 95%.(20–22)
Figura 2 Paciente hepatopata crônico, submetido á ressonância magnética com contraste hepato-específico, que demonstra lesão com características de nódulo displásico no lobo esquerdo. A lesão apresenta hipersinal na fase pré-contraste (A), e iso/hipersinal na fase hepatobiliar tardia (B)
Além disso, estudos que seguiram o curso natural dos nódulos hipovasculares com hipossinal na fase hepatobiliar demonstraram que, mesmo que o HCC inicial seja descartado na biópsia, existe alta probabilidade desse nódulo passar a apresentar hipervascularização, tornando-se um HCC típico no futuro.(23–25)
Em outras palavras, mesmo que a biópsia exclua o diagnóstico de HCC inicial, os nódulos hipovasculares com hipossinal na fase hepatobiliar podem ser encarados como tal para efeito de programação terapêutica, já que apresentam altíssimo risco para transformação maligna.
Os shunts artério-portais podem simular HCC hipervascularizados em estudos de tomografia computadorizada e RM convencionais. Tais shunts são mais frequentes em fígados cirróticos, aparecendo como lesões hipervascularizadas, que variam de 0,5 a 2,0cm, geralmente sem expressão significativa em nenhuma outra sequência do exame.(26,27)
No entanto, até cerca de 50% dos focos hipervascularizados nos fígados cirróticos correspondem na verdade a HCC, sendo difícil sua caracterização sem o benefício de exames seriados. Atualmente, com o uso do contraste hepato-específico, tal diferenciação torna-se possível, uma vez que os shunts correspondem a áreas de parênquima preservado (com isossinal ao restante do fígado na fase hepatobiliar tardia), enquanto que os HCC, em sua maioria, não apresentam hepatócitos funcionantes (com hipossinal na fase hepatobiliar tardia)(27,28) (Figura 3).
Figura 3 Dois pacientes hepatopatas crônicos submetidos à ressonância magnética com contraste hepato-específico. O primeiro paciente apresenta foco nodular hipervascularizado no segmento VII (A), com isossinal ao restante do parênquima na fase hepatobiliar tardia (B), indicando tratar-se de shunt artérioportal. Já o segundo paciente apresenta foco nodular hipervascularizado no lobo caudado (C), com hipossinal na fase hepatobiliar tardia (D), indicando tratar-se de pequeno hepatocarcinoma
Estudos recentes com animais sugerem que a RM com contraste hepato-específico pode ter um papel na quantificação de fibrose hepática. Tsuda et al. demonstraram um pico de realce alongado e uma lavagem lentificada do Gd-EOB-dTPA em ratos com esteato-hepatite não alcoólica quando comparado a ratos com esteatose simples. Além disso, foi demonstrada correlação entre o grau de fibrose e o alongamento do pico de realce e de lavagem.(29,30)
Outra utilidade do Gd-EOB-dTPA ainda em investigação é a avaliação quantitativa da função hepática.(31–37) Suas principais vantagens são a avaliação não invasiva e a quantificação regional da função hepática, potencialmente útil para prever a função residual em pacientes que serão submetidos a hepatectomia parcial. Além disso, pode ser usada para diagnosticar insuficiência hepática precoce e outras manifestações parenquimatosas das complicações pós-transplante.(38)
O ácido gadoxético, como meio de contraste hepato-específico, tem sido cada vez mais utilizado em pacientes hepatopatas crônicos, principalmente na avaliação de hepatocarcinomas e na diferenciação com outras lesões focais.
Perspectivas futuras incluem seu emprego na quantificação de fibrose e de função hepática.