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Apoio matricial e institucional em Saúde: entrevista com Gastão Wagner de Sousa Campos

Apoio matricial e institucional em Saúde: entrevista com Gastão Wagner de Sousa Campos

Autores:

Liane Beatriz Righi

ARTIGO ORIGINAL

Interface - Comunicação, Saúde, Educação

versão impressa ISSN 1414-3283versão On-line ISSN 1807-5762

Interface (Botucatu) vol.18 supl.1 Botucatu 2014

http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622014.1146

A entrevista foi realizada em Porto Alegre, em uma manhã do mês de outubro de 2014. Gastão Campos estava na cidade para participar da Mostra de Atenção Básica da região metropolitana e sua agenda incluiu uma oficina com apoiadores da Secretaria de Estado da Saúde do Rio Grande do Sul e participação na mesa de encerramento da mostra. A oficina de apoiadores reuniu cerca de cem pessoas e possibilitou relatos das experiências de apoio georrefenciado, com ênfase em processos de regionalização e desenho de redes regionais. Ao final do dia, na mesa de encerramento, juntamente com Dário Pasche (coordenador da SES/RS) e Sandra Fagundes (Secretária Estadual de Saúde), apresentou cenários de desenvolvimento do SUS e marcou a importância da cogestão, do desenvolvimento de redes regionais e fortalecimento da atenção básica.

Gastão Wagner de Sousa Campos é professor titular no Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Médico, sanitarista, mestre e doutor em Saúde Coletiva. Autor de vários livros e artigos nos quais propõe importantes avanços na gestão e atenção no SUS. O apoio Paideia, objeto desta entrevista, metodologia para ampliar a capacidade de análise e cogestão de coletivos, foi proposto pelo professor Gastão Campos ao final da virada do milênio. O tema está presente em estudos, publicações, na gestão e no cotidiano de inúmeros trabalhadores do SUS.

Apoio Paideia e produção de outro paradigma de gestão

A ideia do apoio Paideia, do apoio institucional, aparece ligada ao esforço de construir outro paradigma para a gestão, de gerar outra gestão do trabalho em geral, de gestão das organizações, das instituições, mais especificamente da saúde, que é minha área de trabalho. O trabalho em saúde é muito específico, ele tem uma característica que foi definida há muito tempo, desde Aristóteles, que a chamava de práxis. Ou seja, um trabalho que se aproxima muito do artesanato. A possibilidade de mecanizar, de automatizar, padronizar, protocolizar o trabalho em saúde é baixa porque a ação clínica, a ação terapêutica, a ação de reabilitação, a ação de promoção têm uma relação diferente com a técnica, uma relação diferente com o padrão. Há necessidade do profissional de saúde ter se apropriado da técnica, dessas habilidades, dessas competências, mas em situação, em ato. Quando nós estamos atendendo, quando nós estamos em contato com o usuário, há sempre a necessidade de criação de algo que vá além, algo diferente da técnica, algo diferente do protocolo. E isso se deve a complexidade do processo saúde doença. Há muitos fatores envolvidos – sociais, subjetivos, orgânicos; vários fatores orgânicos, vários sociais... Isto dá uma variação muito grande dos casos, pois mesmo com o diagnóstico de hipertensão arterial grave os casos não vão ser semelhantes; há um elemento em comum que é a técnica, o manejo da hipertensão, da gravidez, da estratégia do pré-natal, mas cada gestante que se atende, cada usuário com hipertensão, exige um diagnóstico situacional, que envolve o usuário, que envolve o paciente: essa é a práxis. As estratégias de gestão em saúde, no mundo inteiro, mesmo nos sistemas nacionais de saúde, na saúde pública, foram muito influenciadas pelo taylorismo, que em nome da ciência, em nome do conhecimento padroniza e transforma o trabalho em linhas de produção, reduzindo o profissional trabalhador em saúde ao repetidor de diretrizes, de protocolos. Ainda que seja o paradigma dominante de gestão, esta tradição nunca conseguiu se impor completamente na saúde. No Brasil, o SUS traz a ideia de gestão participativa, o apoio parte desta tradição, desta influência, a ideia do controle social dos usuários e dos trabalhadores sobre o Estado (gestores e governos). O que eu fiz foi radicalizar, foi ampliar isso e pensar que este conceito de gestão participativa não deveria ficar apenas com a ideia de controle social, de fiscalização ou de discussão e definição de prioridades políticas. Deve ser isso também, mas deve descer para o cotidiano das relações equipe/usuário, trabalhadores/usuários, gestor/equipe, gestor/usuários. Era necessário desenvolver outro paradigma, outra forma de pensar gestão que combinasse certo grau de autonomia necessária ao trabalhador com certo grau de controle também sobre o trabalhador: controle da lei, de valores, do direito à saúde, da gratuidade do SUS, e mesmo de diretrizes de modelo, atenção básica, o vínculo, a horizontalidade, a coordenação de caso, a definição de um arranjo prévio que é a do trabalho multiprofissional. Enfim, nós fomos construindo evidências que são técnicas, que precisam ser implementadas, adaptadas, reconstruídas... Mais que adaptadas, recriadas para cada contexto situacional.

Metodologias do apoio em saúde

O apoio, eu considero, é uma metodologia. Tem um referencial teórico, o referencial da cogestão, da saúde do SUS, dos sistemas públicos, mas ele é um conjunto de metodologias desenvolvidas para viabilizar a cogestão, a gestão participativa capilarizada, digamos assim. A metodologia do apoio é uma metodologia para mudança e não a mudança autoritária que vem somente de fora. Uma parte (como experiências do passado) vai vir de fora sempre, mas também é preciso que se valorize a experiência, o conhecimento dos usuários, dos trabalhadores, o contexto. É esse conjunto de metodologias, é uma forma de fazer a práxis, é uma forma de gerenciar a mudança. O apoio parte da ideia de que ninguém é dono da verdade, ninguém tem toda experiência do mundo, há muita coisa interessante fora da nossa experiência existencial, institucional... Trazer a experiência, trazer a lei, eu chamo isso estratégia de oferta. Quem vai trabalhar com o gestor ou com uma equipe que trabalha com atenção primária, não pode desconhecer as diretrizes, como a Estratégia de Saúde da Família, a experiência cubana e inglesa, as avaliações sobre isso, a literatura... Então, isso vem de fora, como oferta do apoiador. O que é uma oferta? É uma coisa que quem recebe pode mexer, pode usar da forma que for mais adequada, da forma que for possível. Outro conceito importante desta metodologia é valorizar a demanda de quem está recebendo a oferta, seja o usuário, seja o trabalhador. O apoio também é uma metodologia de construir combinações, combinados, contratos. Contrato é a formalização em ata, em reunião, em deliberação deste combinado. É realmente a ideia de radicalizar para o cotidiano esta metodologia da democracia. O que é mais forte no apoio é a metodologia para se lidar com as relações de poder no cotidiano e na gestão, um conceito da política ampliado, a ideia de que no trabalho em saúde e na gestão estamos lidando com poder o tempo todo. A ideia de apoio tem inspiração em Antônio Gramsci e, de certa forma, em Foucault. O conceito de microrredes de poder – que Gramsci chamava de poder molecular – das redes moleculares, da microfísica do poder. Há, no apoio, uma dimensão de metodologia política, que diz respeito às formas como os sujeitos resistem, como fazem alianças, como é possível mudar relações de poder, como a gente democratiza o poder... Então, trazer esta dimensão para a clínica, para o serviço de saúde, não só nas cúpulas, não só no nível central, não só nas conferências. O apoio, além da politica, traz o tema da subjetividade, do afeto, das emoções. O SUS não muda sem as mudanças dos trabalhadores, dos usuários... Não adianta mudar as leis e as estruturas sem mudar as pessoas. Claro, é preciso relativizar esta afirmação, pois é provável que com ou sem apoio, um pouco, sempre ocorra mudança nas pessoas. O apoio busca ampliar a capacidade de reflexão e de intervenção das pessoas. A ideia é trazer o tema de como é que nós somos afetados. Outro aspecto que gostaria de ressaltar no apoio é que nós temos que entender de saúde, entender de risco, de vulnerabilidade, do processo saúde enfermidade e das estratégias para proteção, para promoção e reabilitação. O apoio é uma metodologia que tenta fundir estas três tradições. Propõe trazer para a gestão a discussão do modelo, de boas práticas, de diretrizes, de linhas de cuidado e também trazer – da psicologia e da psicanálise – o tema da subjetividade, das relações de afeto, trazer a cultura da política.

Apoio em saúde e cogestão

Outro elemento da metodologia do apoio é a cogestão, a gestão participativa. O apoio depende do estabelecimento de relações humanas de sociabilidade, de interssociabilidade e de construir espaços em que as pessoas pensem e decidam. Na gestão a gente sempre decide, não só pensa. Neste sentido o apoio é diferente da educação permanente, cuja ênfase é a formação, a análise. O espaço de cogestão é um espaço em que também se aprende – ele tem uma dimensão que é pedagógica, outra subjetiva e ainda outra política. Parte do pressuposto de que a gente precisa agir sobre o mundo e que, para isto, precisa decidir em coletivo, em grupos, em equipes. Então, um dos desafios da cogestão é a constituição de espaços coletivos. Habermas fala em agir comunicativo – eu considerei isso também –, mas o apoio é mais que um agir comunicativo. É um agir comunicativo para deliberação, para a ação, para a gente criar algum combinado comum para conseguir intervir sobre um caso, sobre o modelo, sobre o funcionamento da unidade, sobre a relação com os outros serviços, etc. O SUS traz a ideia de controle social e a inclusão dos usuários e dos trabalhadores de saúde na gestão, o que representa uma importante novidade em relação a outros sistemas nacionais de saúde. Por isso, em certa medida, há um ambiente favorável para desenvolver estes processos de apoio, de participação, de radicalização da democracia. O problema é que apesar do SUS ter esta diretriz, a cultura hegemônica do Brasil e, no mundo, é taylorista, é neotaylorista, é gerencialista. Hoje em dia, a gestão está baseada na avaliação de metas; é trazer o mercado, a lógica da competição, da seleção do mais apto. Nesta lógica, quem não cumprir a meta, quem não cumprir o determinado é punido e não há espaço para educação permanente. Ao contrário, a ideia de apoio diz que é preciso ajudar o mais fraco, que precisa ajudar o que tem dificuldade. Para a política pública isto é fundamental. No Ministério da Saúde, em 2003, começamos a fazer contratos de gestão com os hospitais. Entre os hospitais universitários, os piores avaliados eram os hospitais das regiões social e epidemiologicamente mais vulneráveis. Pela lógica do mercado, o Ministério, a partir da avaliação, diminuiria o orçamento destas instituições. Enfrentando esta lógica, nós temos que apoiar não só com o dinheiro, mas levar propostas, ofertas de reorganização. Problematizar, por exemplo, por que não está conseguindo funcionar em rede. É preciso reconhecer que, no SUS, há uma dificuldade em fazer funcionar a cogestão e o funcionamento em rede, mas, para minha surpresa, mesmo assim, a metodologia de apoio tem encontrado espaços para se desenvolver.

Tomar a Terra de Assalto: o romance sobre cogestão e paradoxos

Eu escrevi o livro “Um método para análise e co-gestão de coletivos”(b), que é minha tese de livre docência entre 1998 e 1999, e a defesa e a publicação do livro ocorreram em 2000, na virada do século. Eu vinha desenvolvendo esses conceitos, essas ideias em artigos, em textos de combate, textos para o SUS, para a atenção básica, era textos não necessariamente científicos. Com a livre docência resolvi fazer uma síntese desse meu trabalho. Sentei pra fazer a tese, mas comecei escrever um romance(c). Perdi tempo, mas ganhei um novo romance; depois tive apenas três meses para terminar a metodologia e compor a teoria e a dissertação. Esse romance tem tudo a ver com a elaboração do conceito de apoio. Os personagens são autores que eu estava usando, como Freud e pessoas que me influenciaram, Ernesto Che Guevara e Elis Regina. No romance estavam todos mortos e viviam nos territórios. Supostamente nesses territórios haveria cogestão, uma democratização da vida após a morte. Eu faço uma brincadeira sobre as contradições entre relação do social e vida individual, entre necessidade social e os desejos. As pessoas mortas que foram justas viviam no paraíso e teriam todos seus desejos atendidos. A relação entre a tese e o romance é evidente. Eu até usei trechos do romance no livro, como a orquestra sinfônica e a função do maestro. Usei o romance para pensar os paradoxos da vida social e da gestão democrática. A ideia de cogestão é paradoxal, contraditória: não há uma síntese perfeita; a gente vive entre o próprio desejo e aqueles dos outros, ou seja, entre o desejo e o social. Ao se lidar com esse paradoxo se produz dois efeitos diferenciados; se a gente segue o próprio desejo sem consideração com os outros, se transforma em um perverso, em um autoritário, dominador; se não segue, a pessoa não tem pique para fazer nada: para curar, para trabalhar, para transformar... É um paradoxo. Se a gente se submeter completamente ao coletivo vira máquina, perde a humanidade. A adesão completa ao coletivo é a desumanização, é a dessubjetivação. Por outro lado, se você não é solidário, se você não negocia, se não há contrato social com o outro, não há sociabilidade possível. Então fiquei brincando com isso. Paradoxo que era para mostrar que o meu método era cheio de problemas. É mais uma forma de lidar com os problemas, não tem soluções definitivas ou absolutas. É uma metodologia para lidar com esta tensão. Você tem que lidar com isso. E lidar com os outros, não lidar sozinho. Por isso a metodologia inclui os coletivos, as redes, a sociabilidade...

Apoio, democracia institucional e responsabilidade sanitária

Há vinte anos começamos a desenvolver estas metodologias de apoio Paideia em Campinas. Trabalhamos com estes conceitos na saúde mental, na atenção básica, no SUS Campinas... Para meu espanto, a estratégia metodológica do apoio influenciou a cultura sanitária brasileira mais do que eu esperava. Foi incorporado por várias instituições, pelo discurso do Ministério da Saúde; primeiro o HumanizaSUS, depois o Departamento de Atenção Básica e secretarias estaduais, como a do Rio de Janeiro e, recentemente, aqui do Rio Grande do Sul. Várias secretarias municipais incorporaram o apoio como discurso oficial. Ao acontecer isso, ao ser institucionalizada, ela tende a ser reduzida, tende a sofrer as mazelas do contexto institucional. Isso acontece toda vez que uma proposta metodológica, uma estratégia clínica ou de promoção de saúde, é incorporada pelo Estado ou outras organizações. Então, observamos uma tensão entre uma expansão muito grande e uma resistência muito grande e muita coisa autoritária, vertical enviesada sendo feita em nome do apoio institucional, em nome da cogestão, em nome da clínica ampliada. Associo estes conceitos, pois a clínica ampliada e compartilhada é uma forma de trazer essa lógica para práticas, para o cuidado. Vamos fazer o cuidado de forma interativa sem renunciar ao saber profissional, mas valorizando a experiência existencial e histórica do usuário e da família. A ideia do apoio institucional é lidar com essa dialética. Por isso que eu falei que é uma estratégia de mudança e de transformação social, institucional e pessoal. Ninguém muda sozinho, ainda que não haja mudança sem certa vontade, uma exposição das pessoas que estão envolvidas com a mudança. Então, a ideia da pressão é isso: trazer coisas de fora, problematizar, avaliar... Só que o resultado da avaliação em vez de punir, fazer um ranking ou uma classificação deveria ser devolvido para as pessoas repensarem suas vidas e suas práticas. Então, a ideia do apoio é essa. Eu acho que as Secretarias Estaduais de Saúde e o Ministério, na relação com os municípios, com as redes municipais, mas também com os serviços de saúde em geral, deveriam usar a estratégia do apoio e não a estratégia da imposição ou mesmo da indução econômica (apenas ou principalmente). Há o desafio de combinar políticas e programas do SUS com a necessidade de serem singularizados em cada região. Para fazer isso precisa a mediação do apoiador. O apoiador tem como referência o projeto do SUS, deve ter esta oferta, esta política, mas deve ter certa autonomia para poder negociar. Se o apoiador do Ministério, das secretarias estaduais ou municipais não está autorizado a adaptar nada (em função da cultura institucional ou da especificidade da cidade) não é apoio. Ele é um tocador, um implementador. O que não é inútil, mas é supervisão tradicional. Não são metodologias inúteis, elas têm eficácia, mas não é a estratégia do apoio. Junto ao Cipriano Maia, Dário Pasche, Alcides Miranda, Regina Benevides e outros colegas, pensamos construir as regiões de saúde, instituir regiões de saúde (imaginei que seriam, no Brasil, duzentas regiões de saúde). Para isto, o Ministério usaria a metodologia de apoio. Imaginamos apoiadores generalistas e outros especialistas ou temáticos. Cada região de saúde teria uma composição entre apoiadores generalistas (construção do SUS) com outros especialistas em atenção básica, especializada, hospitalar, saúde mental, etc. Uma composição de funcionários do Ministério da Saúde e dos estados. Dependendo do tamanho da região, seriam de quatro a oito apoiadores. E os apoiadores temáticos fariam o apoio matricial, como o apoio em saúde mental, o próprio HumanizaSUS, etc. Pensamos em organizar o apoio do Ministério segundo a lógica do apoio matricial e de apoiadores de referência, dois perfis de apoiadores. A gente pensou em apoiar as regiões de saúdes, constituir as regiões de saúde. Enfim, a gente teria dois tipos de apoiadores, era a nossa proposta, dois estilos de trabalho, um apoiador generalista e outro temático. Por exemplo, a Estratégia de Saúde da Família teria apoiadores temáticos que atuariam em duas regiões, três, dependendo da proximidade, etc. Então, o generalista seria uma referência e os outros viriam os temáticos. Em oncologia, apoiadores temáticos ajudariam na construção de centros de alta complexidade em oncologia, rede de câncer e relação com a atenção básica. O apoio é uma estratégia para democratização do SUS, mas também de responsabilização sanitária, de não deixar solto, de definir muito bem o papel do médico de saúde da família, do enfermeiro, do agente de saúde comunitário, de refletir sobre os resultados, não no sentido de avaliação neotaylorista, mas de reflexão sobre o produto do nosso trabalho. Acho que a metodologia do apoio vem para ficar na área da saúde, sou otimista nesse sentindo. Independentemente de uma gestão ou de outra, a tendência, eu acho, é caminharmos para ampliar essas experiências e essa cultura.