versão impressa ISSN 1413-8123
Ciênc. saúde coletiva vol.20 no.1 Rio de Janeiro jan. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014201.21152013
A concepção teórica Paideia criada por Campos1 - 3 nasceu da crítica à racionalidade gerencial hegemônica e da indicação de um método que buscava favorecer a democratização da gestão nas organizações, por meio da formação de coletivos organizados para a produção de bens ou serviços, e do incentivo à participação dos sujeitos na gestão da organização e de seus processos de trabalho. Propõe articulação de saberes e práticas dos campos da saúde coletiva, da clínica, da política, da administração e planejamento, da psicanálise, da análise institucional e da pedagogia para a construção de relações de cogestão no trabalho.
Neste sentido, preconiza a reforma das organizações de saúde para busca da cogestão, ou seja, o estabelecimento deliberado de relações dialógicas, com compartilhamento de conhecimentos e de poder2. Como uma maneira de operacionalizar a cogestão e de construir relações horizontais nos serviços de saúde o autor propõe o Método da Roda, que sugere substituir a dominação institucional e as estratégias de controle por relações de apoio entre os vários agentes e usuários, mediante a construção de relações comunicativas entre os distintos atores envolvidos na produção da saúde.
Campos et al.4 afirmam que a metodologia Paideia (Método da Roda) realiza-se sob a forma de Apoio e este pode ser utilizado na gestão, visando à cogestão de organizações e à democratização das relações nas instituições e sistemas sociais (Apoio Institucional), e também pode ser empregado para empreender a cogestão de relações interprofissionais (Apoio Matricial) e durante a relação clínica (clínica compartilhada entre equipe e usuários) e, finalmente, tem sido empregada em projetos de educação em saúde, comunitários ou de saúde pública.
Desde sua formulação, o Método Paideia tem se aprofundado e se disseminado nas áreas da formação, da pesquisa-intervenção e da clínica ampliada. Entretanto, é no que se refere à sua aplicação metodológica - o Apoio Institucional e Matricial - que tem alcançado maior reconhecimento, na medida em que passou a ser utilizado enquanto diretriz para o SUS, sendo incorporado às políticas públicas de saúde no Brasil5 - 9.
Se por um lado essas medidas favoreceram a divulgação do conceito do Apoio, por outro, não necessariamente têm objetivado à democratização e à constituição de sujeitos críticos e com maior autonomia. Por isto mesmo, corre-se o risco de contribuírem para a banalização dos conceitos "Apoio" e "Apoiador" que, se não estiverem acompanhados de mudanças nas relações de poder, tornam-se vazios e não cumprem o objetivo pretendido pelo autor em sua formulação. Logo, justificam-se estudos sobre esta temática para revisitar a tradição em que foi criada e, principalmente, enriquecê-la mediante investigação sobre suas recentes utilizações.
Assim, este artigo tem como objetivo contribuir para a compreensão do Apoio Paideia, a partir de duas interlocuções: uma relacionando o Apoio Matricial com a produção internacional sobre trabalho interprofissional e sobre o cuidado compartilhado; e outra sobre as analogias e diferenças entre Apoio Matricial e Apoio Institucional, a partir de avaliações empíricas realizadas sobre a prática concreta dessa metodologia e também dos conceitos de campo e núcleo de saber.
Realizou-se revisão bibliográfica da produção nacional sobre Apoio Matricial, buscando sua relação com o referencial Paideia e com o Apoio Institucional. Buscou-se também, a exemplo do trabalho empreendido por Onocko Campos e Furtado9, efetuar um mergulho nas produções bibliográficas internacionais que se relacionavam à temática do Apoio. Com essa proposta, os descritores e os critérios de inclusão e exclusão para análise da bibliografia internacional foram se construindo ao longo do movimento da pesquisa e nem sempre a priori como aconteceria numa busca por atualizações com as ferramentas habituais.
Para percorrer este caminho, optou-se por comentar os documentos oficiais e os estudos brasileiros que marcam as discussões sobre o tema do Apoio no contexto nacional, além de análise posterior de artigos sobre o cuidado compartilhado e trabalho colaborativo que compõem a literatura internacional sobre o trabalho interprofissional. Da mesma forma, foram resgatados alguns conceitos considerados importantes para ampliar a compreensão sobre o Apoio, como é o caso do referencial epistemológico de campo e o núcleo de saberes e de práticas.
Na bibliografia internacional encontramos a discussão sobre trabalho interprofissional em saúde sob a denominação de cuidado compartilhado e cuidado colaborativo. A metodologia e o termo Apoio Matricial não foram encontrados, a não ser em trabalhos que citam o Método Paideia. Não obstante, no Brasil o Apoio Matricial tem larga utilização, chegando a ser incorporado por meio da aprovação da estratégia dos Núcleos de Apoio em Saúde da Família (NASF), criados pela Portaria nº 154, de 24 de Janeiro de 200810. Essa política prevê recursos financeiros destinados especificamente para a contratação de profissionais de apoio para as equipes de Saúde da Família e que utilizariam metodologia de trabalho baseada no arranjo estrutural Apoio Matricial4.
O Apoio Matricial é metodologia de trabalho, um conjunto de conceitos sobre o "como fazer" o trabalho interprofissional, tanto em equipes quanto em redes de atenção à saúde (exercício da função apoio), em cogestão, de maneira compartilhada11. A metodologia do Apoio Matricial começou a ser utilizada no SUS/Campinas nos primeiros anos da década de noventa do século XX. Constituiu-se como estratégia para pensar a relação entre equipes da rede básica e núcleos de saúde mental; depois foi experimentada em hospitais, Centros de Referência para AIDS, reabilitação, entre outros12 - 14.
Ainda que o Apoio Matricial seja um modo para organizar o trabalho interprofissional, pode ser entendido também como arranjo organizacional, ou lugar estrutural (cargo), a partir do qual se trabalha eminentemente com a função apoio. É o que ocorreu com a criação dos Nú cleos de Apoio à Saúde da Família.
Nas duas dimensões, propõem-se três diretrizes: levar a lógica do apoio e da cogestão para as relações interprofissionais; lidar a partir do referencial da interdisciplinaridade com processos sociais, sanitários e pedagógicos e; construir equipes multiprofissionais com corresponsabilização no cuidado em saúde4.
Trata-se de um dispositivo e de uma metodologia para superar a lógica de encaminhamentos que fragmenta o cuidado e compromete a responsabilização clínica durante o cuidado interdisciplinar (sempre que mais de um profissional estiver envolvido com a atenção). A metodologia do Apoio Matricial promove a ativação dos espaços de comunicação e de deliberação conjunta, para o compartilhamento de saberes e para a organização dos fluxos na rede de atenção à saúde, rompendo com a burocratização presente na modalidade de referência e contrarreferência15 , 16.
Neste arranjo matricial, os profissionais das áreas especializadas que não participam integralmente do cotidiano das Equipes de Referências oferecem retaguarda especializada e suporte técnico-pedagógico e estas equipes. Desta forma, pretende-se assegurar, de modo dinâmico e interativo, a troca de conhecimentos que contribua para ampliar as possibilidades de composição de projetos terapêuticos, de realizar clínica ampliada e de favorecer a integração dialógica entre distintas especialidades ou profissões de saúde, o que facilita a exploração da diversidade dos campos e núcleos de competência necessários a cada caso4 , 15 , 16.
Gonçalves17 chama atenção para o fato de que a proposta de estabelecer troca de conhecimento e atendimento compartilhado entre os diferentes profissionais, no intuito de ampliar as possibilidades e qualificar o cuidado, particularmente, entre as equipes de Atenção Básica e especialistas, vem sendo utilizada no cenário internacional, incluindo Reino Unido, Irlanda, Austrália, Canadá e Espanha. Nestes países, assume diferentes nomenclaturas, tais como cuidado compartilhado (shared care) e cuidado colaborativo (collaborative care) e se refere, sobretudo, ao cuidado a doenças crônicas, mais especificamente no tratamento da diabetes e na saúde mental.
No Canadá, em 1994, foi criado um importante programa de cuidado colaborativo que incluía especialistas de saúde mental e de nutrição em Ontário. Este programa foi expandido no "médio-Canadá" a partir de 199618. E, em 1997, foi criado um College, com funções de comitê de regulamentação, com o objetivo de facilitar a colaboração entre psiquiatras e médicos da Atenção Básica em todo o território canadense19.
Vingilis et al. 18 salientam que os profissionais envolvidos no cuidado colaborativo referem a percepção de desenvolvimento recíproco de habilidades, com aprendizagem compartilhada e que esta proposta de trabalho tem se mostrado bem sucedida na melhoria do acesso, da comunicação e da colaboração entre os médicos, e das condições de trabalho, por proporcionar aos médicos de família ferramentas para lidar com problemas de maior complexidade.
Em Portugal, ainda não há um programa sistematizado de cuidado compartilhado, mas a prática dos profissionais da psicologia e da nutrição na Atenção Primária já começa a ser pautada pela relação dialógica e colaborativa com as equipes multidisciplinares, em especial nas Unidades de Cuidados na Comunidade, nas quais contribuem no planejamento e realização de ações no território. Nas Unidades de Saúde da Família, apesar de prevalecerem os atendimentos individuais por especialidade, os profissionais têm se organizado para realizar discussão de casos de forma interdisciplinar. De toda sorte, é possível vislumbrar, ainda que em estágio embrionário, iniciativas de cuidado compartilhado, embora não tenha sido destacado no estudo de Gonçalves17 , 20 , 21.
Na Espanha, García-Talavera Espín et al.22indicam o exemplo de Múrcia, onde foi criada, em 2007, uma unidade interdisciplinar de diabetes, coordenada pela endocrinologia e composta por enfermeiras educadoras em diabetes, nutricionistas, cirurgião, enfermeiras especializadas em pé diabético, oftalmologista, médico socorrista e de reabilitação, além de 10 médicos generalistas e 10 enfermeiras de Atenção Básica, que, por sua vez, coordenavam o restante das equipes de saúde dos Centros de Saúde de sua região e os serviços especializados do Hospital Reina Sofia de Murcia que cuidam de pacientes diabéticos. Segundo os autores, este trabalho interativo entre as Unidades de Diabetes e os serviços de Atenção Básica tem contribuído para reduzir o número de emergências e de internações, além de melhorar a comunicação interdisciplinar.
No Reino Unido, Barbara Starfield23 explica que a crescente complexidade dos desafios na prática médica tem exigido a construção de novos modelos de organização do trabalho, haja vista que a Atenção Básica, isoladamente, não basta para atender os desafios impostos pelas doenças crônicas e pelas comorbidades. Defende as diferentes interfaces possíveis a partir da relação entre a Atenção Básica e as Especialidades, pois os pacientes têm expressado maior satisfação com o atendimento e o cuidado compartilhado, o qual tem produzido redução do número de exames e procedimentos. Ademais, a autora atribui a maior resolutividade da Atenção Básica no Reino Unido à possibilidade de comunicação entre médicos generalistas e outros especialistas.
Na Irlanda, embora se esteja discutindo o assunto no que tange ao cuidado das doenças crônicas, os autores apontam que, frente aos resultados diversos encontrados na revisão de literatura, não se pode afirmar com garantia que o cuidado compartilhado ofereça benefícios significativos, exceto para a melhoria das prescrições de medicamentos. E, portanto, acreditam que não há evidências suficientes para apoiar a expansão do cuidado compartilhado, enquanto não se realizem estudos complementares, com rigor metodológico24.
Já na Austrália, o interesse pelas propostas de cuidado compartilhado no país data de 2008. Kelly et al.25 apontam que, nesse ano, o Comitê de eventos sentinela em saúde mental do governo do New South Wales declarou que não há padrões suficientes para orientar as práticas de cuidado compartilhado em saúde mental e que o Departamento de Saúde, em 2010, encomendou um revisão das evidências sobre os modelos de cuidado compartilhado em saúde mental.
Nesses contextos, o cuidado compartilhado/cuidado colaborativo é definido pela participação conjunta de profissionais de Atenção Básica e especialistas no planejamento dos projetos terapêuticos, mediados por arranjos organizacionais e, via de regra, também procura abranger alguns dos seguintes componentes: i) introdução do papel de coordenação dos casos pela Atenção Básica, com intervenções sistemáticas e estruturadas dos médicos da atenção primária; ii) introdução de mecanismos para vinculação entre os profissionais; iii) desenvolvimento de estratégias para coletar e compartilhar informação sobre o progresso dos pacientes24 , 26.
Bower et al.26 comentam que as intervenções de cuidado compartilhado variam muito, em conteúdo e intensidade, ao passo que há ainda poucos estudos sobre o tema. Por isso, não estaria claro quais aspectos são imprescindíveis para a efetividade da proposta.
A variedade de arranjos e de formatos que o cuidado compartilhado assume, mais do que um problema, pode ser entendida como uma característica de plasticidade, que é necessária para que possa se adaptar em diferentes cenários, segundo as singularidades de cada um deles. Por outro, os estudos convergem em destacar que muitas variáveis concorrem para que o cuidado compartilhado seja efetivado e que a análise desses componentes poderia auxiliar o fortalecimento da proposta.
Starfield23, por exemplo, chama atenção para a necessidade de se esclarecer o novo papel dos especialistas neste novo arranjo. Segundo a autora, a inserção desses profissionais ocorre de diferentes formas: consultas breves; intervenções pontuais para as quais as equipes de Atenção Básica não têm os equipamentos ou os conhecimentos necessários; atuação no cuidado continuado por meio de conselhos às equipes de Atenção Básica sobre questões emergentes nos casos; ou podem se envolver quando a equipe de Atenção Básica lhes transfere totalmente o cuidado de certos pacientes.
Entretanto, defende que o papel mais adequado dos especialistas, dentro desta proposta de relação interdisciplinar, seria o de consultores, mas sem excluir a possibilidade de visitas periódicas aos serviços de Atenção Básica para verem grupos de pacientes. Aliás, ela vê nestas visitas um espaço importante para a troca de conhecimentos e de aprendizado mútuo23.
Na meta-análise realizada por Foy et al.27sobre o cuidado compartilhado, a comunicação interprofissional também emergiu como principal fator associado à efetividade deste modelo, independentemente do coeficiente de integração do sistema de saúde. Para eles, também seria importante a construção de coordenações organizacionais para as equipes que trabalham nesta lógica. Sua função seria a de lidar com os constrangimentos relacionados à falta de tempo na agenda e à dificuldade de realizar encontros para poder garantir as possibilidades de comunicação interativa entre os profissionais.
Da mesma forma, a avaliação realizada por Vingilis et al.18 sobre os processos de um programa de cuidado colaborativo no Canadá, aponta a comunicação, mediada por uma "política de portas abertas", como ponto importante, além do contato diário com outros profissionais e a construção conjunta de projetos terapêuticos.
Já Kelly et al.25, apresentam uma lista de elementos que podem contribuir para a efetivação do cuidado compartilhado e os chama de "ingredientes principais". São eles: i) aproximação sistemática para o envolvimento dos serviços generalistas com os de especialidade, por meio da construção do objetivo comum para melhorar o cuidado; ii) elaboração de um modelo coerente com as necessidades da população alvo; iii) um acordo para a definição de um modelo clínico e de monitoramento dos pacientes que contemple a possibilidade de encontros para a revisão dos casos, quando necessário; iv) atenção para as questões referentes à seleção e contratação de pessoal, associada à garantia de espaços de supervisão clínica para apoiar o desenvolvimento de habilidades e manutenção do modelo assistencial; v) fortalecimento das instâncias de gestão da clínica.
Kates e Craven19 lembram que os gestores têm começado a aceitar os princípios do cuidado compartilhado, mas que, se pretendemos avançar, é preciso fazer mais. Primeiramente, seria preciso investir maciçamente na formação dos profissionais da saúde que trabalharão segundo a lógica deste cuidado, o que inclui mudanças nos currículos de graduação e de residência. Em segundo lugar, seria preciso assegurar para que os novos projetos de cuidado compartilhado se baseassem, o máximo possível, em evidências. E, por fim, recomendam a construção de um quadro único de indicadores para avaliação dos projetos, o estabelecimento de um jargão compartilhado e a construção de uma agenda de pesquisas sobre o assunto.
A despeito da validade das recomendações empreendidas por estes estudos sobre o cuidado compartilhado para a qualificação do trabalho interprofissional, é importante situar que a proposta brasileira de Apoio Matricial conseguiu agregar as recomendações destes programas dos outros países apresentados, acrescentando ainda novas perspectivas e estratégias ausentes na descrição dos estudos internacionais. A metodologia de Apoio Matricial recomenda: a) personalização das relações interprofissionais, recuperando a antiga tradição da troca de plantões quando uma equipe transmite à outra algumas informações sobre os casos, a viva voz. Buscam-se formas de contato pessoal e não somente o fluxo burocrático de casos por meio de pedidos de interconsulta ou de fichas de referência e contrarreferência; b) o processo de Apoio começa com o estabelecimento de contrato sob o modo como se organizará essa relação interprofissional, considerando-se as diretrizes do Apoio, mas sempre com liberdade para adequá-las ao contexto. Elemento importante desse contrato é o estabelecimento de critérios de risco que ordenem o compartilhamento; c) definição clara de responsabilidade pelo caso: o caso poderá ser compartilhado mediante cuidado conjunto, ou simultâneo, a coordenação do projeto terapêutico poderá variar conforme o caso e a fase do próprio caso; d) utilização de formas de cogestão e do método da roda (Apoio) durante prática interprofissional, a saber: o apoio estabelece-se entre profissionais com núcleos de saberes diferentes, objetivando ampliação do manejo e as diferenças deverão ser explicitadas como ofertas, isto é, como visões distintas, mas que estarão sempre sujeitas a crítica e reconstrução pelo debate do coletivo; e) o Apoio Matricial é também uma forma de educação permanente e de reconstrução de si mesmo, uma vez que cria espaços coletivos de reflexão sobre práticas e certezas cristalizadas.
O Apoio é uma Práxis28. Práxis e não somente uma tecnologia ou uma ferramenta. É um método dialético, uma constelação de conceitos que podem ser combinados de várias maneiras conforme o objetivo e a especificidade do caso.
O Apoio Matricial foi construído mediante a influência combinada de um referencial epistemológico e político e de uma heurística centrada no estudo de casos. Baseou-se em apostas teóricas e políticas oriundas da tradição dos Sistemas Públicos e Universais de Saúde e do SUS em particular. Especificamente, baseou-se na concepção ampliada sobre a produção de saúde e na aposta da constituição de instituições e de práticas em saúde de caráter democrático. Constituiu-se, também, como uma aplicação metodológica do Método Paideia, formulado por Campos1 , 2, o que lhe confere marcas bastante singulares frente aos projetos de cuidado compartilhado.
Uma característica distintiva do Apoio Matricial é seu compromisso com a construção de instituições e de relações de trabalho democráticas, o que significa que tem também como objetivo colaborar para a distribuição do poder entre os diferentes atores envolvidos. Em outras palavras, traz para a cena um elemento que tende a ser marginalizado nas discussões clínicas: a política2 , 4.
Assumir explicitamente a empreita de lidar com a política na gestão e nas práticas de saúde está relacionado com o entendimento de que, de fato, política, gestão, clínica e promoção à saúde são elementos indissociáveis no concreto. A consideração interdependente destas dimensões ressalta novo papel para trabalhadores e também usuários dos serviços.
Neste sentido, o Apoio Matricial também se diferencia por pressupor a cogestão e a construção compartilhada do cuidado, o que implicada em organizações que facilitem relações comunicativas e dialógicas entre os profissionais de saúde e, sobretudo, entre estes e os usuários, para que participem ativamente da elaboração dos seus projetos terapêuticos.
A metodologia de Apoio Matricial utiliza a concepção de teoria e método da Escola de Frankfurt que escapa à rigidez da ciência moderna, uma vez que pensa teoria e método de maneira dialética29. Não há um método ideal para toda e qualquer situação. O método deve ser construído tendo em vista sua relação com a área temática de aplicação, isto é, com o objeto, com a pergunta ou com a hipótese de trabalho. No caso, o mapa de núcleos conceituais que compõem o Apoio Matricial, apresentados acima, foi pensado tendo em vista o tema do trabalho interprofissional em equipe e em redes de saúde. Ao contrário do entendimento tradicional no marxismo, a dialética aqui é entendida como um processo em que as interações e sínteses entre os elementos produzem tanto efeitos sinérgicos quanto contraditórios, nos quais são criados novos contratos sociais e novas contradições4.
E é justamente a partir desta postura de reconhecimento do conflito e da contradição imbricados com os movimentos de composição e de negociação que a metodologia Paideia busca integrar a sociedade e os indivíduos - atores que intervêm e sofrem as consequências de viver em sociedade e de se relacionar uns com os outros2.
Assim, demanda trabalhar a partir do reconhecimento do conflito e da mútua transformação inerentes ao processo dialético que orienta as relações pessoais e institucionais, perceber a política enquanto um elemento presente na clínica e nas relações interprofissionais e, principalmente, marcar o lugar do usuário como um sujeito que participa ativamente da coconstrução do cuidado e dos serviços de saúde.
O Apoio Matricial pode ser melhor aproveitado se também estiver baseado numa lógica de territorialização, em que cada grupo de especialistas referencia uma determinada área, possibilitando construção de vínculos entre profissionais, apesar de participações episódicas. Esta lógica corresponde à proposta contida no Relatório Dawson (1920)30 e tem sido utilizada no Reino Unido23.
Esta discussão faz sentido tendo em vista os resultados de várias avaliações da prática do Apoio Matricial e do Apoio institucional, principalmente em sua dimensão de arranjo estrutural, ou seja, quando estão em cena dois personagens mais do que atuais: o Apoiador Institucional e o Apoiador Matricial.
Esta temática ganhou destaque a partir de 2003, quando o Ministério da Saúde iniciou um processo de formulação e implantação do Apoio Institucional aos estados e municípios. No primeiro momento, centrou-se em duas perspectivas: no apoio à gestão descentralizada do SUS - coordenado pelo Departamento de Apoio à Descentralização (DAD) da Secretaria Executiva - e no apoio à mudança dos modelos de gestão e atenção dos sistemas e serviços de saúde - coordenado pela Política Nacional de Humanização (Humaniza/SUS). Outro importante movimento aconteceu a partir de 2011, quando o Ministério da Saúde implementou o Apoio Institucional, buscando a articulação das diversas secretarias e departamentos, chamado Apoio Institucional Integrado, coordenado pelo Núcleo Gestor do Apoio Integrado (composto por todas as Secretarias do Ministério e coordenado pela Secretaria Executiva). Em seguida, algumas Secretarias de Estado da Saúde também criaram núcleos de apoiadores institucionais para realizar a relação com as secretarias e os serviços municipais, destacando-se a Superintendência de Atenção Básica do Rio de Janeiro, a Diretoria de Atenção Básica da Bahia e a Fundação Estatal de Saúde da Família da Bahia5 , 6 , 8.
Além disso, esta discussão foi suscitada em diversos momentos durante o curso de especialização "Apoio em Saúde" que foi oferecido pelo Departamento de Atenção Básica (DAB) em parceria com a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e que teve como público-alvo os profissionais que trabalham com o Apoio Institucional. O curso, realizado entre agosto de 2012 e setembro de 2013, reuniu profissionais dos três entes federativos: município, estado e ministério da saúde, oriundos dos diversos estados brasileiros. Durante o percurso, ficou evidente a confusão entre o que era Apoio Matricial e Apoio Institucional e uma discussão que os diferenciasse, ainda que apenas para efeitos pedagógicos, foi solicitada como forma de organizar as práticas destes profissionais e para restituir o sentido de ser "Apoiador".
Compartilhar a discussão feita naquele espaço e em alguns outros parece interessante para contribuir para a construção da identidade dos profissionais do Apoio Matricial e do Apoio Institucional, sem negar as sobreposições e complementaridade que ambos apresentam e, principalmente, sem prejudicar a aposta na ampliação da clínica. E, para isso, o resgate dos conceitos de campo e núcleo mostra-se útil enquanto estratégia de análise do trabalho em Apoio Matricial e do Apoio Institucional.
Entre 1994 e 1997, durante um projeto sobre a formação e a especialização médica no Brasil, financiado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e pela Associação Médica Brasileira (AMB), foram desenvolvidos os conceitos de campo e núcleo. Eles nascem do reconhecimento do aumento da produção teórica acerca da interdisciplinaridade e da existência de um paradoxo no campo do conhecimento: de um lado o isolamento paranoico das profissões, de outro, a fusão esquizofrênica entre os saberes que muitas vezes culminam na desresponsabilização pelo cuidado em saúde2.
Nesse sentido, Campos31 , 32 explica que os conceitos núcleo e campo conformam uma crítica não apenas ao corporativismo e fechamento disciplinar, mas também à tendência pós-moderna de diluir a tal ponto os saberes, que inviabiliza a construção de identidade profissional para os sujeitos e, portanto, dificulta a constituição de currículos e do papel de cada profissão no cotidiano. Ou seja, configuram uma iniciativa para se tentar lidar com o dilema entre a burocratização corporativa e a diluição interdisciplinar das profissões e especialidades.
O núcleo representaria a face mais estruturada do conhecimento e dos papéis que circunscreveria as disciplinas e ajudaria a construir a identidade e a especificidade das profissões. É constituído pelo conjunto de conhecimentos e atribuições (tarefas) específicos e característicos de cada profissão e, portanto, colabora para a materialização do compromisso desta com a produção de valores de uso. Propõe-se denominar de núcleo as diferenças entre de papéis e de conhecimento das diversas profissões2 , 16 , 31.
Por sua vez, o campo indica um conjunto eventual de conhecimentos e tarefas do qual uma profissão ou especialidade deverá se apropriar para lograr eficácia e eficiência em determinados contextos. Tais características conferem-lhe uma conceituação situacional e uma configuração mutante. O campo representa a possibilidade da identidade cristalizada construída pelo núcleo de poder se abrir ao mundo da interdisciplinaridade e da interprofissionalidade2 , 16.
Entretanto, vale frisar que apesar da diferenciação didática que se estabelece, não é de polaridade ou de antagonismo a relação entre esses dois conceitos. O núcleo indica uma aglutinação e uma determinada concentração de saberes e de práticas, mas de forma alguma indica um rompimento radical com a dinâmica do campo. Muito pelo contrário, na concepção do autor2, tanto o núcleo quanto o campo seriam mutantes e interinfluenciáveis, não havendo limites rígidos entre um e outro.
E, ainda que estes conceitos tenham sido criados para explicar a formação na área médica, sua aplicação se estende para muito além, tendo sido utilizados para explicar as práticas de saúde coletiva e também para caracterizar as ações de Apoio Matricial16 , 33.
Da mesma forma os conceitos de campo e núcleo contribuem para a compreensão das ações de saúde coletiva e também para o trabalho do Apoio Matricial, pois se apresentam como um referencial crítico para explicar a relação entre o Apoio Matricial e o Apoio Institucional quando assumem o caráter de cargo de trabalho ou arranjo organizacional.
O Apoio Institucional caracteriza-se por uma metodologia que busca reformular os tradicionais mecanismos de gestão mediante a realização de cogestão. Pressupõe postura interativa, tanto analítica quanto operacional, que complementaria e transformaria a forma de se desempenhar as funções gerenciais como a de coordenação, planejamento e direção - Apoio para viabilizar o governo e a gestão no modelo de cogestão4.
Já o Apoio Matricial, como apresentado anteriormente, realiza-se no cotidiano das práticas profissionais e de maneira compartilhada com os usuários. Refere-se ao apoio no contexto da clínica ampliada e da promoção, e parte de um lugar de suposto saber e, ao mesmo tempo, de poder profissional. Pretende modificar as relações de trabalho, tendo como eixos norteadores a cogestão e o apoio nas relações interprofissionais; a interdisciplinaridade com o compartilhamento de saberes e o trabalho em equipe com responsabilização pela população4.
Neste sentido, utilizando os conceitos de campo e núcleo da maneira habitual, identifica-se que o Apoio Matricial compõe-se de profissionais de diferentes núcleos de saber, dialogando e trocando conhecimentos entre si para construir o campo adequado a um dado projeto terapêutico singular, na medida em que cada profissão busca o apoio em outras áreas para cumprir suas tarefas. Entretanto, também se pode entrever outra possibilidade de abordagem do objeto relacional do Apoio Matricial, que possibilitaria diferenciá-lo sem, contudo, distanciá-lo do Apoio Institucional.
Poder-se-ia dizer que o núcleo do Apoio Matricial refere-se à clínica e o do Apoio Institucional, à gestão. Isso não retira a clínica e a saúde coletiva da responsabilidade do Apoio Institucional, e tampouco elimina a política e a gestão do Apoio Matricial. Um psicólogo que trabalha com o Apoio Matricial tem como núcleo a psicologia e as relações subjetivas, contribuindo para ampliar a abordagem, particularmente, na dimensão psicossocial, de equipes com outra formação. Para que esse psicólogo consiga esse objetivo, não há como desconhecer a discussão sobre modelo de atenção, gestão e política em saúde; ainda quando estes temas façam parte de seu campo de tarefas e não de seu núcleo, já que não trabalha com as várias funções de gestão. Se este psicólogo estivesse em um cargo de Apoio Institucional, também continuaria com o núcleo da psicologia, uma vez que esta é a área de seu curso de graduação, mas assumiria também o núcleo da gestão e da política.
Deste modo, é indispensável que o Apoio Matricial contribua de maneira incisiva na clínica e o Apoio Institucional, na gestão. Obviamente, o escopo destes profissionais não deve se limitar ao núcleo do Apoio a que está associado, mas não pode se eximir deste que seria seu papel por excelência.
No que se refere ao campo das funções de Apoio, esteja o profissional em cargo de gestão ou em equipes de cuidado, pode-se dizer que é composto por questões centrais da saúde coletiva, como o trabalho em equipe, o modelo de gestão, o modelo de atenção à saúde, as relações de grupo, o planejamento, a ordenação da rede assistencial, entre outros2.
A confusão muitas vezes acontece quando o Apoiador Institucional discute e intervém em temas referentes à clínica e, em contrapartida, o Apoiador Matricial também contribui para operar mudanças de gestão no sentido de torná-la mais democrática. Tudo isto deve ser entendido como legítimo e necessário, pois se tratam de práxis dentro do campo do saber, o que não compromete ou desmancha os respectivos núcleos que asseguram especificidade ao Apoio Matricial e Institucional. Eles permanecem íntegros em seu papel organizativo da identidade profissional.
A utilização dos conceitos de campo e núcleo no contexto do Apoio Institucional e do Apoio Matricial contribui, portanto, não apenas para a diferenciação entre estas duas categorias, mas, principalmente, instrumentaliza a construção da identidade e do papel dos trabalhadores que desempenham estas funções e permitem ampliar o conhecimento sobre o Apoio.
Os conceitos de campo e de núcleo partem do paradoxo do conhecimento, da dificuldade de se operar, na prática, entre transdisciplina e disciplina, entre saber singular sobre um caso e saber integral, entre encarregar-se da gestão (tarefas de alguns) e participar da gestão (direito de todos). No caso, concluímos que as funções de Apoio Institucional e Matricial são diferentes e complementares, e podem contribuir para a construção de novas relações de trabalho e para a consolidação do SUS.
A breve discussão apresentada não esgota a temática da cogestão, do Apoio, da democratização institucional e da práxis em saúde, mas contempla o objetivo de lançar luz sobre os desdobramentos da utilização do conceito e das práticas incorporadas às políticas públicas de saúde no Brasil. Da mesma forma, pretende estimular novas investigações e debates que contribuam para a não banalização do "ser Apoiador" e para o resgate da radicalidade democrática ao filiar-se ao Método Paideia (da Roda).
Igualmente, a discussão aqui empreendida não tem o objetivo de polarizar Apoio Matricial e Apoio Institucional e tampouco tolher suas possibilidades de se transformarem para se adequarem à realidade local. Contudo, pretende informar que existem, sim, algumas singularidades e que elas podem ser utilizadas para situar o "Apoiador" em seu trabalho, para que ele não se sinta perdido ou deslocado de uma construção conceitual e histórica.