versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192
BrJP vol.2 no.1 São Paulo jan./mar. 2019
http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20190017
As intervenções educacionais em torno do tema dor referem-se à empregabilidade do conhecimento da anatomia, da fisiologia e da farmacologia da dor e ao entendimento de como a correta abordagem e o tratamento do sintoma reduzem as consequências físicas e emocionais decorrentes do processo doloroso1,2.
Estudos com revisão sistemática sobre educação em neurociência da dor (END) para dores musculoesqueléticas fornecem evidências de que a END melhora a classificação adequada da dor, a incapacidade, a mobilidade, a utilização de serviços de saúde e as atitudes e comportamentos relacionados à dor como a catastrofização, o medo e a evitação3.
Por outro lado, uma questão que tem chamado a atenção de investigadores é que a nocicepção não é suficiente para evocar a dor, mas também os fatores psicossociais, que são importantes no desenvolvimento de doenças crônicas4. Nesse sentido, o ensino sobre a dor passou a ser, necessário na formação de profissionais de saúde e para o manuseio criterioso do sintoma5.
Nesse contexto, um dos cursos da área da saúde que passa por esse processo de mudança, a fim de formar profissionais aptos para trabalhar com o Sistema Único de Saúde (SUS), é o curso de Fisioterapia.
Partindo dessa premissa e considerando que o SUS é um grande empregador dos trabalhadores em saúde, a educação de discentes deve ser estimulada para um agir humanista, crítico, reflexivo e generalista. Desse modo, com a união constante da teoria e da prática dentro da universidade, pode-se formar profissionais conscientes e engajados para modificar o ambiente em que vivem e portadores de uma atitude que modifique as mazelas em saúde6.
O construto multidimensional de qualidade de vida (QV) denominado World Health Organization Quality of Life (WHOQOL-Bref) foi proposto como um indicador de saúde da população. A aplicação desse instrumento é utilizada para estimular ações de promoção da saúde. Especula-se que o uso do questionário, associado à ferramenta de END, possa agregar conhecimento na interpretação das dimensões da saúde física, da psicológica, do nível de independência, das relações sociais, do meio ambiente e do padrão espiritual. Também, podem ser utilizados nas vivências acadêmicas após a elaboração de situações problemas e promover mudanças no processo de ensino e aprendizagem sobre a dor7,8.
Nessa perspectiva, o estudo promoveu um relato de experiência sobre o processo de entendimento e educação no estudo da dor, por meio de um instrumento e a técnica de dramatização na vivência acadêmica de estudantes de Fisioterapia.
Para atender ao objetivo proposto, realizou-se na Universidade de Brasília - Campus Ceilândia, um estudo de cunho acadêmico por meio de experiência vivenciada.
Para isso, os acadêmicos do 6º semestre do curso de Fisioterapia foram inicialmente separados em dois grupos: aluno fisioterapeuta (AF) e aluno-paciente (AP) e, posterior a essa divisão, foram instruídos a simularem um atendimento a três casos clínicos, de tal maneira que fundamentassem as explicações/ensinamentos sobre a dor e os processos neurofisiológicos no corpo humano.
Caso 1. Paciente com 70 anos de idade, apresentava dor aos movimentos das articulações dos ombros e joelhos dificultando as atividades de vida diária como limpar a casa, cuidar do cachorro e estender roupas no varal. Relatava que não entendia o motivo da presença da dor e porque não melhorava com os fármacos que fazia uso diário. Esse paciente ouviu falar de um grupo de atividade física que acontecia 2 vezes por semana e manifestou muito interesse em entender e acreditava que a atividade física poderia melhorar a diminuição da força dos membros inferiores.
Caso 2. Paciente com 45 anos de idade, dona de casa, relatou dor na coluna lombar há 15 anos. Há 2 anos, após realizar radiografia da coluna, o médico disse que a coluna estava doente e que precisava fazer atividade física. Acreditava e relatava que poderia ter alguma hérnia de disco. A paciente não trouxe a radiografia, pois não sabia onde se encontrava. Também relatou que não gosta de fazer atividade física e não entende por que os exercícios melhoram. Queixou que não consegue pagar uma academia e que o sonho dela era ser bailarina. Apresentou dificuldades ao abaixar e carregar as compras do supermercado. Hoje pesa 105kg com estatura de 1,55cm.
Caso 3. Paciente com 65 anos de idade, aposentada e cuidadora da sua mãe com 95 anos. Realiza com sua mãe todas as atividades de vida diária e principalmente os cuidados especiais: dar banho, preparar o alimento e as caminhadas rotineiras. Queixa de cansaço muscular generalizado e dores articulares. Não consegue dormir bem, apenas 4 horas por noite. Não consegue ter um tempo para se distrair com as amigas. Mas ouviu falar do grupo de atendimento e foi em busca de entendimento da dor e o que pode ser realizado em casa para ter mais disposição.
Foi utilizado o questionário WHOQOL-Bref para avaliar a QV dos casos clínicos por meio de 26 perguntas. As perguntas número 1 e 2 sobre a QV geral e percepção de saúde, respectivamente, com pontuação de 1 a 5. As demais 24 perguntas compõem os domínios: Físico, Psicológico, Relações Sociais e Meio ambiente, com pontuações que variam também de 1 a 5 pontos, sendo necessário recodificar o valor das questões 3, 4 e 26. A média dos valores obtidos deve ser realizada a partir da somatória dos pontos, dividido pelo número de perguntas presentes em um mesmo domínio7 (Anexo 1).
Para a realização do relato de experiência, os acadêmicos produziram um vídeo com aproximadamente 10 minutos de duração e, simularam um atendimento fisioterapêutico a um paciente fictício com os seguintes objetivos:
Instruir o paciente para que compreenda sua própria dor (possíveis causas e quais os mecanismos neurais e cerebrais ativados);
Melhorar a QV por meio do entendimento da dor.
Sendo assim, o grupo AP recebeu um caso clínico da docente da disciplina e as orientações consistiam de se apropriarem do caso clínico, desenvolvendo a história da doença atual e pregressa, os sintomas, as expressões faciais, os déficits de movimentos, as quedas da própria altura, os sentimentos, as emoções, as crenças e a catastrofização.
Da mesma forma, o grupo AF foi orientado pela docente a realizar a avaliação, aplicação do questionário e posteriormente realizar o seu cálculo e discussão das intervenções para cada caso. Paralelamente, o grupo AF foi orientado a planejar e executar a END, com explicação neurofisiológica do caso clínico e orientações para o processo de educação continuada para as atividades em casa.
Durante a vivência acadêmica, o grupo AF deveria fazer uso dos dados obtidos no questionário WHOQOL-Bref e interpretar os valores de cada domínio descritos abaixo:
WHOQOL-Bref - caso 1: o domínio físico apresentou a menor média (1,83) quando comparado com os domínios psicológico, relações sociais e meio ambiente.
WHOQOL-Bref - caso 2: o domínio físico apresentou a menor média (1,71) quando comparado com os casos 1 e 3 e no domínio meio ambiente a média foi 2,0.
WHOQOL-Bref - caso 3: o domínio relações sociais demonstrou média muito baixa (1,0) quando comparado aos domínios físico, psicológico e meio ambiente.
Após a interpretação dos domínios, as orientações foram direcionadas para melhor atender as necessidades do grupo AP. Além disso, por se tratar de uma experiência no ambiente de Básica Complexidade, o grupo AF deveria incentivar a participação do indivíduo e apresentar os recursos oferecidos e que melhor se encaixavam nas necessidades individuais apresentadas pelo grupo AP.
As simulações com casos clínicos basearam-se no manuseio da END com o intuito de verificar as percepções alteradas sobre o conhecimento da neurofisiologia da dor e como as crenças desencadeariam o aumento de dores crônicas3,9,10.
A QV é um construto multidimensional proposto como um indicador de saúde da população e sua interpretação é utilizada para estimular ações de promoção da saúde11 apresentadas pelo grupo AP.
Nessa perspectiva, o instrumento WHOQOL-Bref direcionou a abordagem educacional, enfatizando os domínios físico e relações pessoais e suas questões para serem trabalhadas pelo grupo AF. O instrumento valoriza a percepção individual, podendo avaliar a QV em diversos grupos e situações, independentemente do nível de escolaridade7.
Ao considerar as médias no domínio físico dos casos (1, 2 e 3), obteve-se uma variação de 1,71 a 2,85, sendo que o caso 2 apresentou o menor resultado com 1,71. Esse domínio aborda as questões dor e desconforto, energia e fadiga, sono e repouso, mobilidade, atividades da vida cotidiana, dependência de fármacos ou de tratamentos, capacidade de trabalho.
A avaliação do domínio físico revelou a necessidade de acompanhar os índices de qualidade de vida nos pacientes com doenças crônicas e planejar estratégias de intervenção, já que fornecem informações importantes sobre o usuário, permitindo identificar suas prioridades e subsidiar os programas de saúde para que implementem ações efetivas e, assim, proporcionar melhor qualidade de vida aos usuários na atenção primária à saúde.
Isso se aplica na interpretação das questões apresentadas pelo caso 1, o qual demonstrou média inferior de qualidade de vida no aspecto físico quando comparado com os domínios psicológico, relações pessoais e meio ambiente. Para vários estudiosos, esse aspecto é central na qualidade de vida do idoso que sofre influências com o aumento da idade11,12.
Na literatura não foram encontrados pontos de cortes que determinassem um escore abaixo ou acima. Nesse estudo foram analisadas a cópia dos escores individuais de cada respondente em cada domínio nos 3 casos e a relação com a escala de Likert de 5 itens (1= muito ruim; 2= ruim; 3= nem ruim e nem boa; 4= boa; 5= muito boa) para as 24 questões do instrumento13.
Referente à avaliação do caso 2, além de apresentar a menor média no domínio físico também revelou níveis inferiores nas médias dos domínios psicológico e meio ambiente; e a avaliação geral da percepção da qualidade de vida foi nem boa e nem ruim. Esses dados se relacionam com o estudo de três Unidades Básicas de Saúde no Rio Grande do Sul que analisaram as médias do domínio aspecto físico e concluíram que foram menores em pacientes mulheres que não viviam com companheiro e tinham alguma doença crônica14,15.
Como foi observado no caso 2, houve baixa pontuação no domínio meio ambiente para as questões de recursos financeiros e ambiente físico, e essa análise corrobora com estudos nos quais os pacientes de classes sociais mais baixas demonstraram pior qualidade de vida destacando que, no Brasil, a desigualdade na distribuição de renda, o analfabetismo, o baixo grau de escolaridade, as condições de habitação e o ambiente precário causam impactos negativos sobre a qualidade de vida e a saúde dos sujeitos11,16.
A menor pontuação observada no domínio de relações pessoais do caso 3 ratifica os resultados que descreveram a percepção da qualidade de vida inferior em mulheres; pessoas mais velhas, de classe social baixa, que não viviam com companheiro e com alguma doença crônica, podendo depreender que a falta de um parceiro pode desencadear sentimentos de solidão e de isolamento e, portanto, menor bem-estar13,14.
Desse modo, perante a vivência estimulada dos casos clínicos, o instrumento possibilitou discutir a possível percepção subjetiva em relação à sua saúde física e psicológica, às relações sociais e ao ambiente em que vive7,11.
As estratégias educacionais baseadas em simulação têm sido bastante utilizadas para o ensino das Habilidades de Comunicação e Relacionais, principalmente na área da saúde17. Essas estratégias visam inserir os alunos no processo de aprendizagem por meio de uma prática assistida e orientada. A simulação permite que os discentes experimentem a representação de um evento real, com o propósito de praticar, aprender, avaliar, testar ou entender sistemas ou ações humanas10,17.
E nesse entendimento foi possível analisar e discutir as habilidades entre os discentes nas questões que envolvem a interpretação das dimensões da saúde física, psicológica, nível de independência, relações sociais, meio ambiente e padrão espiritual11,18.
As filmagens que reproduziram a END foram analisadas por meio de apresentações orais e posteriormente foi aplicado o debriefing (reflexão), considerado a parte mais importante da simulação, que permite analisar criticamente o processo de planejamento e a relação estabelecida entre AF e AP18.
As solicitações para o debriefing consistiram em expressar a cena, destacando como se sentiram durante a avaliação fisioterapêutica e como profissionais da Fisioterapia, e elencar os pontos fortes da sua atuação e os pontos que poderiam ser melhorados. O intuito da vivência acadêmica descrita foi atender as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Fisioterapia por meio de uso das metodologias e critérios para acompanhamento e avaliação do processo ensino-aprendizagem19.
Os resultados do relato de vivência em sala de aula apontam que possivelmente a simulação de casos clínicos permite que os discentes experimentem a representação de um evento real e que o instrumento WHOQOL-Bref valorizou a percepção individual, podendo avaliar a QV em diversos grupos e situações.