versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.111 no.5 São Paulo nov. 2018
https://doi.org/10.5935/abc.20180191
A adiposis dolorosa, ou doença de Dercum, é um acúmulo subcutâneo de gordura no corpo acompanhado por dor intensa, crônica e simétrica, muitas vezes incapacitante e geralmente não responsiva aos analgésicos convencionais. Foi descrita pela primeira vez por Dercum, reconhecida como uma doença separada em 1892,1 e, posteriormente, relatada por White em 1899.2 Citado na literatura como doença de Dercum, Morbus Dercum, lipomatosis dolorosa, adiposalgia, adiposis dolorosa, e reumatismo do tecido adiposo, esta condição é mais prevalente em mulheres jovens, com idade entre 35 a 50 anos, e afeta preferencialmente aquelas na fase pós-menopausa.1-3 A adiposis dolorosa também pode ocorrer em múltiplas lipomatoses familiares, uma condição associada a múltiplos lipomas.4 Outros sintomas e sinais incluem distúrbios psiquiátricos (depressão, ansiedade, distúrbios do sono, memória e distúrbios da concentração), cardiovasculares (taquicardia), pulmonares (falta de ar), reumatológicas (fadiga, fraqueza, dores articulares e musculares) e gastrointestinais (inchaço, constipação).3
A doença de Dercum foi descrita como uma doença geral do sistema linfático. Em 2014, Rasmussen et al.,5 sugeriram que trata-se de um distúrbio linfovascular com anormalidades na deposição de tecido adiposo e no transporte linfático, mostrando que os lipomas pareciam ser alimentados e drenados por unidades funcionais do sistema linfático. Além disso, Huang et al.,6 reforçaram a importância do sistema linfático no transporte de colesterol, mostrando sua associação à ApoA1, formação de HDL e transporte linfático para o sangue para eliminação pelo receptor de HDL, ou pelo receptor scavenger tipo B1.
Embora a maioria dos casos de doença de Dercum ocorra esporadicamente, há relatos que sugerem herança autossômica dominante, com expressão variável. A prevalência e a fisiopatologia também são desconhecidas, mas inflamação, disfunção dos tecidos endócrino e adiposo e do sistema nervoso, trauma e pressão mecânica nos nervos são condições etiológicas possíveis.3-4 Considerando a deposição anormal de gordura, a presença de inflamação e possíveis anormalidades metabólicas e lipoproteicas, espera-se um aumento do risco de aterosclerose. Apesar do aumento do acúmulo de massa gorda na doença de Dercum, ainda não foi reportada sua associação com doenças cardiovasculares.7
A doença do Dercum parece ser rara em crianças, manifestando-se geralmente na idade adulta. No presente estudo, relatamos um caso raro de criança com doença de Dercum associada à presença de dislipidemia e inflamação acentuadas.
Criança de 8 anos de idade, do sexo feminino, apresentando lipomatose na coluna vertebral, com dor, que se tornou resistente aos medicamentos padrão para alívio da dor dentro de um ano. Ressonância magnética (RM) da coluna vertebral revelou a presença de múltiplos lipomas difusos (Figura 1), reforçando a suspeita de doença de Dercum.1,2 Muitos procedimentos cirúrgicos foram realizados para remover esses lipomas, mas a deposição anormal de gordura e a dor progrediram com o tempo, com comprometimento das atividades diárias, exigindo medicação analgésica combinada, incluindo morfina. Os lipomas aumentaram em número e tamanho, afetando a coluna vertebral, pernas, braços, face, pescoço e parede abdominal. A deposição de gordura também incluiu esteatose hepática, confirmada por ressonância magnética. A paciente tem atualmente 13 anos de idade com maturidade sexual nível II (pela escala de Tanner).
Acredita-se que esta seja uma apresentação variante da doença de Dercum, classificada a princípio como uma forma nodular localizada que se generalizou e afetou uma menina pré-pubescente. Esse diagnóstico foi confirmado após a exclusão de outras patologias com apresentação clínica semelhante, como as descritas por Hansson et al.,3 em 2012.
Não houve relatos de lipomatose em nenhum outro membro da família, incluindo pais e irmãos.
Análises laboratoriais antes da terapia para avaliação do metabolismo da glicose, lipídios e fatores genéticos revelaram hiperinsulinemia (31,8 uU/ml), com níveis normais de glicose em jejum (81 mg/dl) e HbA1c (3,8%), no início do estudo. Análises de lipídeos em jejum mostraram concentrações baixas de HDL-c (19,3 mg/dl) e ApoA1 (112 mg/dl), hipertrigliceridemia (320 mg/dl), hiperbetalipoproteinemia (118 mg/dl), LDL-c na faixa normal (108 mg/dl), mas com aumento de partículas pequenas e densas de LDL (> 40 mg/dl). O seu mapa de HDL mostrou HDL pré-beta elevado (29 mg/dl; normal <17 mg/dl), alfa 4 HDL normal (normal < 5,3 mg/dl), HDL-3 elevado (33 mg/dl; normal < 13,5 mg/dl), HDL 2 baixo (19,3 mg/dl; normal> 45 mg/dl) e HDL-1 também baixo (9,5 mg/dl; normal> 29,3 mg/dl), mostrando assim a incapacidade de formação de partículas HDL maiores, com excesso de partículas menores e menos protetoras.
O marcador de síntese de colesterol (latosterol) estava abaixo do nível de detecção, e as proporções beta-sitosterol/colesterol e campesterol/colesterol foram de 115 e 149 µmol/mmol de colesterol (na faixa normal). Marcadores inflamatórios, como proteína C-reativa de alta sensibilidade (13,8 mg/L) e lipoproteína associada à fosfolipase A2 (Lp-PLA2, 375ng/ml), foram muito elevados.
A criança não apresentou sinais de disfunção tireoidiana. Os hormônios sexuais e intermediários androstenediona (219 ng/mL), 17-hidroxiprogesterona (76 ng/dL), testosterona (124 ng/dL) e estradiol (24,10 pg/mL) foram altos para a idade. Sulfato de dehidroepiandrosterona (28,4 µg/dL) e hormônio do crescimento (0,67 ng/mL) estavam na faixa normal.
Observou-se concentração normal da porção N-terminal do pró-hormônio do peptídeo natriurético do tipo B (NT-proBNP), não refletindo disfunção miocárdica.
A análise genética mostrou genótipo E3/E4 da apolipoproteína E e fator V Leiden -/-, não representando fatores de risco genéticos para doença cardiovascular.
A composição corporal foi avaliada por bioimpedância elétrica (BIA 450, Biodynamics Inc, EUA), revelando níveis normais de água no corpo (23,1 L), mas alto constituinte de massa gorda (40%) para o sexo e a idade.
O regime terapêutico adotado para a criança foi metformina 850 mg, atorvastatina 20 mg, losartan 25 mg, hidroclorotiazida 12,5 mg, gabapentina 300 mg três vezes ao dia, fentanil adesivo 12,5 mcg a cada 72 h, amitriptilina 50 mg à noite para redução da dor neuropática e morfina 10 mg em crises excepcionais de dor.
Tanto quanto se sabe, este é o primeiro relato de um caso de doença de Dercum afetando uma criança pré-pubescente com lipomas na região dorsal, face e pescoço, parede abdominal, braços e pernas, que são locais comuns dos lipomas observados em pacientes com a doença de Dercum na idade adulta.7 A presença de lipomas na coluna vertebral pode produzir uma compressão do plexo neural, causando dor extrema que se estende aos membros superiores e inferiores e à parte superior anterior do tronco, limitando, assim, a realização das atividades diárias normais.
A criança apresenta uma forma rara da doença de Dercum ou lipomatose dolorosa com acometimento na infância. O diagnóstico da doença de Dercum foi baseado no diagnóstico diferencial com outras lipomatoses, conforme proposto recentemente por Hansson et al.3
Seus pais e irmãos não apresentaram sinais de lipomatose ou lipomatose dolorosa, descartando o diagnóstico de lipomatose múltipla familiar, conforme descrito por Campen et al.4
Além do acúmulo anormal de gordura, outros achados interessantes observados na paciente foram hiperinsulinemia, HDL-colesterol baixo, hiperbetalipoproteinemia, com predomínio de partículas de LDL pequenas e densas, caracterizando um estado de resistência à insulina. O mapa das HDLs revelou um fenótipo de partículas associadas ao aumento do risco cardiovascular, com baixa concentração de partículas de HDL-2, relacionadas à proteção cardiovascular, e alta concentração das partículas de HDL-3, com menor fator de proteção.8 Essas mudanças no perfil de partículas de HDL podem ocorrer por fatores hereditários ou adquiridos, ou de forma secundária ao uso de drogas e exercícios aeróbicos vigorosos, como também na ingestão crônica de álcool. A predominância de partículas de LDL pequenas e densas está associada à progressão da aterosclerose e é frequente em indivíduos com múltiplos fatores de risco para doença cardiovascular, como diabetes, obesidade e outros estados de resistência à insulina.9 Em pacientes com lipomatose, também foi descrita uma associação com atividade alterada da lipoproteína lipase (LPL) no tecido lipomatoso, afetando o metabolismo das partículas de HDL.10 No entanto, os autores não consideram a atividade da LPL como o mecanismo mais aceitável para justificar as alterações nas subfrações de lipoproteínas observadas na doença de Dercum. O presente estudo não avaliou a atividade da LPL nesta paciente, e outros mecanismos podem ter afetado o remodelamento das subfrações de lipoproteínas.
A alta concentração de marcadores inflamatórios, como a lipoproteína associada à fosfolipase A2 (Lp-PLA2) e a proteína C-reativa, está de acordo com o estado pró-inflamatório que acompanha esses lipomas. Além disso, partículas pequenas e densas de LDL podem interagir com a Lp-PLA2, contribuindo para a síntese de produtos que iniciam a cascata de sinalização inflamatória pela proteína C-reativa.11
A síntese normal e absorção do colesterol, bem como a secreção do hormônio tireoidiano e o genótipo ApoE, não explicam a gênese desses lipomas. É possível que mudanças no metabolismo da glicose nos lipomas, desequilíbrio entre lipólise e lipogênese, e a necessidade de diferentes lipídios e colesterol para hipertrofia de adipócitos possam explicar a formação do lipoma,12 e podem estar associadas às alterações nas subfrações lipoproteicas observadas na doença de Dercum.
A criança mantém o uso da medicação atual para alívio da dor, porém não há evidências de redução da dor na evolução da doença de Dercum em adultos, pelo menos em estudos que relatam um acompanhamento de cinco anos. Este caso continua sendo um desafio para os médicos, para a paciente e para sua família, que enfrentam dificuldades para restaurar uma vida normal. Pesquisas futuras são necessárias para detectar a etiologia e a evolução da doença de Dercum desde a infância até a idade adulta.