Compartilhar

Apresentação tardia de síndrome de Bartter tipo IV com eritrocitose

Apresentação tardia de síndrome de Bartter tipo IV com eritrocitose

Autores:

Ita Pfeferman Heilberg,
Cláudia Tótoli,
Joaquim Tomaz Calado

ARTIGO ORIGINAL

Einstein (São Paulo)

versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385

Einstein (São Paulo) vol.13 no.4 São Paulo out./dez. 2015 Epub 30-Out-2015

http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082015RC3013

INTRODUÇÃO

A síndrome de Bartter (SB) antenatal tipo IV é caracterizada por polihidrâmnio, nascimento prematuro, déficit auditivo sensório-neural e perda severa de sal e água no período perinatal, alcalose hipocalêmica, febre, vômito, diarreia, déficit de crescimento e desenvolvimento de insuficiência renal crônica na infância.(1) A apresentação de SB de início tardio com perda auditiva sensório-neural causada por mutação no gene da bartina já foi descrita no Japão,(2) em Portugal(3) e na Espanha,(4) mas trata-se do primeiro caso descrito no Brasil.

RELATO DE CASO

Paciente surdo, do sexo masculino, foi encaminhado para a enfermaria de Nefrologia pela primeira vez aos 20 anos de idade devido a quadro de astenia e hipocalemia aguda (potássio − K sérico de 2,0mEq/L; valor normal de 3,5 a 5,0mEq/L), acompanhados de eritrocitose (hemoglobina − Hb de 18,7g/dL; valor normal de 12 a 15,5g/dL) detectados em exame pré-operatórios anteriores a uma cirurgia de joelho. Tratava-se do décimo filho de pais consanguíneos, que nasceu prematuro de parto cesárea, após gestação complicada por polihidrâmnio. O paciente apresentava um outro irmão com surdez e uma irmã com cálculo renal. Seus pais notaram sua hipoacusia no segundo ano de vida. Na internação, o paciente apresentava-se normotenso (110/70mmHg), com creatinina sérica de 0,9mg/dL (valor normal de 0,6 a 1,2mg/dL), peso de 54kg e altura de 1,50m (abaixo do percentil 5 de estatura para idade). Iniciou-se reposição intravenosa com cloreto potássio (KCI) 19,1% 20mL intravenoso, seguido por suplementação de KCI via oral 6,0% 20mL três vezes ao dia. Além disso, as determinações laboratoriais séricas mostraram bicarbonato sérico de 23,0mmoL/L, redução discreta de cálcio sérico ionizado (1,09mmoL/L; valor normal de 1,15 a 1,32mmoL/L), fosfato sérico baixo (2,2mg/dL; valor normal de 2,5 a 4,5mg/dL), redução da reabsorção tubular fracional de fósforo (TRP -tubularreabsorption of phosphate; 74,1%; normal acima de 80%) e paratormônio (PTH) intacto elevado (120ng/L; valor normal de 15 a 68ng/L). Os níveis séricos de 25OH-vitamina D (28,2ng/mL) estavam discretamente abaixo do normal (>30ng/mL). Foram observadas elevações na renina plasmática (65,0ng/mL; limite normal <6,0ng/mL) e aldosterona (55,7ng/dL; limite normal <31ng/dL). O volume urinário do paciente era de 3.530mL/dia, porém não foi detectada hipercalciuria. Excluiu-se nefrocalcinose, por meio de tomografia computadorizada helicoidal. A proteína ligadora de retinol (RBP -retinol-binding protein) (41mg/L; limite normal <0,40mg/L) mostrou-se significativamente elevada. A etiologia dos eritrocitose também foi investigada. A contagem de plaquetas e leucócitos encontrava-se normal (biópsia da medula óssea revelou-se discretamente hipocelular com exceção da hiperplasia eritroide). Ferro sérico, ferritina e transferrina, bem como eritropoietina (EPO), encontravam-se dentro dos limites de normalidade (19,2mUl/mL). A curva de dissociação da oxihemoglobina (P50) estava normal, e a análise para mutação da Janus-quinase 2 (JAK-2) foi negativa, sendo descartada policitemia vera. Na alta hospitalar após 2 semanas, foi prescrita espironolactona (100mg/dia), além da suplementação com KCI por via oral (30mEq/dia). No seguimento, a dose de espironolactona foi aumentada para 200mg/dia, para melhor controle da hipocalemia.

DISCUSSÃO

No presente caso, apesar de os achados de hipofosfatemia leve com PTH intacto elevado poderem ter sugerido inicialmente a presença de algum distúrbio do metabolismo de fósforo, a associação de hipocalemia e deficiência auditiva, mesmo na ausência de alcalose metabólica, levou à hipótese de SB tipo IV com início tardio. O diagnóstico foi confirmado por meio de análise molecular, que revelou um alelo c.139G>A para o gene BSND em homozigose, resultando na troca de glicina (Gly) para arginina (Arg) na posição 47 (p.G47R).

Conforme descrito por Brum et al.,(3) é possível que a coexpressão do p.G47R de bartina, com os canais CLC-Ka, tenha resultado em uma redução menos severa das correntes de cloro, como observado em mutações missense, possibilitando que a bartina retivesse algumas funções residuais, como CLC-Kb, condicionando um fenótipo menos severo.(5) No entanto, em um estudo funcional recente, Janssen et al.(6) demonstraram que a G47R foi a única mutação missense examinada que não preveniu a inserção da bartina na superfície da membrana, nem a ativação dos canais CLC-Kb/bartina, porém tal mutação alterou os níveis de glicosilação dos canais CLC-Kb, de forma que sua ligação por meio de bartina se tornasse menos efetiva. Portanto, mutações distintas na bartina causam fenótipos com diferentes níveis de severidade.

Neste caso, a função renal do paciente estava preservada, corroborando todos os casos descritos na literatura de pacientes com a mesma mutação. A ausência de alcalose metabólica em nosso paciente, apesar de inesperada, já foi descrita em casos de SB tipos I e II,(7,8) e até nos primeiros sintomas da SB tipo IV em adultos.(2)

A característica mais intrigante de nosso caso foi a presença de uma marcada eritrocitose (poliglobulia) em um paciente não fumante, na ausência de policitemia vera, mutações na JAK-2 ou de outras causas de policitemia primária. Um caso de Bartter associado com eritrocitose já foi descrito na literatura em 1973 por Erkelens,(9) que supôs que a elevada atividade eritropoiética no soro poderia ter resultado de uma hiperplasia juxtaglomerular, levando à produção excessiva tanto de renina quanto de EPO. Porém considera-se atualmente que a maior fonte de síntese de EPO no rim sejam os fibroblastos intersticiais, e não o aparelho juxtaglomerular. Além disso, no presente caso, os níveis séricos de EPO encontravam-se dentro dos limites da normalidade. Apesar de a eritrocitose poder ter sido secundária à poliúria, o volume de urina de 24 horas nesse paciente não estava elevado a ponto de causar uma contração de volume. Assim, a causa exata da eritrocitose permanece desconhecida.

Os níveis elevados de PTH poderiam ser atribuídos à hipocalcemia leve, mas não à hipomagnesemia, não observada no presente caso. Associação com pseudo-hipoparatireoidismo (PHP) tem sido relatada em pacientes com SB.(10,11) Porém, os níveis baixos de fosfato sérico observados, devido à reduzida reabsorção tubular, não sugerem PHP. Esses achados corroboram os de Vaisbich et al.,(12) que também relataram hipofosfatemia em 5 de 12 casos com SB. Por fim, após 2 meses de suplementação com colecalciferol por via oral (50.000UI), os níveis de PTH se normalizaram, sugerindo que o PTH elevado deve ter sido secundário à hipocalcemia leve e aos níveis subnormais de 25OH-vitamina D.

Além da fosfatúria, outra evidência de disfunção tubular proximal no presente caso foi o aumento do nível urinário de proteína de baixo peso molecular, como a proteína ligadora de retinol (RBP). Apesar da etiologia dessa disfunção não estar completamente esclarecida, um outro caso de síndrome de Fanconi de início na idade adulta, associado a doença renal cística medular, aminoacidúria inespecífica, lisozimúria, perda de beta2-microglobulina, hiperreninemia e policitemia, com níveis elevados de eritropoetina sérica similares aos da SB, já foi descrito na literatura.(13) Outra característica fenotípica geralmente descrita nos casos de SB é a hipercalciúria, associada ou não a nefrocalcinose, que não foi detectada em nosso paciente, também corroborando outros relatos,(2,3) possivelmente devido ao cálcio sérico reduzido, que leva a menor carga filtrada.

CONCLUSÃO

O diagnóstico molecular foi importante para entender melhor a fisiopatogenia de distúrbios tubulares renais, tal como a síndrome de Bartter, em função da heterogeneidade fenotípica presente nessa síndrome.

REFERÊNCIAS

1. Birkenhäger R, Otto E, Schürmann MJ, Vollmer M, Ruf EM, Maier-Lutz I, et al. Mutation of BSND causes Bartter syndrome with sensorineural deafness and kidney failure. Nat Genet. 2001;29(3):310-4.
2. Miyamura N, Matsumoto K, Taguchi T, Tokunaga H, Nishikawa T, Nishida K, et al. Atypical Bartter syndrome with sensorineural deafness with G47R mutation of the beta-subunit for ClC-Ka and ClC-Kb chloride channels, barttin. J Clin Endocrinol Metab. 2003;88(2):781-6.
3. Brum S, Rueff J, Santos JR, Calado J. Unusual adult-onset manifestation of an attenuated Bartter´s syndrome type IV renal phenotype caused by a mutation in BSND. Nephrol Dial Transplant. 2007;22(1):288-9.
4. García-Nieto V, Flores C, Luis-Yanes MI, Gallego E, Villar J, Claverie-Martín F. Mutation G47R in the BSND gene causes Bartter syndrome with deafness in two Spanish families. Pediatr Nephrol. 2006;21(5):643-8.
5. Estévez R, Boettger T, Stein V, Birkenhäger R, Otto E, Hildebrandt F, et al. Barttin is a Cl- channel beta-subunit crucial for renal Cl- reabsorption and inner ear K+ secretion. Nature. 2001;414(6863):558-61.
6. Janssen AG, Scholl U, Domeyer C, Nothmann D, Leinenweber A, Fahlke C. Disease-causing disfunctions of Barttin in Bartter Syndrome type IV. J Am Soc Nephrol. 2009;20(1):145-53.
7. Berttinelli A, Ciarmatori S, Cesareo L, Tedeschi S, Ruffla G, Appiani AC, et al. Phenotypic variability in Bartter syndrome type I. Pediatr Nephrol. 2000; 14(10-11):940-5.
8. Nozu K, Fu XJ, Kaito H, Kanda K, Yokoyama N, Przybyslaw Krol R, et al. A novel mutation in KCNJ1 in a Bartter syndrome case diagnosed as pseudohypoaldosteronism. Pediatric Nephrol. 2007;22(8):1219-23.
9. Erkelens DW, Statius van Eps LW. Bartter’s syndrome and erythrocytosis. Am J Med. 1973;55(5):711-9.
10. Bando Y, Miyakoshi H, Nagaoka T, Ohsawa K, Kobayashi K. [A case of pseudohypoparathyroidism (PHP) type II associated with Bartter’s syndromerestoration of phosphaturic response to parathyroid hormone (PTH) by treatment for hypopotassemia]. Nihon Naibunpi Gakkai Zasshi. 1992; 68(7):676-87. Japonese.
11. Iba K, Morii H, Wada M, Yasumoto R, Kishimoto T, Mitsuhashi T, et al. [A case report of pseudohypoparathyroidism (Drezner’s type I) associated with probable Bartter’s syndrome]. Endocrinol Jpn. 1981;28(5):595-604. Japanese.
12. Vaisbich MH, Fujimura MD, Koch VH. Bartter syndrome: benefits and side effects of long-term treatment. Pediatr Nephrol. 2004;19(8):858-63.
13. Fyhrquist FY, Klockars M, Gordin A, Törnroth T, Kock B. Hyperreninemia, lysozymuria, and erythrocytosis in Fanconi syndrome with medullary cystic kidney. Acta Med Scand. 1980;207(5):359-65.