versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.46 no.2 São Paulo 2020 Epub 09-Abr-2020
http://dx.doi.org/10.36416/1806-3756/e20200121
No final de 2019, um novo coronavírus - severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (SARS-CoV-2) - foi identificado como agente causador de um surto de pneumonias na cidade de Wuhan, província de Hubei, na China. Foi encontrada uma associação entre os primeiros casos e um mercado local de comida, que vendia animais vivos, onde a maior parte dos pacientes havia estado a trabalho ou em visita.
A disseminação foi rápida, resultando em uma epidemia, cuja forma principal de transmissão passou a ser de pessoa para pessoa, por via respiratória ou após tocar em superfícies contaminadas e, em seguida, nos olhos, nariz ou boca. Essa epidemia se alastrou para outros continentes, e a doença passou a ser chamada de coronavirus disease 2019 (COVID-19). Desde então, novos casos começaram a ser descritos em outros países, inicialmente em indivíduos que viajaram para a China e em pessoas que tiveram contato com esses, sendo posteriormente documentados surtos relacionados à transmissão local.1-4 Atualmente, a doença é considerada uma pandemia.
O espectro da apresentação clínica é amplo, desde assintomáticos até pacientes com doença crítica. A maior parte das infecções pulmonares é leve, porém formas graves ou críticas são também descritas, especialmente em idosos e indivíduos com comorbidades, podendo cursar com dispneia, hipoxemia, grande envolvimento pulmonar nos estudos por imagem, insuficiência respiratória, choque e insuficiência de múltiplos órgãos. A mortalidade estimada na China foi de 2,3%, com a maior parte dos casos fatais tendo ocorrido em pacientes idosos ou com comorbidades (doença cardiovascular, diabetes mellitus, doença pulmonar crônica, hipertensão e câncer).5) No entanto, os índices de mortalidade descritos variam em diferentes populações; na Itália, por exemplo, onde a idade média da população atingida é mais elevada, a mortalidade descrita atualmente é de aproximadamente 5,8%.6
A possibilidade de COVID-19 deve ser considerada em pacientes sintomáticos, que nos últimos 14 dias tenham apresentado contato próximo com um caso suspeito ou confirmado de COVID-19, que tenham estado em áreas onde a transmissão disseminada tenha sido documentada, ou que tenham tido potencial exposição por participação em eventos ou por terem estado em locais em que casos de COVID-19 foram descritos. Entre as manifestações clínicas mais comumente descritas, encontram-se febre, fadiga, tosse seca, anorexia, mialgia, dispneia e produção de catarro.7
A confirmação diagnóstica se dá a partir da detecção do RNA do SARS-CoV-2 por reverse-transcriptase polymerase chain reaction (RT-PCR, reação em cadeia da polimerase com transcrição reversa) em material colhido da nasofaringe ou da orofaringe. No entanto, se esse teste for negativo e a suspeita clínica for alta, a recomendação é de que ele seja realizado novamente, inclusive em material obtido de outros sítios respiratórios. Também vale ressaltar o valor de se fazer o teste para outros vírus, que podem se apresentar clinicamente de forma semelhante.
Foram publicados múltiplos artigos relatando os achados tomográficos dessa condição, mesmo em pacientes com resultado de RT-PCR negativo, despertando o interesse em relação ao papel da TC no cenário clínico atual. O Colégio Americano de Radiologia e o Colégio Brasileiro de Radiologia recomendam que a TC do tórax seja utilizada em pacientes hospitalizados, com sintomas de pneumonia e com indicação clínica específica para tanto; é importante pontuar que ambos não recomendam a utilização da TC para o rastreamento da doença nem como teste de primeira escolha para o diagnóstico de COVID-19.8,9
A TC do tórax pode ajudar no diagnóstico dessa doença, porém não pode isoladamente confirmá-lo nem excluí-lo. Quando utilizada a RT-PCR como referência, a TC do tórax apresenta alta sensibilidade (97%), porém baixa especificidade (25%), dada a sobreposição dos achados com infecções pulmonares de diferentes etiologias.10
Em relação aos achados tomográficos mais frequentemente observados nos casos de COVID-19, encontram-se as opacidades pulmonares em vidro fosco e, ocasionalmente, consolidações, com distribuição predominantemente periférica, por vezes associadas a reticulado fino (configurando o padrão de pavimentação em mosaico), espessamento vascular e o sinal do halo invertido. São menos frequentes o acometimento central do parênquima ou a presença de nódulos, cavidades, linfonodomegalias ou derrame pleural.11-13 É aventado que o sinal do halo invertido, descrito por alguns autores, indique a possibilidade de pneumonia em organização como um dos mecanismos de lesão pulmonar.14,15
O objetivo do presente estudo foi descrever os principais achados tomográficos da primeira série de casos brasileira de COVID-19. Nesta experiência brasileira inicial, reunindo os 12 primeiros pacientes com diagnóstico confirmado de COVID-19 (por RT-PCR) submetidos a TC do tórax em nosso serviço, as características tomográficas observadas foram: opacidades em vidro fosco, em 12 pacientes (100%); pavimentação em mosaico, em 7 (58%); consolidação alveolar, em 4 (33%); sinal do halo invertido, em 1 (8%); e derrame pleural, em 1 (8%). Nódulos, cavidades e linfonodomegalias não foram identificados em nossa amostra.
Com relação à distribuição dos achados, observamos envolvimento de ambos os pulmões em 11 pacientes (92%) e predomínio periférico em 9 pacientes (75%); as alterações acometiam principalmente os lobos inferiores em 8 pacientes (67%); eram multilobares e relativamente difusas em 3 pacientes (25%); e predominavam no lobo inferior esquerdo em 1 paciente (8%).
A Figura 1 ilustra um caso típico e demonstra o padrão de comportamento evolutivo dos achados, enquanto a Figura 2 demonstra não somente as principais alterações da doença, como também outro achado possível (pequeno derrame pleural), embora relativamente incomum.
Figura 1 Cortes axiais (em A a C) e reformatações coronais (em D) da TC de tórax de um homem de 44 anos com quadro clínico sugestivo de COVID-19 (febre, dor de garganta e tosse seca frequente), demonstrando o padrão mais frequentemente descrito: numerosas opacidades em vidro fosco, associadas a fino reticulado e espessamento de septos interlobulares (pavimentação em mosaico), multifocais bilaterais, envolvendo vários lobos pulmonares, com distribuição predominantemente periférica no parênquima, um pouco mais extensas nas regiões posteriores dos lobos inferiores. Esse paciente teve RT-PCR positiva para COVID-19 no dia da realização da primeira TC (imagens à esquerda em cada quadro) e foi internado. Realizou-se uma TC de controle três dias depois (imagens à direita em cada quadro) devido à manutenção dos picos febris e da tosse seca, que demonstrou aumento do número e da extensão das opacidades pulmonares.
Figura 2 Cortes tomográficos de pacientes diferentes exemplificando o espectro de achados de COVID-19 em nossa casuística. Em A, paciente masculino de 61 anos apresentando opacidades em vidro fosco periféricas e posteriores nos lobos inferiores (setas azuis no lobo inferior direito), além de outro foco de opacificação do parênquima na língula. Em B e C, paciente masculino de 41 anos com extensas opacidades em vidro fosco com espessamento de septos interlobulares e fico reticulado de permeio (pavimentação em mosaico) no lobo superior direito, além de outros pequenos focos esparsos nos lobos superior e inferior do pulmão esquerdo. Em D, paciente masculino de 85 anos com opacidades em vidro fosco, associadas a fino reticulado e espessamento de alguns septos interlobulares, com maior extensão na periferia do lobo inferior esquerdo, mas também presentes na língula e, de forma mais discreta, no lobo inferior direito. Em E e F, paciente masculino de 42 anos apresentando opacidades em vidro fosco e discretos focos de consolidação bilaterais, predominando nas regiões mais posteriores dos lobos inferiores. Esse paciente apresentava, ainda, mínimo derrame pleural bilateral (setas), achado relativamente incomum em pacientes com COVID-19. Adicionalmente, foram identificados sinais sugestivos de esteatose hepática.
Pelo fato de as opacidades em vidro fosco representarem o principal achado de imagem da doença, a radiografia de tórax tem um papel menos importante na avaliação por imagem, uma vez que a sensibilidade do método para a detecção desse tipo de opacidade é baixa. No entanto, naturalmente, a radiografia pode ser útil no acompanhamento de pacientes internados, inclusive em UTIs, por ser um exame amplamente disponível, rápido e de baixo custo, que possibilita um monitoramento, embora menos refinado, mais frequente (às vezes diário) da extensão do envolvimento pulmonar na doença.
Foi demonstrado que indivíduos assintomáticos podem apresentar achados pulmonares (dissociação clínico-radiológica), porém com menor frequência que os pacientes sintomáticos e, geralmente, com menor extensão do acometimento e predomínio de opacidades em vidro fosco. Pacientes sintomáticos, por sua vez, apresentam mais frequentemente achados pulmonares, com predomínio de consolidações e maior extensão do acometimento parenquimatoso.16
Apesar da variedade de apresentações, evolutivamente, de forma geral, tem sido descrito que, nos primeiros 4 dias após o início dos sintomas, predomina o padrão de opacidades em vidro fosco. Entre o 5º e o 8º dias, há um aumento da extensão do acometimento pulmonar, com o aparecimento de pavimentação em mosaico e consolidações. Entre o 9º e o 13º dias, quando costuma ocorrer o pico dos achados tomográficos, nota-se o predomínio de consolidações, e, após o 14º dia a partir do início dos sintomas, começa a ocorrer a reabsorção das consolidações, o padrão de pavimentação em mosaico tende a regredir, porém podem persistir opacidades em vidro fosco.17) A resolução dos achados costuma ser relativamente lenta, estendendo-se por aproximadamente 30 dias, sendo descritas alterações cicatriciais no parênquima pulmonar.
As principais características tomográficas identificadas nos 12 primeiros pacientes brasileiros avaliados em nosso serviço são muito semelhantes às que vem sendo descritas na literatura, incluindo, fundamentalmente, opacidades em vidro fosco multifocais bilaterais, por vezes associadas a reticulado fino de permeio (pavimentação em mosaico), geralmente envolvendo vários lobos pulmonares e com distribuição predominantemente periférica no parênquima. A baixa incidência de derrame pleural e a ausência de outros achados, como linfonodomegalias, nódulos e lesões escavadas, estão de acordo com a experiência internacional recente.10-17
Ainda que os achados tomográficos mais frequentes na COVID-19 se sobreponham aos observados em infecções pulmonares causadas por outros agentes (particularmente outros vírus), e que o diagnóstico definitivo deva idealmente ser realizado mediante a utilização da RT-PCR, dada a magnitude alcançada pela doença nos últimos meses, classificada como pandemia pela Organização Mundial da Saúde, é fundamental que clínicos e radiologistas estejam familiarizados com as formas mais comuns de apresentação por imagem da COVID-19, assim como com a evolução esperada dos achados, de modo que possam contribuir para a identificação mais precoce dos casos e, consequentemente, redução das consequências e da taxa de mortalidade da doença.