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Arantes ACQ. A morte é um dia que vale a pena viver. Alfragide, Portugal: Oficina do livro; 2019.

Arantes ACQ. A morte é um dia que vale a pena viver. Alfragide, Portugal: Oficina do livro; 2019.

Autores:

Juliana Alvares Duarte Bonini Campos

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.25 no.4 Rio de Janeiro abr. 2020 Epub 06-Abr-2020

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232020254.09072019

A autora descreve, em 25 capítulos breves, seu olhar em relação ao cuidado e aos direitos dos indivíduos que sabem que estão próximos ao dia de sua morte. Além disso são discutidos aspectos relacionados à formação médica e ao manejo dos pacientes e de seus familiares. O texto é construído em linguagem simples e apresenta ritmo de uma conversa. Trata de um olhar sensível, construído a partir das experiências da autora como médica especialista em cuidados paliativos.

A proposta do texto é desbravar o território do fim da vida e torná-lo menos ameaçador para todos os atores envolvidos nesse último ato (profissionais, familiares e o próprio indivíduo). Além disso, o relato apresentado busca construir um novo olhar para a vida a partir da consciência da finitude e vulnerabilidade humana.

Antes de me embrenhar na exposição do texto, entendo ser interessante definir “cuidados paliativos”. Trata de uma abordagem de cuidados multiprofissional que visa pensar tratamentos hierarquizados e proporcionais entre os benefícios a serem buscados e os malefícios a serem evitados em cada fase de doença buscando a melhoria da qualidade de vida do paciente e de seus familiares, principalmente, frente a doenças graves1. Entre os objetivos desse tipo de abordagem encontram-se a prevenção e o alívio do sofrimento seja ele físico, social, psicológico ou espiritual. Atualmente, o cuidado paliativo é considerado uma especialidade médica.

Arantes inicia seu texto expondo o estigma social do médico enquanto detentor do processo de cura e da manutenção da beleza e da vida. Para tanto, realiza o relato de uma festa a qual foi convidada. Nessa festa foi calorosamente recebida pela anfitriã, contudo, conhecia apenas a mesma, o que gerou interesse/curiosidade em alguns convidados. Como habitualmente, em nossa sociedade, as apresentações são realizadas nominalmente e, na sequência é exposto “o que se faz da vida”. Nesse momento a autora relata que é médica. Diante dessa informação, a reação das pessoas foi expor pequenas inquietações e indagações médicas, por exemplo, buscando informações a respeito de tratamentos para rejuvenescer. Contudo, nesse cenário é revelado que sua atuação se baseia em “cuidar de pessoas que morrem” o que causou imediato espanto e desconforto nas pessoas. Falar sobre a morte ou sobre o ato de morrer em nossa sociedade parece um desrespeito ao cenário da vida e, portanto, trata de assunto censurado que deve ser ignorado ou evitado2-4, e, assim, a revelação de sua atuação profissional parece ter tornado sua presença na festa inconveniente. É desse ponto que se inicia a narrativa.

O silêncio em torno da morte e do morrer de acordo com a autora pode ser atribuído a algumas condições como 1. obstinação terapêutica, 2. afastamento acadêmico da morte e do morrer, 3. valores da família e 4. resignação do doente. Com relação à obstinação terapêutica são realizados relatos que tornam implícita a obrigação social de evitar a morte. Nesse sentido as instituições hospitalares transformam-se em centros onde se cura e se luta contra a morte2,3, muitas vezes, sem considerar as condições clínicas, a inutilidade dos tratamentos e/ou o sofrimento do paciente. Assim, a necessidade de tratar/curar restringe seriamente a autonomia dos indivíduos.

No centro, como componente fundamental do funcionamento desse cenário de hospitalização encontra-se “o profissional de saúde” que é responsável direto pela “vida” dos pacientes. Esses profissionais receberam formação acadêmica para lidar com a cura o que têm transformado a realidade da morte na visualização nua e crua de seu fracasso. Assim, seja por despreparo seja por reconhecimento de sua impotência diante da morte, esses profissionais têm ignorado e/ou subestimado a importância da morte na vida dos indivíduos tornando o ato de morrer um caminho secreto e sombrio. Nesse sentido Arantes recomenda uma revisão e inserção de disciplinas relacionadas à morte e a cuidados paliativos nos currículos médicos considerando abordagens mais sensíveis e abrangentes que sejam capazes de instrumentalizar esses profissionais para acompanhar seus pacientes durante o inevitável caminho até sua morte. Trabalhos recentes5,6 apontam a falta de inserção de disciplinas específicas voltadas aos cuidados paliativos durante a graduação em medicina no Brasil. Caldas et al.6 afirmam que as escolas têm alegado como razão para a sub-representação curricular dos cuidados paliativos o tempo insuficiente durante o curso de graduação, falta de especialização do corpo docente e existência de inúmeras outras demandas relacionadas à múltiplos interesses. Esse cenário torna ainda mais importante a leitura sensível, cuidadosa e reflexiva do livro de Arantes pelos envolvidos na educação médica.

A autora expõe ainda que o silêncio em torno da morte, não se limita aos profissionais de saúde, mas abrange a família e o próprio doente. Conversar sobre a morte é permitir que as palavras faltem ou que se conectem de maneira sem sentido com sobressaltos de sentimentos o que torna esse ato um desafio, baseado em reflexões sobre a vida e sua finitude, que muitas vezes não estamos preparados para lidar. Por esse motivo, a negação da morte ocorre tanto entre os familiares/amigos quanto entre aqueles que sabem que estão próximos à morte. Nesse contexto, desvela-se a importância do trabalho da autora enquanto médica de cuidados paliativos.

Após anos acompanhando esses pacientes Arantes revela que a primeira reação familiar é tentar proteger seu ente querido poupando-o da revelação de sua real condição. Ainda, a autora reporta que apesar dessa tentativa esses pacientes sabem que estão próximos à morte e, portanto, não precisam ser comunicados verbalmente sobre esse fato. Assim, seu trabalho é de orientação e suporte a todos os envolvidos no sentido de tornar o tempo restante de vida uma caminhada tranquila e segura e o dia da morte um direito de todos. Nesse processo dá-se a oportunidade para aquele que morre de perceber a que veio a esse mundo tornando esse momento digno, significativo e valoroso transformando-o em parte do tempo vivido. No ponto de vista da autora é papel daqueles que cuidam ajudar a transformar o sofrimento da finitude em algo que faça sentido e auxiliar na aceitação e desvelamento do entendimento do outro e daqueles que o cercam. Nesse momento a autora apresenta quatro conselhos aos cuidadores: sejam impecáveis no uso das palavras, não tirem conclusões, não levem nada para o lado pessoal e façam o melhor.

Ainda, considerando que a morte não é um evento em si, mas um evento social, a autora considera durante seu texto questões relacionadas à estruturação familiar, ao significado singular da vida dos sujeitos, trabalho, espiritualidade e o luto. A conversa sobre a morte e a importância desse momento se encerra com a descrição de uma técnica desenvolvida pela autora para abordar esse tema com seus pacientes e familiares. Essa técnica é denominada testamento vital e trata de um instrumento de entrevista que engloba questionamentos de saúde corriqueiros como vacinas, doenças e cirurgias pré-existentes até diretivas antecipadas sobre o que queremos ou não para o final da nossa vida. O trabalho de Arantes tem sido estruturado na busca de incorporar a morte nas conversas familiares cotidianas e nas avaliações médicas de rotina que ocorrem ao longo da vida das pessoas tentando assim, mobilizar o pensamento social relacionado à morte deslocando-o da tragédia e sofrimento extremo para um processo culturalmente lúcido, natural e pacífico.

Trata-se, portanto, de uma leitura prazerosa que aborda um tema de interesse universal e, portanto, esse livro é recomendado para todos, pessoas comuns, doentes, familiares, educadores e profissionais de saúde em geral não apenas médicos. A leitura desse livro pode contribuir para construção de um processo de ressignificação da morte que pode e deve ser realizado nas mais variadas áreas do conhecimento sendo particularmente importante para todos aqueles que cuidam, principalmente os envolvidos diretamente no processo terminal da vida e nos cuidados paliativos.

REFERÊNCIAS

1 Cherney N, Fallon M, Kaasa S, Portenoy R, Currow DC. Oxford textbook of Palliative Medicine. 5ª ed. England: OUP Oxford; 2015.
2 Gurgel WB. A morte como questão social. Barbarói 2007; 27(2):60-91.
3 Kubler-Ross E. Sobre a morte e o morrer. 10ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2017.
4 Santos LAC, Faria L, Patiño RA. O envelhecer e a morte: leituras contemporâneas de psicologia social. Rev Bras Estud Popul 2018; 35(2):e0040.
5 Fonseca A, Geovanini F. Cuidados paliativos na formação do profissional da área da saúde. Rev Bras Educ Med 2013; 37(1):120-125.
6 Caldas GHO, Moreira SNT, Vilar MJ. Cuidados paliativos: uma proposta para o ensino da graduação em Medicina. Rev Bras Geriatr Gerontol 2018; 21(3):269-280.