versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.31 no.12 Rio de Janeiro dez. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00150914
El artículo discute la aplicación de teorías de la argumentación y la comunicación en el campo de la medicina. A partir de una revisión bibliográfica se procede a comparar tres enfoques seleccionados por pertenecer a una concepción pragmática del lenguaje: el modelo de Toulmin, la pragmadialéctica y el de Todd y Fisher, derivado de la sociolingüística americana. Los principales resultados fueron: la pragmadialéctica caracteriza la comunicación médico-paciente de manera más integral, destacando elementos de las tres disciplinas de la argumentación: la dialéctica, la retórica y la lógica; el modelo de Toulmin ayuda a fundamentar argumentativamente la declaración de hipótesis diagnósticas y terapéuticas y, como parte de una medicina interpretativa, se acerca a la pragmadialéctica por incluir elementos dialécticos en el proceso de formulación de argumentos; el enfoque de Todd/Fisher permite caracterizar, a partir de un análisis pragmático de los actos de habla, el grado de simetría/asimetría de la relación médico-paciente y plantea la posibilidad de negociar alternativas terapéuticas.
Palabras-clave: Relaciones Médico-Paciente; Lenguaje; Comunicación
As teorias da linguagem têm sido reconhecidas e apropriadas ao campo da saúde 1,2,3,4,5,6,7,8,9,10,11, pois oferecem uma alternativa de análise importante à área, cujas práticas, apesar dos objetivos instrumentais, ancoram-se essencialmente na linguagem. A importância da linguagem e da comunicação na saúde não se dá apenas pela dimensão relacional dada pela relevância das tecnologias leve e leve-duras, mas devido aos consensos necessários, inclusive sobre o uso de tecnologias duras e seus impactos sobre a saúde 7.
Este artigo é uma revisão crítica de textos referentes a alguns enfoques da teoria da argumentação e da análise pragmática da linguagem aplicados aos campos da medicina e da educação em saúde: (a) o modelo da pragma-dialética 12, ao qual dedicamos mais atenção; (b) o enfoque de Toulmin 13; e (c) um enfoque comunicacional pragmático derivado da sociolinguística americana, representado pelos trabalhos de Fisher e Todd sobre a comunicação médico-paciente 5.
O enfoque da pragma-dialética, representado por van Eemeren & Grootendorst 12, van Eemerem 14, ancora-se na noção do discurso argumentativo como um processo que articula um protagonista e um antagonista que buscam resolver suas diferenças e encontrar um consenso representado pelo reconhecimento dos méritos do melhor argumento. Fortemente normativo, admite a necessidade de regras de sinceridade e de correção normativa referentes aos procedimentos formais do discurso que operam como a garantia de um processo argumentativo que busca a razoabilidade no sentido popperiano reconstruído por Habermas 15 e por isso tende a ser universalista.
O modelo de Toulmin 13 ajuda a caracterizar a estrutura argumentativa ou o conjunto dos principais elementos de um processo argumentativo considerado razoável. Esses elementos constitutivos de um raciocínio argumentativo estariam ligados à necessidade de justificar determinadas teses que representam pretensões do ponto de vista comunicacional, para além do estabelecimento de inferências lógicas.
Fisher & Todd 5 realizam uma adaptação da teoria dos atos de fala de Austin 16 e Searle 17, segundo a qual a linguagem não é uma mera representação passiva da realidade, mas uma ação que cria contexto social. Fisher & Todd 5 procuram caracterizar a comunicação médico-paciente como um lugar determinado pela estrutura social e o sistema institucional (como organização social ou relação de poder). Essas autoras realizam análises empíricas dos atos de fala presentes nos processos de definição diagnóstica e de negociação de alternativas de tratamento e de acompanhamento dos pacientes, ressaltando a forte assimetria que marca essa comunicação.
Os três enfoques filiam-se ao campo da filosofia pragmática da linguagem, sendo este o critério que norteou o recorte seletivo da literatura que se revisou neste trabalho. Nos casos da pragma- dialética e do enfoque de Fisher & Todd 5, o elemento comum é a teoria dos atos de fala de Austin 16 e Searle17. Em relação à Toulmin, autores como Santibañez 18 assumem que esse enfoque também tem uma não declarada conotação pragmática, entendendo como tal uma concepção da linguagem como ação.
Este artigo visa prover elementos para uma análise comparativa dos três enfoques selecionados e contribuir para aprimorar a possibilidade de um discurso argumentativo que reforce as chances em termos de oportunidades de fala dos participantes da interação, mesmo em condições de assimetria no conhecimento. No presente trabalho, priorizou-se o contexto da interação médico-paciente e da equipe de profissionais de saúde.
Autores da pragma-dialética como Pilgram 2,19, Schulz & Rubinelli 20,21, Gilbert & White 1 e van Poppel 3,22 aplicam a teoria da argumentação à consulta médica e à educação em saúde. A consulta médica é vista por eles como um tipo de atividade comunicativa ou uma forma de comunicação culturalmente estabelecida que possui um formato em grande medida institucionalizado, como um debate político, um conselho médico, uma defesa legal ou um ensaio científico. Essas formas específicas são denominadas de eventos de fala por van Eemeren 14 e nelas a comunicação estaria marcada pela busca do êxito com base em audiências específicas, ou pela persuasão, que consiste em conquistar a adesão do auditório para uma tese sem privilegiar o mérito dos argumentos. Esses autores aderem à tese da necessidade, nesse contexto, de uma manobra estratégica, termo cunhado por van Eemeren 14 para expressar a tentativa de conciliar a argumentação baseada no mérito, de base dialética, e a orientação persuasiva da busca de adesão, correspondente a querer que uma dada posição seja aceita pelo outro (retórica). O conceito de manobra estratégica corresponderia a uma forma de reduzir a brecha entre buscar o êxito e manter a razoabilidade. O autor sustenta que não haveria uma contradição insanável entre o uso da retórica e o uso dialético, e que a primeira deveria ser inserida de maneira subordinada dentro da proposta dialética.
Pilgram 2 identifica o conteúdo das etapas do processo de argumentação da pragma-dialética aplicado à consulta médica. Na primeira etapa, o gatilho da confrontação entre médico e paciente é a possibilidade eventual de uma falta de acordo sobre parte ou a totalidade do conselho médico (ou prescrição), visto como o elemento fundamental reivindicado pelo paciente e fornecido pelo médico. Também podemos considerar a hesitação do paciente em seguir a recomendação médica como a origem de um processo argumentativo voltado a superar diferenças. Na segunda etapa, da definição dos pontos de partida procedimentais e materiais, a autora identifica uma regra explícita que corresponde ao consentimento informado; uma regra implícita que corresponde à atuação do médico como principal protagonista da discussão; e a busca e apresentação de fatos relativos ao estado de saúde do paciente (pontos materiais), que corresponderiam na linguagem da pragma-dialética a concessões explicitamente estabelecidas, como os resultados do inquérito médico sobre a saúde do paciente; e, a concessões implicitamente estabelecidas como os resultados do exame físico do paciente feito pelo médico. Os meios discursivos desse processo (terceira etapa) estariam representados pela argumentação baseada na interpretação das concessões em termos de fatos médicos e evidências. Os possíveis produtos (quarta etapa) seriam: o acordo sobre o paciente seguir o conselho médico; a referência a um especialista; ou, um pedido de segunda opinião.
Em outro trabalho, Pilgram 19assinala que na consulta médica predomina como esquema argumentativo um tipo de argumento por autoridade. A representação do esquema básico do argumento por autoridade é o seguinte:
1. A opinião O é aceitável
1.1 A autoridade A é da opinião de que O
1.1’ A opinião da autoridade indica que O é aceitável
Para van Eeemeren & Grootendorst 12 e Rivera 23, um argumento é a própria premissa que permite fundamentar o ponto de vista no ato de argumentar, podendo existir mais de uma premissa, e um esquema argumentativo é a forma específica ou convencional pela qual as premissas ou argumentos se relacionam com o ponto de vista. Argumentar corresponde, ainda, à relação premissas/ponto de vista. No caso do argumento por autoridade, a concordância de uma autoridade com um ponto de vista é representada como signo ou marcador da aceitação ou do caráter de verdade do ponto de vista (a opinião “O” é aceitável porque é defendida por uma autoridade no assunto). Ou dito de outra forma, esse esquema se caracteriza como um tipo particular em que o conteúdo do argumento (premissas 1.1 e 1.1’) é tido como um signo da aceitabilidade do ponto de vista. Esse esquema é um tipo de esquema argumentativo conhecido como a argumentação sintomática ou baseada no signo 12.
O argumento por autoridade 19 se aproxima do apelo ao ethos da retórica, onde a parte que discute se refere à sua própria capacidade para tornar seu ponto de vista mais aceitável. No limite, esse esquema pode significar a anulação do paciente como protagonista e uma dinâmica relacional paternalística, segundo a qual o médico sabe o que é melhor para seu paciente. Para que o argumento por autoridade possa desenvolver uma aproximação à razoabilidade, ele deveria observar determinadas condições de solidez do argumento, que seriam características do discurso dialético. As condições seriam: o protagonista de um argumento por autoridade é obrigado a continuar a defesa de seu ponto de vista caso o antagonista lhe peça para fazê-lo; o protagonista não pode exibir suas qualidades para evitar a apresentação de mais argumentos em apoio ao ponto de vista; o antagonista deve reconhecer genuinamente a autoridade do protagonista em um campo específico; o protagonista deve expressar corretamente opiniões formuladas anteriormente; e, o protagonista deve apresentar um argumento por autoridade em um momento do discurso em que é relevante.
Pilgram 19 assinala que a não observância dessas condições poderia transformar o argumento por autoridade em uma falácia, ou em um tipo de argumento ad verecundiam, que é um argumento que viola algumas regras do discurso dialético, como a regra da carga de prova, significando não trazer à tona todos os dados e evidências necessários, assim como todos os argumentos cabíveis tendo em vista um convencimento efetivo do paciente e a eliminação de quaisquer dúvidas.
Schulz & Rubinelli 20,21 caracterizam o encontro médico como um diálogo que combina a busca de informação com a persuasão. Estes autores destacam que o termo de consentimento informado obriga o médico a fornecer ao paciente toda a informação necessária para que ele escolha livremente seguir um tratamento prescrito. Tal instrumento levanta a necessidade de que o médico na sua tarefa de persuasão se adapte às regras típicas de uma discussão crítica. No entanto, os autores sugerem que na relação médico-paciente predomina um componente retórico, na medida em que nesse encontro não se dariam algumas das condições de uma argumentação no sentido da pragma-dialética, como não impedir que os participantes possam levantar pontos de vista ou questionar pontos de vista, não recusar a defesa de um ponto de vista quando solicitado a fazê-lo etc. Os autores sustentam que que há uma assimetria no conhecimento médico que pode significar uma menor capacidade do paciente apreender informação importante referente aos esquemas argumentativos envolvidos no diagnóstico e prescrição médicos. Assinalam que, embora o paciente possa trazer informação pesquisada ou incorporada, a ele lhe faltam meios para contextualizar essa informação e patrocinar uma discussão mais aprofundada ou fundamentada. Nessa medida, eles destacam uma tensão entre determinadas regras de uma discussão crítica trazidas pelo consentimento informado e uma função retórica.
Gilbert & White 1, ao se referirem ao modelo de raciocínio da prática médica, defendem a tese de que essa prática combina elementos das três principais disciplinas da argumentação – dialética, lógica e retórica –, assinalando que: (a) o raciocínio lógico essencial da investigação diagnóstica é o modelo hipotético-dedutivo (o silogismo categórico), associado com a abordagem da medicina baseada em evidências; (b) a definição de formas de tratamento e acompanhamento envolve a exploração de alternativas, e que nesse processo se verifica o componente dialético de um envolvimento mais crítico dos pacientes; e (c) a particular inserção dessa forma de argumento em instituições onde são processados “eventos de fala” obriga a recorrer ao uso de elementos persuasivos em maior ou menor grau, numa acomodação aos contextos socioculturais específicos que impõem certas restrições. Examinaremos tais aspectos a seguir.
Raciocinar desde uma ou mais premissas até a conclusão é o modelo básico de raciocínio médico e do argumento pertinente à definição diagnóstica. Assim, as razões que levam a uma conclusão podem ser representadas em termos de um silogismo categórico, como se segue:
Premissa A (p1)
O conjunto de sintomas A e sinais B são típicos de colecistite aguda
Premissa B (p2)
O paciente apresenta todos os sintomas A e sinais B
Conclusão C
Então, o paciente tem colecistite aguda
O raciocínio diagnóstico é um tipo de discurso que deve ser sustentado diante dos pacientes e dos médicos ou outros profissionais. Para justificar a declaração de um diagnóstico, torna-se necessário o estabelecimento de um diagnóstico diferencial, que representa o componente dialético da argumentação específica. Neste caso, a comunidade científica dos especialistas é convocada para, numa situação de simetria discursiva, participar dum discurso teórico voltado para a escolha por consenso de uma alternativa. Para Gilbert & White 1, o ponto de vista dialético é necessário tanto para justificar um diagnóstico, como para justificar a definição de formas de tratamento e de acompanhamento. Esta última também exige uma análise o mais abrangente possível de possibilidades. Autores como Blair 24 e Fisher 25 admitem que a definição terapêutica é, em algum grau, um processo de negociação de opções plausíveis. Johnson & Blair 26 sugerem que a justificação real de uma conclusão (por exemplo, uma decisão de diagnóstico) depende de algo mais do que a mera articulação da evidência que leva a aceitar uma conclusão. Para ser convincente, um agente precisa também articular respostas a posições potencialmente alternativas ou objeções à conclusão que está sendo sustentada.
O estabelecimento do diagnóstico diferencial envolve a determinação dos traços definidores da hipótese diagnóstica considerada em termos de qualificador semântico como a mais provável e os traços discriminatórios, que seriam os descritores que permitem distinguir os diagnósticos uns dos outros. Por qualificador semântico se entende aqui a força ou o grau de certeza da conclusão ou tese, ou seu grau de probabilidade. Os traços definidores no caso da colecistite aguda seriam: dor no quadrante superior direito do abdome, febre e calafrios, entre outros. Outras características seriam discriminatórias nesse caso, como: uma dor epigástrica severa e sinais de choque precoce ou tardio, características da pancreatite. A identificação na prática desses descritores e de sua frequência permite articular os qualificadores relativos à conclusão e às suas alternativas: “com certeza”, “provavelmente”, “possivelmente”, podendo sugerir graus de probabilidade 1.
Sobre o componente persuasivo e retórico envolvido no processo de raciocínio clínico, os Golbert & White 1 enfatizam a natureza diversificada e multidimensional do discurso médico, que procura convencer diferentes públicos: usuários, membros da família, outros médicos, outros profissionais de saúde, a instituição etc. Para cada um, os médicos tentam adaptar a linguagem aos conceitos, valores e traços culturais dessas audiências para persuadir, de modo a poder explorar técnicas discursivas de caráter retórico que podem ameaçar comprometer a correção normativa do argumento, incorporando componentes manipulativos ou estratégicos.
É recomendada, a partir de van Eemeren 14, a utilização de uma abordagem crítica normativa em busca de um equilíbrio entre razoabilidade e sucesso, sendo o último representado pelo trabalho de convencimento de audiências particulares 1.
van Poppel 22 também defende o uso do enfoque pragma-dialético para a análise e o desenho de folhetos de educação em saúde. Uma brochura não implica uma interação direta, e ela tem uma finalidade clara de modificar comportamentos, o que estimula uma orientação retórica. Mesmo assim, van Poppel 22 sustenta que ela pode ser interpretada como uma discussão implícita e que a pragma-dialética pode colaborar para criar um melhor equilíbrio entre razoabilidade e sucesso, evitando o predomínio absoluto da função retórica. Para a autora, um folheto de educação em saúde deveria observar as mesmas regras rigorosas duma discussão dialética, como evitar a manipulação de valores e emoções, evitar mensagens falsas ou exageradas, apresentar dados científicos e estatísticas que comprovem os benefícios, falar dos efeitos colaterais, antecipar-se a possíveis questionamentos sugerindo respostas a objeções eventuais.
Em outro trabalho, van Poppel 3assume que o tipo de argumentação que predomina na atividade de produção de folhetos de saúde é a argumentação pragmática, baseada numa relação causal. A ideia implícita nessa forma é a de que alguma ação deveria ser realizada porque apresenta consequências desejáveis ou indesejáveis. Envolve uma declaração sobre as consequências da ação referida no ponto de vista e uma declaração normativa sobre o desejo dessas consequências.
Uma aplicação singular da teoria da argumentação ao campo da medicina é o uso do modelo de Toulmin 13 para análise da correção ou da sensatez dos argumentos clínicos. Horton 4 argumenta que o desenvolvimento por parte dos clínicos da habilidade de raciocinar criticamente é tão ou mais importante do que o uso da medicina baseada em evidências, e que essa habilidade corresponde à capacidade de interrogar um argumento clínico para descobrir seus pontos fracos ou a base de sua validade. Para ele, o modelo de Toulmin permite desenvolver essa capacidade, sendo uma abordagem viável e extremamente útil na gestão das provas ou evidências e na definição do grau de generalização (ou validade externa) das conclusões clínicas.
Horton 4 ilustra a aplicação desse modelo com o diagnóstico de infarto agudo do miocárdio como conclusão. Por intermédio desse caso, identifica os seis elementos estruturais dos argumentos corretos estabelecidos por Toulmin 13 (Figura 1). Um argumento procede desde as bases (ou dados) para a conclusão ou tese. As bases seriam: falta de ar, dor no peito (retroesternal), náuseas e sudorese. A conclusão ou tese é: o diagnóstico mais provável a ser considerado é o de infarto agudo do miocárdio. O terceiro elemento do modelo corresponde à garantia, que é o estabelecimento de uma ponte entre as bases e a conclusão. O que permite passar dos dados para a conclusão ou autorizar o argumento particular? A experiência clínica, juntamente com a educação médica e uma leitura da literatura ensinam que a dor no centro do peito é uma apresentação comum do infarto. Aqui a garantia corresponde rigorosamente à regra de que em geral a dor no centro do peito sugere um infarto. O quarto elemento é representado pelo reforço ou apoio da garantia. O apoio ajuda a estabelecer a garantia, isto é, quão confiável é a evidência usada para autorizar o argumento? Nesse caso: quão confiável é a experiência pessoal, a educação médica e a literatura e pesquisas consultadas? O apoio corresponderia a esses elementos. O qualificador, quinto elemento, representa a força ou o grau de certeza da conclusão: o que mais poderia estar causando essa dor? O sexto elemento corresponde às condições de refutação ou à reserva: um eletrocardiograma normal e enzimas cardíacas sem alterações.
O método de raciocínio prático de Toulmin 13 ajudaria o médico a examinar uma conclusão sobre a gestão do paciente e o significado das descobertas relatadas em um trabalho de pesquisa. Aplicado a uma decisão clínica, esse método de gestão da evidência médica envolve quatro passos simples:
Estabelecer a garantia. Dada a informação disponível sobre o paciente e a conclusão gerada à luz dessa informação: por que eu penso que esta conclusão se justifica? (Experiência? Um estudo publicado?);
Elucidar o reforço ou apoio: quão confiáveis são essas justificativas? Poderiam estar erradas? Eu posso encontrar uma justificativa melhor? (Mediante revisão da literatura?);
Qualificar a conclusão: quão verdadeira é a minha conclusão? Quais as fontes de erro que podem comprometer a sua validade?;
Por último, definir as condições de refutação: que provas ou evidências refutariam ou eliminariam a minha conclusão? Eu posso encontrar tal evidência?
Para Horton 4,27, o processo de interrogar as conclusões e suposições no processo de decisão clínica é parte da “medicina interpretativa”, abordagem que ultrapassaria a medicina baseada em evidências. Para a medicina interpretativa 4, uma declaração escrita ou oral emitida em uma sala de hospital, um relatório médico ou um paper representam peças retóricas. A informação a ser transmitida dessa maneira visa persuadir alguém a considerar ou avalizar o ponto de vista expresso pelo falante ou redator. Dentro desse paradigma, Horton visualiza o médico como um efetivo leitor de textos (registro médico, um trabalho de pesquisa), acrescentando que essa concepção obriga a pensar em como aumentar as habilidades de leitura e avaliação em medicina e a dar mais importância à compreensão dos limites da generalização em nossa experiência clínica e na pesquisa que consultamos. O enfoque de Toulmin 13 ajudaria a prestar mais atenção na forma como a evidência é selecionada, reunida e generalizada para produzir um argumento, colaborando para o julgamento que se estabelece sobre o grau de relevância ou não das evidências. Como as conclusões dependem desse julgamento, o enfoque ajudaria a evitar sérios vieses argumentativos.
Fisher 25 analisa como as decisões sobre o tratamento médico são “negociadas”, especialmente aquelas referidas ao fenômeno das displasias do tecido uterino e ao dilema das histerectomias, que atingiram taxas extremamente elevadas, com casos desnecessários, problemas de custo e médicos secundários. A autora assume que dentro de uma consulta de ginecologia e na área de reprodução humana, médicos e pacientes se envolvem em estratégias de questionamento e que os médicos assumem determinadas formas de apresentação da informação relativas à tomada de decisão sobre alternativas de tratamento. As trocas de informações envolvidas nos atos de interrogar e de fornecer informações correspondem a um tipo de discurso que se configura como uma comunicação estratégica, por estar ligada à finalidade de estabelecer ou escolher uma alternativa de tratamento. O carácter estratégico é definido mais claramente como a tentativa de dirigir a comunicação para uma alternativa específica.
Particularmente interessante é a ideia de que no ato de interrogar, o médico persegue o objetivo de caracterizar o grau de competência do paciente ou a adequação ao modelo do conhecimento médico do tipo de reconhecimento que o paciente faz de sua problemática. Esse nível de competência discursiva estaria ligado a como direcionar estrategicamente a questão da escolha do tratamento. Com os pacientes de menor competência discursiva, não seria tão necessário apresentar todas as alternativas, estando tais pacientes sujeitos a opções mais restritivas, determinadas por uma série de condicionamentos de ordem mais geral, social, organizacional e corporativa. A autora exemplifica com o risco de que os residentes, por causa da necessidade de um treinamento cirúrgico, poderiam tender a forçar uma histerectomia em pacientes pobres, das minorias, com uma menor competência discursiva.
Em relação às estratégias do paciente, a autora argumenta que o paciente interroga em resposta às informações dadas por seus médicos sobre opções de tratamento. Apesar dos constrangimentos estruturais e da competência discursiva do paciente, essas estratégias teriam um potencial para mudar a direção da decisão terapêutica. Assim, seria possível no contexto de uma relação assumidamente assimétrica que o paciente altere uma decisão tendo em conta suas particulares preocupações práticas.
Fisher 25 distingue duas estratégias de fornecimento de informação médica, vinculadas à decisão sobre alternativas de tratamento: estratégias de “apresentação” e “de persuasão”, consideradas mecanismos de negociação. As estratégias de “apresentação” representam situações de “venda mais suave” (de alternativas). Correspondem à decisão mais comum, tendo em vista o argumento médico e o argumento social ou reprodutivo, a que é sugerida como a forma mais “usual” de tratar a doença, sem muitos detalhes, como, por exemplo, com criocirurgia ou congelamento da área afetada. As estratégias persuasivas procuram explicar ou especificar como as informações sobre as decisões terapêuticas deveriam ser interpretadas. Correspondem a situações “mais difíceis”, por exemplo, a negociação de uma histerectomia. A autora cita o exemplo de uma paciente com histórico de problemas de controle de natalidade, com abortos, várias crianças, e restrições econômicas. O médico residente procura promover a alternativa de histerectomia, ainda que não haja evidências de disseminação do câncer, e nem tenha sido feita uma biópsia, argumentando que a remoção do útero significa não se preocupar mais com o controle da natalidade, com hemorragias, etc. No caso de uma estratégia persuasiva, especificam-se as bases sobre as quais deveria assentar uma decisão terapêutica, e nesse processo exploram-se razões que tocam a paciente de perto, especialmente no âmbito emocional e sociocultural.
Todd 28 aplicou uma versão adaptada da teoria dos atos de fala à análise da comunicação inerente à fase de consulta dos programas de contracepção. Assume que a comunicação é um discurso feito predominantemente por certos tipos de atos de fala: perguntas, respostas ou atos reativos, assertivos ou declarativos e diretivos. A autora ignora os atos expressivos e os compromissários 17. A análise que ela faz contém vários níveis, um dos quais se refere à distribuição dos atos de fala proferidos pelo médico e o paciente em duas clínicas, uma privada e outra pública, nos Estados Unidos.
O estudo mostra a assimetria existente em torno da preponderância das perguntas, dos atos diretivos e das afirmações explicativas do médico. O paciente pede pouco, não formula atos diretivos e faz pouquíssimas afirmações. Geralmente, limita-se a responder. No caso do paciente, predominam relativamente as respostas. A contribuição de Fisher e Todd inspira Cerny 29, que também desenvolve pesquisas sobre a distribuição dos atos de fala nas várias fases da consulta, concluindo que a atividade de perguntar é basicamente do médico e que o paciente pergunta muito pouco, o que é indicativo de uma franca assimetria interna. Na fase da investigação diagnóstica e do exame físico, predominam as perguntas do médico e as respostas do paciente, sendo mais de metade do tipo sim ou não. Para a definição do tratamento, aumenta o número de declarações do médico, e os diretivos ocorrem no exame físico e na fase da definição do tratamento, sendo extremamente sucintos. As declarações e os atos diretivos do paciente são muito raros. Uma pequena parte do tempo de consulta é para explicações do médico sobre a saúde do paciente e do problema envolvido.
Uma abordagem pragma-dialética da argumentação 1,2,3,12,19,20,21,22 fornece elementos para o estudo, a crítica e o desenho de formas de prática clínica e sanitária. pois permitiria compensar a assimetria dos saberes ao desenvolver de maneira competente a combinação de aspectos persuasivos e crítico-dialéticos da argumentação característica da comunicação entre profissional-usuário. Essa característica relacionada a contextos de cooperação e de correção normativa 15 exige um modelo pragmático-dialético especialmente capaz de atender a esses requisitos, ou seja, focado na aplicação das regras que podem garantir que a discussão envolvida no discurso médico-paciente seja a mais correta possível.
A abordagem de Toulmin 13 é outro enfoque pragmático interessante porque permite ancorar os argumentos na medicina baseada em evidências e ir além disso para inserir as evidências num processo argumentativo mais amplo que inclui outros componentes como os contextos culturais dos usuários e de outras audiências específicas, que fazem parte do apoio à garantia, o qualificador semântico e a reserva (Figura 1). A justificativa para as decisões de diagnóstico e terapêutica envolve trazer à tona as bases ou evidências que operam como as premissas que mediante as regras (a garantia) permitem reforçar as decisões na linha de uma medicina interpretativa. Essa abordagem tem sido reconhecida 4,27 por sua utilidade na determinação do grau de generalização das conclusões, que depende da definição de diagnósticos diferenciais, de opções de tratamento e de dados de refutação que obrigam a dosar a força das conclusões. Esse componente se correlaciona com a pragma-dialética, como uma justificação baseada no diagnóstico diferencial, em outras opiniões e em possibilidades plurais de intervenção.
O modelo de Toulmin recebe críticas de autores como Habermas 15 e van Eemeren & Grootendorst 30. O primeiro assinala que Toulmin restringe as pretensões de validade aos campos institucionais, rejeitando assim uma orientação universalista, e se limita ao plano lógico dos produtos, desconsiderando a dialética e a retórica; já o segundo considera que Toulmin assume uma orientação predominante retórica, pois no seu modelo os valores de verdade das proposições estariam sancionados pelas crenças, e outros estados intencionais, de uma comunidade que se torna audiência, e que decidiria e permitiria, assim, determinadas inferências e conteúdos argumentais. Em Toulmin, os critérios para avaliar argumentos seriam internos em relação a práticas situadas, cujo modelo é interpretado por alguns autores como um monológo argumentativo cujo objetivo é avaliar o grau de justificação de uma tese em um contexto não necessariamente interativo, constituído por posições dissonantes. Contudo, van Eemeren et al. 31 e Santibañez 18 identificam elementos dialéticos no modelo de Toulmin. A possibilidade do contra-argumento inerente aos modalizadores e às condições de refutação dariam conta de uma orientação dialética. Mais do que isso, a repetição da estrutura argumentativa básica do modelo toulminiano em uma relação entre protagonistas e antagonistas voltada para a busca do argumento mais razoável poderia ser interpretada como um processo dialético. Ou como um diálogo ordenado de argumento e pergunta-objeção entre partes que tentam chegar a consensos por uma argumentação correta. Para nós, assim como a pragma-dialética, o enfoque de Toulmin poderia ser interpretado como um modelo que contém simultaneamente elementos da dialética, da retórica e da lógica, embora seu trabalho tenha sido uma crítica forte à lógica formal, em nome de uma lógica informal ou factual. A última não se restringe aos raciocínios dedutivo e indutivo tradicionais, amplia as formas de raciocínio à luz do que se verifica na comunicação cotidiana, reforça a necessidade das evidências e conteúdos substantivos e se baseia em padrões fáticos histórico-situados em culturas concretas 15,18.
A aproximação desses dois modelos se coaduna com a concepção predominante no campo da teoria da argumentação de que a mesma é inerentemente dialética e engloba também elementos das outras disciplinas do campo: a retórica e a lógica. Portanto, os dois modelos seriam adequados à análise e ao desenho de formas de prática médico-sanitária, uma vez que o raciocínio médico, as formas de comunicação em saúde e a comunicação médico-paciente revelam simultaneamente elementos lógicos, retóricos e dialéticos.
O enfoque de Fisher & Todd 5, Fisher 25 e Todd 28 é importante na identificação e crítica da assimetria, na identificação da articulação entre os contextos sociopolíticos e institucionais e a interação comunicativa que caracteriza essa relação, assim como no aprofundamento das características específicas das estratégias de persuasão amplamente utilizadas pelos médicos. No entanto, a não incorporação de componentes da teoria da argumentação, a redução da comunicação clínica ao exercício de persuasão do paciente, sem considerar outras audiências, bem como um exagero na crítica à medicina vista como perspectiva de poder são aspectos que explicam uma visão negativa, que não apresenta claramente a possibilidade de um processo argumentativo, guiado por regras e pela busca de razoabilidade. Essa leitura desconsidera a possibilidade de um processo argumentativo entre pares (profissionais) que faz parte essencial da justificação das decisões, processo que se perfila numa relação mais simétrica. Ainda que reconhecendo a necessidade de envolver os doentes na negociação de alternativas, essa visão é bastante moderada e cética sobre as chances de um tipo de discurso menos manipulador. Num relativo paradoxo, os autores sugerem um investimento deliberado na melhoria da comunicação, para lidar positivamente com a crise do sistema médico. Na Tabela 1 apresentamos um modelo comparativo dessas três vertentes, considerando a incorporação de elementos da dialética, da retórica e da lógica.
Tabela 1 Elementos comparativos das três correntes analisadas considerando aspectos das disciplinas básicas da teoria da argumentação.
Enfoques | Dialética | Retórica | Lógica |
---|---|---|---|
Pragma-dialética | Consentimento informado. Diagnóstico diferencial através de traços definidores e discriminatórios. Análise de alternativas e respostas a objeções eventuais (sobre alternativas de tratamento). | Adaptação aos vários públicos envolvidos no cuidado médico. Esquema argumentativo de autoridade. | Raciocínio hipotético-dedutivo. Elementos da lógica Informal. |
Toulmin 13 | Qualificadores modais. Reserva. | A argumentação é condicionada institucionalmente. Adaptação dos discursos a essas instituições. | Predomínio da lógica informal. Crítica à lógica formal. |
Fisher & Todd 5 | As decisões sobre tratamento são em parte negociadas. | Presença expressiva de estratégias persuasivas. A assimetria referente aos atos de fala faz da relação médico-paciente uma comunicação estratégica. | Não aborda explicitamente a lógica como disciplina da argumentação. |
Compreender o discurso médico-paciente como um processo em que se levantam várias pretensões de validade, no sentido habermasiano 15, nos parece promissor. Assim sendo, na concepção pragmática da linguagem, há pretensões de verdade que se referem ao mundo objetivo (teoria dos germes, medicina por evidências); pretensões de correção normativa pertinentes ao mundo social (ética médica, consentimento informado, cooperação, confiança) e pretensões de sinceridade referentes ao mundo subjetivo (procurar convencer sem utilizar enganos ou manobras estratégicas etc.). Importante ressaltar que as diferentes pretensões levantadas se articulam dialeticamente na ação comunicativa que se refere simultaneamente aos três mundos e engloba todos os participantes da interação, considerando os usuários 11. Embora, em relação às pretensões de verdade relativas à medicina dos corpos, a comunicação médico-paciente não seja uma relação de igualdade de oportunidades discursivas, essa assimetria pode, todavia, diminuir em função da educação, da circulação da informação médica, do desenvolvimento cultural, da evolução médica influenciada pela pressão dos usuários mais exigentes 11,21,22. É importante frisar, ainda que, no contexto normativo construído historicamente, a autoridade médica é legitima, assim como o direito do paciente a segundas opiniões, a informação clara e correta. No acolhimento ao paciente, por exemplo, operam em geral equipes de profissionais especialistas, que mantêm entre si uma relação simétrica típica de um discurso teórico voltado para a precisão do diagnóstico e eventualmente de alternativas terapêuticas. Apesar dessa assimetria básica, a comunicação médico-paciente pode cumprir os requisitos inerentes às outras pretensões, à correção normativa e à autenticidade. A relação pode ser genuína e pode se apoiar em um corpo normativo que institucionalmente consagre o direito à saúde e às informações necessárias para tomada de decisão que envolve o paciente deliberadamente. É possível uma relação a mais correta possível, com base em considerações éticas, não obstante a assimetria e apreensão desigual do conhecimento médico. Essa visão permite uma aproximação à comunicação médico-paciente que está a meio caminho entre a comunicação pura e o discurso argumentativo puro, como um equivalente da crítica terapêutica, talvez mais modesto, problematizando contextos de poder e assimetrias 11.
A pragma-dialética e o modelo de Toulmin permitem visualizar traços de processos dialéticos que fazem da comunicação médico-paciente algo mais rico do que o simples exercício do poder institucional médico. A dialética 15 é um procedimento argumentativo que corresponde a uma interação regulamentada, correta e sincera, de tematização de pretensões ou pontos de vista, implicando uma atitude hipotética e na utilização de razões e evidências, possibilitando a crítica a falácias ou modos distorcidos de comunicação.