versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.39 no.2 São Paulo abr./jun. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170033
A doença renal crônica (DRC) está sabidamente associada a alta morbimortalidade cardiovascular.1,2 A cardiopatia urêmica possui uma evolução acelerada e grave, seguindo um padrão diferente da população geral. De acordo com o banco de dados norte-americano United States Renal Data System (USRDS), a causa principal de morte entre os pacientes com DRC dialítica está relacionada com distúrbios do ritmo cardíaco (Figura 1).3 Embora este seja um assunto de especial relevância, pouco se sabe sobre o impacto e o manejo das arritmias ventriculares na população com DRC. O objetivo desse trabalho foi revisar a literatura sobre as arritmias ventriculares em pacientes com DRC.
Figura 1 Causas de morte em pacientes com DRC dialítica. A parada cardíaca súbita secundária aos distúrbios arrítmicos é a principal etiologia das mortes nestes pacientes. IAM: infarto agudo do miocárdio; IC: insuficiência cardíaca; AVC: acidente vascular cerebral. Dados obtidos do banco de dados norte-americano (United States Renal Data System).3
Extrassístole ventricular é a atividade ectópica prematura originada nos ventrículos. Quando ocorrem três ou mais complexos ventriculares consecutivos com frequência cardíaca superior a 100 bpm e duração inferior a 30 segundos, chamamos de taquicardia ventricular (TV) não sustentada. A TV é dita sustentada quando dura mais que 30 segundos, produz síncope ou parada cardíaca, ou necessita de cardioversão ou choque do cardiodesfibrilador implantável (CDI).4
Quando a TV é polimórfica, possui diferentes padrões de QRS, sugerindo ativações ventriculares em focos variados. Neste caso, a isquemia miocárdica é uma causa importante. A taquicardia ventricular monomórfica possui a mesma configuração do QRS a cada batimento. Em geral, origina-se de um foco único ou de um substrato anatômico (cicatriz de infarto, cardiomiopatia, cirurgia cardíaca prévia, etc.), sendo causada por reentrada.4
A fibrilação ventricular é identificada pela ausência de onda P associada a complexos QRS mal formados, com morfologias marcadamente diferentes, variadas amplitudes e eixos. O ritmo é irregular, usualmente maior que 300 batimentos por minuto, levando à parada cardíaca.5
A morte súbita é definida como "morte inesperada, que ocorre subitamente, em um intervalo menor que uma hora a partir do início dos sintomas".6 Outra definição é a "morte não testemunhada e inesperada, na ausência de uma causa não cardíaca conhecida, que ocorra em pacientes que estavam bem nas últimas 24 horas".6 Em cerca de 50% dos casos, a morte súbita na população geral ocorre por taquicardia ventricular sustentada e por fibrilação ventricular.7 Nos pacientes com DRC, não se sabe ao certo o ritmo eletrocardiográfico final causador da parada cardíaca, embora se tenha indícios de que as taquiarritmias tenham um papel importante.8
Poucos estudos investigaram a ocorrência de arritmia ventricular em pacientes com DRC nos seus diferentes estágios. Estudos que utilizaram monitoração eletrocardiográfica com Holter em pacientes dialíticos confirmam a alta prevalência de arritmias ventriculares nesta população, variando de 19% a 72%.9-12 Dados publicados pelo nosso grupo demonstraram que a frequência de arritmia ventricular foi de 35% em pacientes em tratamento conservador,13 45% daqueles em diálise peritoneal,14 48% em pacientes em hemodiálise,15 e de 30% entre os receptores de transplante renal.16
Ainda não se sabe qual o impacto da presença de arritmia ventricular assintomática nos desfechos clínicos na população com DRC, especialmente sobre o risco de morte súbita. Dados do nosso grupo apontam que as arritmias ventriculares complexas aumentam o risco de eventos cardiovasculares, hospitalização e morte nesta população.17
Outro estudo retrospectivo com 75 pacientes em hemodiálise portadores de cardiodesfibrilador implantável também mostrou que as taquiarritmias ventriculares foram responsáveis por 79% dos eventos de parada cardíaca, sugerindo que as arritmias possam ser o evento final mais importante nesta população.8 Por outro lado, um estudo australiano com pacientes portadores de DRC predominantemente idosos aponta para a bradicardia ou a assistolia como os maiores contribuintes para a morte súbita em pacientes em hemodiálise.18 O tipo de arritmia e o evento terminal podem ser diferentes de acordo com a idade, a gravidade da cardiopatia de base e o tempo em diálise.
Para a ocorrência de arritmias ventriculares, são necessários um miocárdio vulnerável e um gatilho. Em indivíduos com função renal normal, a isquemia pela rotura de placa de ateroma, ou uma cicatriz focal no miocárdio ou ainda a disfunção sistólica são os substratos mais frequentes para a ocorrência de uma arritmia fatal.7
Esta realidade parece ser mais complexa entre os pacientes com DRC.19 A maior susceptibilidade para arritmias ventriculares nessa população parece relacionar-se às alterações metabólicas e da estrutura cardíaca causadas diretamente pela DRC20,21 (Figura 2).
Figura 2 Fisiopatologia das arritmias ventriculares nos pacientes com doença renal crônica (DRC). As alterações cardíacas musculares e vasculares secundárias a DRC levam à instabilidade elétrica do miocárdio e tornam esses pacientes susceptíveis ao desencadeamento de arritmias após gatilhos próprios ou externos.
Estudos eletrofisiológicos experimentais mostram que ratos portadores de DRC apresentam peculiaridades cardíacas arritmogênicas, como prolongamento do potencial de ação, maior instabilidade elétrica, despolarizações precoces frequentes, além de maior sensibilidade à indução de fibrilação ventricular. Há ainda alteração na homeostase celular do cálcio, com redução de seu conteúdo no retículo sarcoplasmático.22
Um estudo recente mostrou que o indoxyl-sulfato tem efeito arritmogênico em cardiomiócitos in vitro e indicou uma associação independente entre os valores desta toxina com o prolongamento do intervalo QT em pacientes com DRC em tratamento conservador.23
O FGF 23 também é uma toxina urêmica alvo de muitos estudos recentes, sendo causa de hipertrofia ventricular esquerda e preditor independente de eventos cardiovasculares, progressão de DRC e morte por todas as causas na população com DRC.24 Deo et al.25 mostraram que esta fosfatonina não está independentemente associada a arritmias fatais nesta população.5
Por outro lado, uma recente análise pos hoc do estudo EVOLVE mostrou que a redução do FGF23 com o uso do cinacalcete é capaz de reduzir o risco de morte súbita.24 Neste estudo, não foi possível discernir se o efeito benéfico é diretamente relacionado à redução do FGF 23 ou indireto, por outros efeitos da droga.
Ainda no contexto dos distúrbios minerais e ósseos, o PTH também tem papel importante. A elevação deste hormônio está independentemente associada à ocorrência de morte súbita na população com DRC, especialmente quando em nível superior a 495 pg/ml.26 O risco parece aumentar quando ocorre associação com a deficiência de vitamina D.27 Tal carência também é um fator de risco independente para morte súbita em pacientes diabéticos em hemodiálise.28 O mecanismo fisiopatológico destas associações pode estar relacionado à hipertrofia ventricular esquerda e à calcificação vascular, que tornam o miocárdio vulnerável à ocorrência de arritmias.
Na população geral, pacientes com evidência eletrocardiográfica de hipertrofia ventricular esquerda (HVE) apresentam maior prevalência, complexidade e gravidade de arritmias ventriculares.29 Na população com DRC, a HVE é a complicação cardiovascular mais comum.30 Sua fisiopatologia envolve fatores hemodinâmicos, como: hipertensão arterial, hipervolemia, hiperatividade simpática e ativação inapropriada dos sistemas endotelina e renina-angiotensina. Somam-se a eles os fatores não hemodinâmicos, como anemia, inflamação e o distúrbio mineral e ósseo.30
Os níveis elevados de fósforo, PTH e FGF23 contribuem não só para a hipertrofia, mas também para a fibrose miocárdica. Esta é agravada pela isquemia não aterosclerótica causada pela desproporção entre o número de fibras musculares cardíacas e a densidade dos capilares.31 A consequência da fibrose é a disfunção diastólica do ventrículo esquerdo. O aumento do número dos cardiomiócitos, as traves fibróticas e o desarranjo das fibras musculares elevam a instabilidade elétrica do miocárdio e predispõem o aparecimento das arritmias.15,16,32
A associação de fração de ejeção baixa com arritmias fatais também já foi demonstrada nos pacientes com DRC.11,32 Uma coorte chinesa de pacientes em diálise peritoneal mostrou que a disfunção sistólica é o fator preditor de morte súbita mais importante nesta população. O aumento prolongado da pré-carga e da pós-carga, a demanda excessiva de oxigênio e a consequente morte de cardiomiócitos levam ao processo adaptativo conhecido como remodelamento cardíaco, com dilatação das câmaras e redução da sua contratilidade.33 A fração de ejeção de ventrículo esquerdo mais baixa parece predispor à instabilidade elétrica e a arritmia ventricular por meio da ativação simpática neuro-humoral, o que explicaria o mecanismo fisiopatológico da associação entre disfunção sistólica e arritmias ventriculares.32
Outro fator que funciona como substrato e como gatilho para as arritmias nos pacientes com DRC é a doença macrovascular, que se desenvolve rapidamente nestes pacientes.34 Em pacientes com DRC, o ambiente inflamatório acelera a disfunção endotelial e o processo aterosclerótico,35,36 principalmente nos pacientes em diálise.37 O fósforo elevado contribui para a calcificação das placas ateroscleróticas da camada íntima e também da camada média dos vasos, promovendo um envelhecimento vascular acelerado. Pacientes com PO4 maior de 6,5 mg/dl apresentam um risco de morte súbita 20% maior que aqueles com PO4 entre 2,4-6,5 mg/dl, o que pode estar relacionado à calcificação do sistema de condução cardíaco e a própria calcificação vascular.26
A relação entre calcificação coronariana e aumento da mortalidade cardiovascular em pacientes com DRC está bem documentada pelo nosso grupo e por outros pesquisadores.38-40 Acredita-se que a calcificação vascular tenha o seu papel na fisiopatologia de arritmias ventriculares nesta população. Em um estudo com pacientes portadores de DRC estágios 4 e 5D, Di Iorio et al.41 demonstraram que a progressão da calcificação em coronárias foi determinante independente do prolongamento do intervalo QT, que é sabidamente um fator de risco para arritmias ventriculares fatais. Outros mecanismos possivelmente envolvidos são o prejuízo da vasodilatação em coronárias e o aumento da pós-carga por calcificação da aorta,40,42,43 que leva a despolarizações espontâneas do ventrículo (feed back mecano-elétrico).44
Na vigência de tantos substratos anatômicos em pacientes com DRC, os distúrbios eletrolíticos tornam-se importantes gatilhos para a ocorrência arritmias. Em modelos experimentais e clínicos, os distúrbios do potássio, cálcio e magnésio são capazes de desencadear arritmias, possivelmente devido ao desequilíbrio entre as concentrações iônicas dos meios intra e extracelulares.45
Os distúrbios do potássio têm especial importância, devido a sua alta frequência nos pacientes com DRC. A hipercalemia está associada com alterações eletrocardiográficas sequenciais, como: onda T alta e apiculada, intervalo QT curto, alargamento do intervalo PR e do QRS, desaparecimento da onda P e, finalmente, ritmos idioventriculares com padrão sinusoidal.
A redução excessiva da duração do potencial de ação pode favorecer arritmias por reentrada em condições de condução lentificada. O somatório da hipercalemia com hipocalcemia, hiperfosfatemia e hipo ou hipermagnesemia pode ter efeitos adjuvantes no desencadeamento de arritmias nesses pacientes.46
Nos pacientes com DRC dialítica, as arritmias ventriculares ocorrem mais frequentemente após o período interdialítico mais longo (segundas e terças-feiras). Acredita-se que a sessão de diálise desencadeie o processo arrítmico devido à instabilidade da pressão arterial, e desequilíbrio hidroeletrolítico e ácido básico.47
A hiperatividade adrenérgica também parece ter importância na fisiopatologia das arritmias em pacientes com DRC dialítica. Estudos em humanos mostram que a DRC aumenta a frequência de descarga adrenérgica pelo sistema nervoso simpático, mediada por vias nervosas aferentes renais.47 O aumento do tônus autonômico predispõe à elevação do número de extrassístoles e está associado com aumento da mortalidade, do risco de eventos cardiovasculares e de morte súbita em pacientes com DRC.11,48
As arritmias ventriculares podem apresentar-se clinicamente com palpitações, pré-síncope, síncope ou precordialgia.4 A maioria das vítimas de arritmias cardíacas apresenta doença estrutural do coração. Muitas vezes, a doença de base não é reconhecida e a morte súbita acaba sendo a primeira manifestação. Por esta razão, o acesso ao risco de morte súbita deve ser obtido por meio de dados clínicos e exames complementares.
O eletrocardiograma (ECG) é um método importante de rastreamento, sendo mais valioso durante o sintoma. Quando o paciente é assintomático, o ECG pode ser a primeira indicação de doença estrutural cardíaca subjacente.
O ECG realizado por 24 horas (Holter) aumenta em mais de 10x as chances de detecção dos episódios arrítmicos.49 Pode evidenciar outros marcadores de risco não invasivos, como: taquicardia ventricular monomórfica não sustentada, redução da variabilidade da frequência cardíaca, presença de potenciais miocárdicos tardios e alternância de onda T.4
A análise da variação da frequência cardíaca é uma forma de acessar a função do sistema nervoso autônomo. A redução desta variabilidade é preditora de ativação adrenérgica e aumenta o risco de morte súbita na população geral e nos indivíduos em hemodiálise.50
As detecções de anormalidades da repolarização e do intervalo QT também são importantes. Na DRC dialítica, a síndrome do intervalo QT longo adquirida é altamente prevalente, podendo ser mecanismo de morte súbita.51,52 Por outro lado, a hipercalcemia, a hipercalemia e a intoxicação digitálica, comuns em pacientes com DRC, podem encurtar o intervalo QT.53 Esta alteração também aumenta sabidamente o risco de taquicardia ventricular polimórfica e morte súbita.4
A dispersão do intervalo QT, caracterizada pela alternância entre as derivações do eletrocardiograma, reflete as diferenças regionais no tempo de recuperação ventricular. Esse achado tem sido vinculado à ocorrência de arritmias ventriculares malignas em diferentes tipos de cardiopatia. Lorincz et al.52 mostraram que a hemodiálise aumenta a dispersão do intervalo QT em pacientes com DRC.2 Talvez, esta característica reflita uma repolarização heterogênea das diferentes regiões ventriculares durante a hemodiálise, predispondo à ocorrência de arritmias.
A obtenção do ecocardiograma ajuda para investigação de doença estrutural cardíaca, principalmente a disfunção sistólica, considerada o principal marcador de risco para arritmias na população geral.4 Nos pacientes dialíticos, o exame deve ser realizado preferencialmente em dia sem sessão de hemodiálise e com o indivíduo no peso seco, pois as flutuações hemodinâmicas podem afetar os achados ecocardiográficos.54
A ressonância cardíaca é uma boa opção para avaliação de fibrose miocárdica e hipertrofia ventricular esquerda. Já a angiorressonância pode ajudar na detecção de cicatrizes cardíacas, que é o substrato mais comum nos casos de taquicardia ventricular monomórfica sustentada.4 Nos pacientes com DRC, a angiorressonância deverá ser realizada sem gadolíneo, devido ao risco de fibrose sistêmica nefrogênica.55 O custo elevado restringe seu uso rotineiro.56
A detecção de doença arterial coronariana também é relevante, dada a sua alta prevalência em pacientes com DRC. Tanto o ecocardiograma sob stress com dobutamina quanto a cintilografia miocárdica possuem moderada sensibilidade e especificidade (75-90%) para detecção de coronariopatia obstrutiva em pacientes com DRC. A coronariografia é o padrão ouro, mas carreia o risco de nefropatia por contraste nos pacientes não dialíticos. Deve ser reservada para os pacientes sob alto risco de síndrome coronariana aguda e naqueles que possam se beneficiar da terapia de revascularização.57
O tratamento das arritmias envolve, inicialmente, a correção de fatores modificáveis, como: retirada de drogas alargadoras do intervalo QT (claritromicina, clorpromazina, haloperidol, amiodarona, procainamida, etc.), ajuste de alterações metabólicas e eletrolíticas, suspensão de estimulantes do sistema nervoso simpático (como cafeína e análogos da anfetamina).4
Nos pacientes em hemodiálise, uma opção terapêutica é a adequação do banho de diálise. Quando o potássio sérico for menor que 4,0 mg/dl, a reposição de potássio no banho deve ser realizada. O aumento do potássio no banho reduz a ectopia ventricular e aumenta os níveis séricos basais de potássio desses pacientes, contribuindo para a redução no intervalo QT e de sua dispersão durante a diálise.11
A utilização de banhos com potássio < 2 mEq/l está associada ao aumento do risco de morte súbita e deve ser abolida.58 Evitar o uso de banho de cálcio < 2,5 mEq/l também parece reduzir o risco de arritmias fatais.59 Outras possíveis medidas incluem o controle do ganho de peso interdialítico, reduzir a temperatura do banho de diálise e, possivelmente, utilizar as modalidades de hemodiálise intensiva.60
Múltiplos ensaios mostram que estratégia de realização de diálise frequente ou prolongada (noturna) reduz a massa ventricular esquerda e melhora o ritmo cardíaco. Estudos observacionais indicam ainda que a hemodiálise diária associa-se com menor risco de morte cardiovascular e de hospitalização. A explicação para esses achados pode estar na menor ativação neuro-humoral e menor translocação de eletrólitos, com maior estabilidade do miocárdio.61
A reperfusão coronariana, o uso de inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA), bloqueadores do receptor de angiotensina II (BRA), antagonistas da aldosterona e betabloqueadores reduzem o risco de morte súbita após infarto agudo do miocárdio na população geral.4 Os benefícios cardiovasculares destas drogas também têm sido estudados em pacientes com DRC, com resultados variáveis, especialmente devido ao risco aumentado de hipercalemia nesta população.62-64 Nenhum desses estudos analisou especificamente o impacto das drogas descritas nas arritmias ventriculares de pacientes com DRC.
Muitas arritmias são provocadas ou agravadas pela estimulação simpática e respondem favoravelmente aos betabloqueadores. Essas drogas são consideradas de primeira linha para a maioria das arritmias ventriculares sintomáticas, embora tenham menor eficácia nas arritmias relacionadas com doença cardíaca estrutural.4 Nos pacientes com DRC, um ensaio randomizado com o carvedilol mostrou aumento na sobrevida de pacientes em hemodiálise portadores de cardiopatia.11 Também há descrição de aumento da sobrevida após parada cardíaca em pacientes em hemodiálise em uso de betabloqueador.65 No entanto, uma análise secundária do estudo "HEMO" não comprovou que estas drogas reduzam o risco de arritmias fatais.66
O uso de estatinas parece reduzir o risco de eventos cardiovasculares e morte nos pacientes com DRC em tratamento conservador.67 No entanto, o efeito benéfico das estatinas ainda é discutível na população em diálise68 e nos pacientes transplantados.69
As drogas antiarrítmicas possuem papéis importantes na redução das arritmias sintomáticas e dos disparos de choques do CDI na população geral.4 Aquelas que bloqueiam a ativação da membrana através dos canais iônicos cardíacos (exemplo: propafenona, sotalol, quinidina, etc.) possuem toxicidade elevada e podem agravar as arritmias, especialmente nos pacientes com DRC. No caso da propafenona, a redução da função renal contribui para o acúmulo de N-acetil-procainamida, um metabólito tóxico, potencialmente arritmogênico.70
Devem-se ajustar as doses das seguintes medicações de acordo com a função renal: digoxina, procainamida, atenolol e sotalol (Tabela 1). O carvedilol não necessita ser ajustado, mas a progressão da dose deve ser lenta e cautelosa principalmente em indivíduos idosos. Outros agentes (como: amiodarona, flecainamida e metoprolol) podem ser utilizados em doses normais nos pacientes com DRC.46,70 Em relação à amiodarona, deve-se estar atento para sinais de toxicidade na tireoide, pulmões, fígado e sistema nervoso. Ela é contraindicada nos pacientes com fração de ejeção do ventrículo esquerdo menor que 35% por aumentar a mortalidade, especialmente se a classe funcional for III ou maior.4
Tabela 1 Ajuste de doses da digoxina e das drogas anti-arrítmicas, de acordo com a função renal
Digoxina | ClCr > 50 mL/minuto: Não necessita ajuste. |
ClCr 10 to 50 mL/minuto: 0,0625 mg a cada 24 a 36 horas | |
ClCr < 10 mL/minuto: 0,0625 mg a cada 48 horas | |
Hemodiálise: Não dialisável. 0,0625 mg a cada 48 horas | |
Diálise Peritoneal: 0,0625 mg a cada 48 horas | |
Procainamida | ClCr > 50 mL/minuto: Não necessita ajuste. |
ClCr 10 to 50 mL/minuto: Redução da dose inicial diária em 25% a 50% | |
ClCr < 10 mL/minuto: Redução da dose inicial diária para 50% a 75%. Monitorar a concentração de procainamida. | |
Hemodiálise: Moderadamente dialisável (20% a 50%); Monitorar a concentração de procainamida; suplementação pode ser necessária. | |
Diálise Peritoneal: Não é dialisável por via peritoneal. | |
Atenolol | ClCr > 35 mL/minuto: Não necessita ajuste. |
ClCr 15 to 35 mL/minuto: Dose máxima: 50 mg ao dia | |
ClCr < 15 mL/minuto: Dose máxima: 25 mg ao dia | |
Hemodiálise: Moderadamente dialisável (20% a 50%); administrar dose pós-dialise ou administrar 25 a 50 mg de dose suplementar. | |
Diálise Peritoneal: Não é dialisável por via peritoneal. | |
Sotalol | Os aumentos na dose em pacientes com insuficiência renal deverão ser feitos após pelo menos 5 a 6 doses, em intervalos apropriados |
ClCr > 60 mL/minuto: Administrar a cada 12 horas. | |
ClCr 40 to 60 mL/minuto: Administrar a cada 24 horas. | |
ClCr < 40 mL/minuto: Uso contraindicado. | |
Hemodiálise: Uso contraindicado | |
Diálise Peritoneal: Uso contraindicado |
ClCr = Clearance de Creatinina.
A digoxina é droga de excreção renal e possui janela terapêutica estreita, por isso, a redução da dose é essencial nos pacientes com DRC. O acúmulo e a consequente toxicidade da digoxina podem levar à mesma arritmia que droga é proposta a evitar. Eletrocardiogramas regulares e o monitoramento da concentração da digoxina estão recomendados nesses pacientes.70
O cardiodesfibrilador implantável (CDI) é utilizado para o tratamento preventivo primário e secundário na população geral de alto risco, com função renal preservada. Para o implante, o indivíduo deve ter boa capacidade funcional e expectativa de vida de pelo menos um ano. Ele é eficaz em reverter os episódios de taquicardia ventricular e fibrilação ventricular, reduzindo a mortalidade destes pacientes.4
Nos pacientes com DRC, o papel do CDI na prevenção de morte súbita é controverso. Uma metanálise recente com pacientes portadores de DRC não dialítica mostrou que o impacto do implante de CDI para prevenção primária de morte súbita depende da função renal basal, com redução do benefício na medida em que a taxa de filtração glomerular cai.71 Nos pacientes dialíticos, vários autores mostraram alta mortalidade e maior risco de complicações com o implante de CDI. Embora estes pacientes tenham maior incidência de fibrilação ventricular e maior frequência de disparos de choques pelo dispositivo, os desfechos de sobrevida na prevenção primária são insatisfatórios. Para prevenção secundária, parece haver algum benefício,72 mas não existem diretrizes que mostrem quais pacientes com DRC que devem receber a terapia.
Vale ressaltar que a mortalidade anual em pacientes dialíticos com CDI entre 1994 e 2006 foi de 44,8% nos Estados Unidos, sendo que a maioria das mortes foi atribuída às causas cardiovasculares. As taxas de infecção pós-implante foram altas, principalmente no primeiro ano (988 eventos/1000 pacientes-ano), embora a maioria das infecções não estivesse relacionada ao CDI.73 A inserção de dispositivos cardíacos transvenosos pode ainda levar à estenose de veias centrais, o que afeta adversamente a maturação e preservação das fístulas arteriovenosas para hemodiálise.74
A ablação por cateter possui eficácia e risco de complicações dependentes do sítio de origem da taquicardia ventricular, da doença cardíaca associada, da habilidade e da experiência do operador. As complicações incluem tamponamento, acidente vascular cerebral, bloqueios cardíacos e, frequentemente, complicações do acesso vascular.4 Nos pacientes com DRC, a experiência com a ablação para controle de arritmia ventricular é limitada. Não encontramos estudos que tenham avaliado a taxa de sucesso e de complicações da ablação nesta população.
Novos estudos com ênfase no manejo clínico das arritmias em pacientes com DRC são necessários, pois os resultados com as drogas cardioprotetoras e antiarrítmicas e com a terapêutica invasiva atualmente disponíveis são insatisfatórios. Existem drogas em investigação, como os análogos do carvedilol, que são promissores nas arritmias desencadeadas por hipercalcemia, nas taquicardias catecolaminérgicas e naquelas relacionadas à insuficiência cardíaca.75
Há uma tendência no desenvolvimento de cardiodesfibriladores mais modernos, dotados de melhor eficácia e segurança, como os dispositivos subcutâneos e externos. Tais modalidades evitarão as complicações vasculares e minimizarão os riscos de infecção, sendo promissores na população com DRC. No futuro, teremos ainda dispositivos capazes de aferir as pressões intracardíacas, podendo ajudar na detecção precoce da deterioração da função cardíaca. Tal avanço permitirá a terapia baseada no efeito hemodinâmico da arritmia, evitando choques em arritmias bem toleradas.
Enquanto tais tecnologias ainda não estão disponíveis, o manejo da arritmia ventricular nos pacientes com DRC deve ter como foco inicial a estratificação de risco e a prevenção. Deve-se ter atenção aos fatores de risco modificáveis e ao tratamento das comorbidades relacionadas ao desenvolvimento de alterações cardíacas estruturais, como hipertensão, hipervolemia, distúrbio mineral ósseo e anemia. O objetivo final com todas estas medidas é reduzir o risco de arritmias e, consequentemente, de morte súbita, principal causa de óbito nesta população.