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As epidemias nas notícias em Portugal: cólera, peste, tifo, gripe e varíola, 1854-1918

As epidemias nas notícias em Portugal: cólera, peste, tifo, gripe e varíola, 1854-1918

Autores:

Maria Antónia Pires de Almeida

ARTIGO ORIGINAL

História, Ciências, Saúde-Manguinhos

versão impressa ISSN 0104-5970

Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.21 no.2 Rio de Janeiro abr./jun. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702014000200012

ABSTRACT

In severe health crisis like those of 1854-1856, 1899 and 1918, especially in Porto, where cholera morbus, the bubonic plague, typhus fever, pneumonic influenza and smallpox killed high percentages of the population, the images of the epidemics in the press enable us to identify the scientific knowledge in a country considered peripheral, but which had studies and personnel specialized at the most advanced levels for the time. A database of 6,700 news items and announcements reveals the medical and pharmaceutical knowledge of the second half of the nineteenth and early twentieth centuries, the way it was transmitted and disclosed to the public and the solutions offered by the health authorities. Hygiene was consistently highlighted in the news and announcements.

Key words: epidemics; medicine; hygiene; news; Portugal

Em períodos de crises sanitárias graves como as que ocorreram em 1855, 1899 e 1918, especialmente no Porto, onde percentagens elevadas da população foram vítimas fatais de cólera-morbo, peste bubónica, tifo exantemático e gripe pneumónica, as imagens das epidemias na imprensa permitem-nos ter acesso ao estado dos conhecimentos científicos em Portugal. Uma base de dados de mais de 6.700 notícias, artigos e anúncios dá-nos a possibilidade de desenvolver os temas do conhecimento científico médico e farmacêutico da segunda metade do século XIX e início do XX, o modo como era transmitido e divulgado ao público, as preocupações suscitadas em períodos de crises sanitárias e as soluções apresentadas pelos médicos e pelas autoridades sanitárias.

Este trabalho apresenta os resultados da investigação sobre a divulgação da ciência e da tecnologia a um público não especializado, seguindo o modelo da popularização da ciência já desenvolvido na Europa e nos EUA (Bauer, Bucchi, 2007; Bauer, 2009). Não esquecendo que o processo do conhecimento envolve a comunicação (Topham, 2009), que os conceitos de “ciência” e de “público” foram socialmente construídos pelos historiadores (Bensaude-Vincent, 2009), e que esses estudos se integram numa mais vasta e interdisciplinar história do conhecimento público, que deve ser enriquecida com trabalhos práticos e novas linhas de investigação (Daum, 2009), o principal objetivo deste artigo é analisar o modo como o conhecimento científico chegava ao cidadão comum, utilizando a imprensa generalista como fonte principal e veículo de divulgação do repertório cognitivo da época. Tendo em conta o acesso limitado à escrita por parte da maioria da população portuguesa, numa altura em que os níveis de analfabetismo de pessoas com mais de seis anos eram calculados em cerca de 80% em 1878 (Cascão, 2011b), pode, contudo, afirmar-se que a leitura da imprensa aumentou consideravelmente ao longo do século XIX e início do XX, contribuindo para a formação de audiências interessadas e das representações que a sociedade tinha do conhecimento em geral e da ciência em particular. Não só a leitura direta, mas a leitura oral e coletiva em espaços privados e públicos de sociabilidade, como as tabernas e os mercados, ou mesmo sua divulgação pelos padres na missa do domingo, o que permite estimar uma audiência superior à tiragem dos periódicos (Belo, 2001).

Os temas da saúde e da higiene surgiram como o principal fator de interesse por se sobreporem a todos os outros, ocupando uma maioria significativa de 64% no conjunto das notícias e anúncios recolhidos sobre ciência e tecnologia, abrangendo tanto os períodos de epidemia declarada como os outros de relativa normalidade no nível sanitário. Nesse caso são salientados os períodos de epidemia declarada por constituírem não só oportunidades únicas para a observação das sociedades e dos momentos históricos (Rosenberg, 1987), mas também para a recolha privilegiada dos conhecimentos médicos e farmacêuticos das respetivas épocas, contribuindo com dados úteis para a história da medicina e da farmácia em Portugal e respondendo a algumas questões sobre o modo como as suas práticas foram introduzidas na vida diária das famílias e da sociedade.

A trajetória de longa duração dos principais periódicos escolhidos permite uma continuidade na investigação que nos forneceu material para a produção de uma análise comparativa do tema entre meados do século XIX e o início do XX. Considerando como hipótese a intenção explícita da imprensa do século XIX em formar audiências e espalhar o conhecimento, utilizam-se as notícias, artigos desenvolvidos e anúncios sobre as epidemias de cólera de 1853-1856 e de 1865, de peste bubónica em 1899 e de tifo exantemático, gripe pneumónica e varíola de 1918 como exemplos para avaliar os conhecimentos científicos da época, especialmente sobre prevenção e tratamento, e o modo como eram divulgados e usados pela sociedade e pelas autoridades para colocar em vigor medidas de controlo e eliminação das doenças. Em períodos de crise sanitária grave como os referidos, especialmente no Porto onde altas percentagens da população foram afetadas, as imagens das epidemias na imprensa, os comentários, as citações de outros jornais nacionais e internacionais, assim como de livros e revistas científicas, permitem-nos aferir a posição de Portugal, um país considerado periférico, e a dos seus cientistas e especialistas nas mais diversas áreas, entre os restantes países europeus. Verifica-se que o país dispunha de tantos conhecimentos e pessoal especializado como os países mais avançados da sua época (Bastos, Barreto, 2011). Por exemplo, o médico Bernardino António Gomes (1768-1823), pelos seus trabalhos de “controlo da doença no sentido da sua prevenção”, pode ser colocado no nível de Pasteur, Koch e Roux, que “desenvolveram a farmacoterapia e recorreram ao experimentalismo e contribuíram para uma nova ordem cognitiva e terapêutica” (Pereira, Pita, 1993, p.662). Assim como mais tarde Câmara Pestana e Ricardo Jorge, cujos trabalhos nas áreas da higiene e epidemiologia foram reconhecidos e elogiados em nível nacional pelos seus pares e pelo poder político, e também no nível internacional (Almeida, 2011c, 2011d). Todos esses médicos revelaram que o estado da ciência médica em Portugal estava no nível do das maiores potências científicas da sua época, com os seus protagonistas a dialogarem em pé de igualdade com os interlocutores estrangeiros que se deslocaram a Portugal para estudar as epidemias, e nas conferências sanitárias internacionais realizadas ao longo do século XIX para discutir as medidas de combate às mesmas. Na sua maioria tiveram formação científica nas instituições universitárias portuguesas da sua época, realizaram viagens de investigação, publicaram no estrangeiro e em francês (para além do português), dirigiram institutos e foram promotores de uma política sanitária que deu frutos para o futuro. E, pelo seu valor e percurso científico, foram nomeados para os mais altos cargos de combate às epidemias e às doenças endémicas em geral.

No entanto, têm de se destacar as diferenças entre os centros urbanos de Lisboa, Porto e Coimbra, onde se reuniam as melhores condições hospitalares e de especialistas que existiam na época, e as zonas rurais, onde as condições médicas e sanitárias eram consideravelmente insuficientes em pessoal e recursos. Tal como no presente, o acesso aos melhores cuidados de saúde era garantido nos hospitais centrais, ao mesmo tempo que os médicos não queriam ir para a província, onde havia carências escandalosas, preferindo ficar nas grandes cidades, onde as condições eram mais favoráveis para o desenvolvimento das respetivas carreiras e os salários mais altos, o que deu origem a um debate interessante nos jornais. Por exemplo, em 1855 foi defendido que se formassem profissionais médicos de nível médio para irem para a província, com “um curso médico-cirúrgico onde se ensinem as disciplinas indispensáveis a formar bons práticos”, diminuindo o custo da formação, pois “a arte torna-se cada vez mais cara, mais aristocrata que popular”, e incentivando a colocação nas zonas mais carenciadas. Foi até sugerido que talvez estes cursos práticos fossem mais aconselháveis para as mulheres, que tinham mais apetência para os cuidados médicos: “e em verdade, em geral lhe achamos mais jeito do que aos homens” (O Comércio, 7 ago. 1855, p.1).

Os jornais consultados foram: O Comércio, diário publicado no Porto entre 2 de junho de 1854 e 30 de julho de 2005, que em 1856 mudou o nome para O Comércio do Porto; O Eco Popular, também do Porto, publicado diariamente entre 1847 e 1860; O Século, jornal diário de Lisboa, publicado entre abril e dezembro de 1855, data em que interrompeu sua publicação (um novo jornal com o mesmo nome foi publicado entre 1881 e 1977); e, finalmente, o Diário de Notícias, também de Lisboa, o mais antigo jornal diário ainda em circulação, fundado em 29 de dezembro de 1864.

Problemas de saúde pública no século XIX

No que diz respeito à saúde pública, a divulgação das informações, especialmente em períodos epidémicos, era uma questão de sobrevivência. Ao longo do século XIX tomou-se consciência, pela experiência traumática das sucessivas pandemias, que a prevenção e cada vez mais a higiene eram os meios mais eficazes para lidar com as crises sanitárias em geral e as doenças em particular. O discurso higienista introduziu a medicina na vida privada (Ferreira, 1999), e as autoridades aplicaram-no para lutar contra as epidemias, usando-o nos relatórios oficiais que eram publicados nos periódicos generalistas. Sem esse recurso os médicos e as autoridades sanitárias teriam perdido as sucessivas batalhas contra as doenças em que o mundo inteiro estava envolvido. Em paralelo, um efeito político das epidemias foi a colocação da classe médica e das políticas de saúde pública no centro das atenções da vida do país e dos municípios. Tal como sucedeu com a epidemia de cólera que atacou Nápoles em 1884, “a epidemia marcou uma etapa importante na emergência da profissão médica como um interesse poderoso nas políticas municipais” (Snowden, 1995, p.5).1 Não apenas em resposta às epidemias, mas também no combate às doenças endémicas que causavam altos níveis de mortalidade, condicionando a economia e todos os aspetos da vida das pessoas, das cidades e dos países (Pelling, 1978). Todos estes fatores contribuíram para a legitimação do investimento público em equipamentos científicos, como foi o caso dos laboratórios de investigação.

Chegar à idade adulta e sobreviver mais alguns anos era obra considerável até ao século XX. Desde logo, se os recém-nascidos não morriam de “debilidade congénita”, muitos ficavam órfãos à nascença, nos casos bastante frequentes de morte das mães na altura do parto ou pouco tempo depois com febres puerperais, típicas das infeções pós-parto, que eram fatais já que não havia antibióticos. Nessas situações, as hipóteses de sobrevivência do recém-nascido diminuíam, a menos que se providenciasse uma ama de leite que cumprisse os requisitos mínimos de salubridade. Ao longo da infância, a sucessão de doenças era praticamente inevitável: raquitismo, paralisia infantil, sarampo (e suas derivadas, como a varicela, rubéola, papeira), difteria, tosse convulsa (coqueluche), meningite, escarlatina e poliomielite eram “grandes responsáveis pela mortalidade até ao primeiro ano de vida” (Vaquinhas, 2011, p.376). A somar a essas, doenças endémicas como a tuberculose, sífilis, lepra, febre tifoide e malária (as chamadas “sezões” ou “febres intermitentes”), tétano, lúpus; doenças sazonais como as gripes, gastrites, enterites e disenterias; e ainda algumas ocasionais como a sarna, a raiva (hidrofobia), a febre da carraça, a gonorreia, a leishmaniose (Jorge, 1935), a brucelose (ou febre de Malta, transmitida pelas ovelhas) e o carbúnculo (antraz) dizimavam grande parte da população adulta.

Acrescentam-se também a asma e algumas doenças que ainda nem tinham sido identificadas, como a hepatite, a cirrose, ou a diabetes (a insulina só foi isolada em 1921 por Banting, Best e Macleod, que receberam o prémio Nobel de fisiologia em 1923). Por outro lado, já em 1865, o cancro foi objeto de teses na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Por exemplo, “defendeu brilhantemente a sua tese, acerca do cancro do fígado, na escola de medicina de Lisboa, na travessa da Porta do Carro, a S. Lázaro, o distinto académico sr. João Cesário de Lacerda, moço a quem as letras já devem não pouca dedicação” (Diário..., 26 jul. 1865, p.1). Contudo, se a comunidade médica produzia conhecimento científico especializado, ao analisar a publicidade dos medicamentos percebe-se a confusão existente no nível popular entre doenças muito diferentes, como podemos ver num anúncio de um “unguento milagroso”: “cura cancros, alporcas, antrazes e toda a qualidade de chaga ou ferida por mais antiga que seja” (Diário..., 4 nov. 1865, p.4).2 Ainda em 1918 o medicamento “Histogenol Naline com selo Viteri” anunciava a cura de 38 doenças tão diversas como tuberculose, lúpus, cancro, anemia, raquitismo, escrófulas, crescimento irregular, fastio, más digestões, azia, asma, bronquites crónicas, gripe, febre, magreza, palidez, debilidade, fadiga cerebral, desarranjos nervosos, neurastenia, doenças mentais, insónia, e ainda “definhamento resultante dos desportos violentos, falta de regularidade nas menstruações” (O Comércio..., 4 jan. 1918, p.4). A somar a isso tudo, os “flagelos sociais”, como o alcoolismo, uma patologia que “enfraquecia a raça” (Correia, 1938, p.288), e as guerras.

Perante tal cenário de doenças debilitantes, podemos calcular o impacto da chegada de uma epidemia do exterior e o terror que causou. O século XIX foi o século das grandes pandemias. Para além das habituais epidemias de peste negra, febre-amarela e varíola, esse século viu surgir pela primeira vez na Europa, e depois espalhadas pelo mundo inteiro, as agressivas e devastadoras epidemias de cólera. Alguns autores defendem que se devem estudar as febres, mais que os surtos de cólera, pelas suas consequências a longo termo, pois consideram que “o impacto médico do cólera foi exagerado devido ao drama que acompanhou as invasões epidémicas e aos extensos relatos que foram produzidos na época” (Pelling, 1978, p.1). Segundo a autora, as mortes por cólera eram ultrapassadas pelas febres tifoides, escarlatina, sarampo e sobretudo a tuberculose; por outro lado, as epidemias de cólera tinham mais impacto pela sua divulgação, pelas consequentes medidas sanitárias tomadas pelas autoridades e ainda pela literatura. Também Rosenberg (1987) afirmou que nos EUA os surtos de cólera tiveram um impacto duradouro limitado. Contudo, não há dúvida que essa epidemia alterou de forma significativa o modo de encarar as doenças por parte do poder político. Sua influência no desenvolvimento de políticas sanitárias foi fundamental e resultou na criação de novos conceitos de higiene e saúde pública que ainda hoje vigoram. Devido aos trabalhos de John Snow e à identificação da causa da difusão da doença é que se avançou para obras de saneamento básico. Em Portugal esses trabalhos foram realizados mais tarde, mas foram as sucessivas epidemias que provocaram o alerta nas autoridades e na sociedade civil.

Os Estados reagiram às epidemias de forma divergente, com medidas restritivas que privilegiavam os cordões sanitários e as quarentenas, e que tinham consequências económicas por vezes tão devastadoras como a própria doença. A comunidade médica internacional, se bem que beneficiasse de uma circulação bastante regular do conhecimento, pelo menos entre os países europeus e da América do Norte, verificou a falta de capacidade de resposta prática à doença. A partir de 1851, as potências europeias começaram a enviar os seus melhores especialistas a conferências sanitárias internacionais que visavam à uniformização das medidas sanitárias a pôr em prática. Essas conferências, iniciadas em Paris e repetidas em Constantinopla em 1866, Viena em 1874, Washington em 1881, Roma em 1885, Veneza em 1892, Dresden em 1893 e de novo em Veneza em 1897, revelaram “um conhecimento científico em constante mutação” e “posições nacionais divergentes e mutáveis ao longo do tempo. As grandes potências europeias – Inglaterra, França e mais tarde a Alemanha – posicionaram-se em campos por vezes antagónicos, pressionando os países mais pequenos e periféricos a prescindirem da severidade das medidas quarentenárias” (Garnel, 2009, p.231).

Em todas essas conferências, para além da identificação das doenças e respetivas medidas profiláticas e tratamentos, que eram recomendadas aos Estados para a aplicação de medidas uniformizadas, a discussão centrava-se na questão do contágio, que não era consensual. Durante séculos o contágio das doenças fora defendido e apoiado pelos Estados quando estabeleceram as primeiras quarentenas (Ackerknecht, 1948). Porém, o século XIX viu surgir uma nova geração de cientistas que negaram o contágio das doenças, baseando-se na ineficácia das quarentenas e dos cordões sanitários (especialmente na altura da epidemia de cólera de 1832). Os cientistas defensores do “anticontagionismo” lutaram pela liberdade do indivíduo e do comércio, contra o despotismo e a reação. Verificou-se, assim, numa clara associação entre teorias anticontágio e interesses comerciais, que os governos do norte da Europa, mais liberais e progressistas, avançaram com políticas higienistas, abolindo quarentenas e cordões sanitários, enquanto os do sul da Europa, mais conservadores, mantiveram as práticas correspondentes à teoria do contágio. O Porto, uma cidade liberal, mercantil e em pleno desenvolvimento industrial e comercial, reagiu violentamente contra a autoridade da capital, que o obrigou ao cordão sanitário em todas as epidemias do século XIX. E os seus jornais, por lealdade política e dependência económica, fizeram sempre uma campanha forte e persistente contra as medidas autoritárias impostas pela capital.

Essa posição enquadra-se nos aspetos positivos da teoria anticontágio descritos por Ackerknecht e que deram origem a grandes operações sanitárias dirigidas especificamente contra a sujidade, as quais acabaram por ter resultados bastante mais eficazes na prevenção das subsequentes epidemias do que as medidas restritivas aplicadas pelos Estados do sul da Europa. Uma vez que os cordões sanitários nunca eram aplicados rigorosamente, os elementos transmissores das doenças contornavam facilmente as barreiras militares. Por outro lado, a aplicação forçada de medidas de higiene e de isolamento dos doentes, que também encontrava resistência enfurecida por parte das populações, acabava por ter resultados mais eficazes no controlo das epidemias e das doenças em geral.

De qualquer modo, e apesar da circulação do conhecimento científico e da apropriação deste por parte das autoridades, que o usaram para combater a doença, a urgência das crises epidémicas não era compatível com o maior problema a resolver a longo prazo: a falta de higiene, tanto pessoal como das habitações, especialmente nas cidades. Os rios para onde se atirava tudo eram lugares propícios ao desenvolvimento das epidemias, os pântanos, às febres intermitentes. E se a natureza exalava “miasmas”, as cidades, com as suas habitações pequenas e mal arejadas, tinham sua “atmosfera corrompida” (O Comércio, 6 jun. 1855, p.1). O Porto, em particular, apresentava condições especiais para o desenvolvimento das doenças, por ser uma cidade industrial com uma população de grande mobilidade a viver nas piores condições de salubridade. Apesar das medidas do Estado para melhorar a higiene pública, no final do século XIX os problemas da cidade do Porto persistiam de tal maneira que Ricardo Jorge apelidou-a “cidade cemiterial”. Nas suas obras, o professor de medicina aprofundou a questão das ilhas como causa para a proliferação de doenças e epidemias, com especial destaque para a tuberculose (Jorge, 1899). Esse seu trabalho ajudou a influenciar a rainha dona Amélia na criação, nesse mesmo ano, da Assistência Nacional aos Tuberculosos e na construção de sanatórios para os doentes (Almeida, 1995).

Até no estrangeiro a situação era conhecida: “O Porto tem falta de um bom sistema de canalização e a imundice nos bairros baixos da cidade é indescritível e suficiente para provocar qualquer epidemia. … É agora necessário tomar medidas muito enérgicas, construir novos esgotos ou sem isso o Porto continuará a ser das cidades mais insalubres da Europa” (Diário..., 5 set. 1899, p.1). Em 1918, a situação não melhorara. O mesmo Ricardo Jorge, nesta altura diretor-geral da Saúde e diretor do Instituto Central de Higiene, descreveu num relatório oficial a situação das ilhas do Porto perante a epidemia de tifo exantemático: a doença tem como “predileção as classes ínfimas, mal alojadas, mal tratadas e mal mantidas” (Diário..., 21 fev. 1918, p.1). Nas ilhas do Porto, como nas casas de malta do sul, os operários e os trabalhadores eventuais dormiam à vez na mesma enxerga, em quartos partilhados, sem acesso a água corrente ou saneamento básico. Essa situação não melhorou muito: em 1950, as estatísticas de higiene, das comodidades domésticas e das condições sanitárias das casas em Portugal ainda podiam ser consideradas “calamitosas” (Cascão, 2011a). Sem dúvida a curva demográfica da população portuguesa só começou a subir significativamente quando os problemas de saúde pública começaram a ser resolvidos, numa conjunção entre políticas de saneamento básico, tratamento de águas, programas de vacinação e higiene escolar e introdução dos antibióticos na vida das populações, especialmente a partir do final da Segunda Guerra Mundial.

Em todo o caso, as medidas de prevenção das doenças, com ênfase na higiene, sempre foram as mais divulgadas em períodos de risco sanitário, e a comunidade científica em conjunto com a classe política esforçaram-se por educar as populações nesse sentido. Sem dúvida que a colaboração da imprensa generalista foi fundamental nessa divulgação, na sua qualidade de meio privilegiado de acesso ao público, antes do cinema, da televisão e da internet.

Cólera

Segundo a imprensa da época, durante a epidemia de cólera de 1855, em Portugal, os pobres estavam doentes por sua própria culpa, porque tinham vícios e comportamentos repreensíveis (Almeida, 2011a). Era verão, estava calor, e eles expunham-se ao sol que era mortífero. Assim, todas as medidas sanitárias decretadas pelas autoridades, especialmente no Porto, onde se impôs a quarentena aos navios e ao trânsito e a proibição dos mercados, foram vistas como desnecessárias. Especialmente importante: era preciso restabelecer a liberdade do comércio.

Essa controvérsia dominou as páginas dos jornais desde 1854 a 1856. A epidemia de cólera-morbo foi um tema favorito, e as notícias sobre sua evolução, tanto na Europa e no resto do mundo, como em Portugal, foram consideradas essenciais. A epidemia atingiu especialmente o Porto e a região norte de Portugal em 1855, assim como o Algarve, e, no ano seguinte, chegou a Lisboa e às ilhas. A maioria dos jornais dedicou grande atenção a essa doença, divulgando as medidas sanitárias e as preocupações das autoridades públicas (Almeida, 2011a).

A origem do cólera encontra-se na Ásia, mais propriamente no rio Ganges, a partir do qual se espalhou por todo o mundo pelas rotas comerciais. Chegou primeiro à Rússia, de onde se propagou para a Europa e daí para a América (Rosenberg, 1987). Essa primeira vaga da epidemia chegou a Portugal em 1833, mais precisamente ao Porto, a bordo do vapor London Marchant, com o general Solignac e duzentos soldados belgas, vindos de Ostende para ajudar os liberais na guerra civil (Gomes, 1866). Durante o Cerco do Porto, e depois, quando se espalhou pelo país, a epidemia de cólera acabou por causar mais de quarenta mil mortos, um número mais elevado do que o da própria guerra. Depois dessa, seguiram-se mais oito vagas epidémicas, intensificadas pela falta de higiene nas casas e nas ruas, pelo uso de água e alimentos contaminados e pela concentração dos doentes em pequenos espaços (Cascão, 1993).

A terceira grande vaga epidémica, entre 1852 e 1860, causou mais de um milhão de mortes pelo mundo inteiro. Foi quando a epidemia de cólera chegou à Inglaterra que foram dados os primeiros passos para a identificação e prevenção da doença: em 1854, o médico John Snow, com a colaboração de Henry Whitehead, um pastor anglicano, verificou que quinhentos casos mortais ocorridos em dez dias na zona central de Londres resultavam de beber água na bomba de Broad Street. Fechou a bomba, e, em poucos dias, o foco epidémico cessou. Foi a primeira observação válida sobre a transmissão da doença, que até então se considerava ter como veículos os “miasmas” e o ar em geral (Vinten-Johansen et al., 2003).

Em setembro de 1854, as cidades portuguesas de fronteira começaram a tomar medidas preventivas para evitar o contágio de Espanha. E os jornais iniciaram uma campanha para alertar as autoridades sanitárias sobre a necessidade de limpar as cidades e tomar as medidas aconselhadas pela higiene. O cólera acabou por penetrar em Portugal pelo rio Douro em maio de 1855, infetando com gravidade as vilas ribeirinhas. Imediatamente o Porto foi isolado: nenhum barco podia chegar pelo rio à cidade, sem passar pelo lazareto montado uns quilómetros antes e cumprir a quarentena. Os protestos começaram logo nos jornais portuenses contra o que consideravam um atentado à liberdade do comércio e à economia local.

Nessa fase abundaram os artigos desenvolvidos com conselhos de higiene para limpeza das casas e das ruas e os anúncios de livros e tratados práticos de medicina, com instruções para prevenir e tratar a doença, incluindo os tratados homeopáticos, tão em voga na altura e amplamente divulgados nas páginas dos jornais. Tomaram-se medidas oficiais para combater o cólera, montaram-se hospitais especiais, as autoridades visitaram as ilhas, e as farmácias forneceram medicamentos gratuitos.

Em geral, a imprensa desse período tentou encontrar explicações científicas e racionais para o flagelo a que se assistia e criticou vigorosamente os costumes populares, em especial os religiosos. Entre as causas conhecidas para a doença, a pobreza parecia ser a que reunia maior unanimidade. De facto, os pobres eram sempre os primeiros a morrer nessas epidemias e os que tinham maiores taxas de mortalidade. Recomendavam-se os alimentos cozinhados, especialmente os cozidos.

Depois de estabelecerem que o cólera não era contagioso, e de se posicionarem de forma unânime contra as medidas de quarentena do Conselho de Saúde, os jornais de Lisboa e do Porto tentaram encontrar outras causas para a epidemia: o ozono, ou mesmo o medo, o terror.

A prevenção era assegurada pelas autoridades, com ênfase no isolamento e na higiene. Os jornais também contribuíram para divulgar medidas higiénicas, como a limpeza das casas e das roupas, a importância de abrir as janelas e arejar as casas e livrar-se dos “miasmas pútridos”, considerados a principal origem de contaminação. Tanto os anúncios como as notícias revelam o nível dos conhecimentos da época, no que diz respeito ao tratamento e aos medicamentos: o espírito de cânfora era o único conhecido. Beber chá, bebidas espirituosas e vinho também era aconselhado, fricção das extremidades, quando o paciente estava mesmo quase a morrer e sem circulação, banhos de água salgada.

Peste bubónica

Em 1899 declarou-se no Porto uma epidemia de peste bubónica, diagnosticada pelo professor de higiene e medicina legal da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, Ricardo Jorge, na altura médico municipal e diretor do posto de desinfeção pública do Porto, e verificada por vários médicos estrangeiros que se deslocaram a Portugal para estudar a doença e que publicaram relatórios sobre o combate à epidemia, nos quais o trabalho de Ricardo Jorge foi elogiado (Calmette, Salimbeni, 1899; Ferrán y Clua, Viñas y Cusi, Grau, 1907; Montaldo y Peró, 1900). Em 24 de agosto de 1899 foi estabelecido um cordão sanitário à volta do Porto, cercado pelas autoridades militares, que foi levantado em 22 de dezembro. Os jor-nais diários transcreveram todo o processo científico de apuramento dos diagnósticos: autópsias, inoculação de ratos, tratamentos. Os relatórios do professor Ricardo Jorge foram minuciosamente reproduzidos nos jornais diários, o que revela o interesse dos jornalistas na divulgação dos métodos científicos, com o objetivo de alertar os leitores para o perigo real da doença, que não foi bem aceite na cidade.

O bacilo que provoca a doença tinha sido isolado em 1894 por Alexandre Emile Jean Yersin, um médico suíço, em conjunto com Kitasato Shibasaburō, após investigação sobre essa doença na China. Sua transmissão era feita pelas pulgas dos ratos e, entre os humanos, podia haver transmissão direta pela pele, nariz e boca, um processo conhecido por Ricardo Jorge e descrito logo no primeiro relatório publicado na imprensa diária (O Comércio..., 22 ago. 1899). O único tratamento conhecido na altura era o soro Yersin, produzido no Instituto Pasteur de Paris. Duzentos tubos deste medicamento foram logo encomendados, apesar da opinião de Ricardo Jorge que esse soro não dava “os resultados lisonjeiros que a princípio se divulgaram” (Diário..., 18 ago. 1899, p.1). Sua eficácia dependia da rapidez da aplicação, logo nos primeiros dias da doença, e funcionava melhor ainda como preventivo, como foi usado pelos médicos franceses que se deslocaram ao Porto para estudar a evolução da epidemia:

o dr. Calmette, que vem ao Porto, delegado do Instituto Pasteur, de Paris, estudar a epidemia da peste bubónica. O ilustre bacteriologista, que é uma notabilidade científica francesa (vem acompanhado do) dr. Salemberie, preparador ajudante do dr. Roux … O dr. Calmette tem a mais inteira confiança na eficácia do soro antibubónico, aplicado principalmente como preservativo. … declararam que estão imunes do contágio de peste por 15 dias, por isso que se vacinaram em Paris (Diário..., 3 set. 1899, p.1).

Ainda nesse mês os próprios filhos de Ricardo Jorge foram vacinados por Calmette com esse soro, assim como alguns comerciantes do Porto.

Apesar da confiança dos médicos franceses no soro, Ricardo Jorge fez questão de aplicar medidas profiláticas fortes, pois conhecia bem as condições em que a doença se desenvolvia e os grupos mais afetados: “As classes trabalhadoras, miseráveis e mais imundas, ou nos seus hábitos ou na casa em que residem” (Diário..., 18 ago. 1899, p.1). Por esse motivo, foram imediatamente postas em prática medidas sanitárias rigorosas obrigando à higiene pessoal (com a construção de balneários públicos) e para o combate aos agentes transmissores da doença. Um pormenor interessante foi a caça aos ratos e aos gatos, que fez as crianças do Porto e de Lisboa ganharem algum dinheiro: por cada rato grande entregue numa esquadra de polícia recebiam vinte réis, por cada pequeno, dez, o que motivou uma colheita diária considerável (Diário..., 15 out. 1899, p.1). Ao mesmo tempo que se estabeleceu o cordão sanitário, suprimiram-se todos os comboios de recreio, todas as “feiras, romarias e outros ajuntamentos”, e obrigaram-se à inspeção médica todos os passageiros e empregados dos comboios, que tinham de cumprir uma quarentena de nove dias (Diário..., 18 ago. 1899, p.1). Sem dúvida, a grande aposta de Ricardo Jorge foi na prevenção da disseminação da doença, isolando os doentes e a própria cidade. A maior urgência das autoridades era delimitar os focos de infeção. De facto, as medidas radicais postas em prática por Ricardo Jorge logo nos primeiros dias do surto epidémico delimitaram o contágio da doença, que teve uma mortalidade reduzida – em 326 casos declarados, houve 111 óbitos (Diário..., 31 jan. 1900, p.2) –, o que contribuiu para as afirmações locais de que não se tratava de uma epidemia e que em Lisboa as autoridades centrais exageravam no que dizia respeito a esse tema.

Figura 1 : Cordão sanitário (Diário..., 30 ago. 1899, p.1) 

No entanto, os banhos obrigatórios; as casas e roupas queimadas quando os médicos e os subdelegados de saúde realizavam visitas domiciliárias, acompanhados pela polícia, e encontravam um doente de peste; e o isolamento forçado dos doentes e de todos os seus familiares e vizinhos em hospitais especiais, todas estas ações eram motivo de grande revolta popular, que provocaram cenas de autêntica guerra civil. Houve apedrejamento das casas dos médicos, às quais responderam forças de cavalaria e infantaria da guarda municipal que punham tudo em debandada... e até bombas explodiram. O próprio presidente da câmara do Porto apresentou sua demissão, em protesto contra o cordão sanitário, que restringia a circulação de mercadorias e a liberdade do comércio, o que foi considerado uma ingerência do governo central de Lisboa nos negócios da cidade, que aniquilava a vida local (O Comércio..., 2 set. 1899, p.1-2). Apesar do apoio dos médicos do Porto, Ricardo Jorge acabou por se demitir e pedir transferência para Lisboa, depois de enviar ofícios ao governador civil e à Câmara Municipal, nos quais mostrou “a impossibilidade que tem em continuar, pela parte que lhe diz respeito, no combate da doença reinante, atento o desvairamento da opinião pública e da falta de concurso que todas as classes dirigentes do Porto precisam de prestar para que se estabeleça a situação sanitária da cidade. Segundo consta esses ofícios estão redigidos em linguagem enérgica” (Diário..., 30 set. 1899, p.1).

Figura 2 : A peste vista do Porto e de Lisboa (Diário de Notícias, 21 ago. 1899, p.1) 

Ricardo Jorge continuou sua carreira em Lisboa, onde seu trabalho de controlo da epidemia fora reconhecido, e foi imediatamente nomeado inspetor geral dos Serviços Sanitários do Reino e lente de higiene na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, além de membro do Conselho Superior de Higiene e Saúde. Começou imediatamente a trabalhar na organização geral dos Serviços de Saúde Pública e no Regulamento Geral dos Serviços de Saúde e Beneficência Pública, o que resultou, em 1901, numa legislação atualizada, burocracia e redes de controlo e fiscalização da higiene e da saúde pública. O trabalho de Ricardo Jorge como docente, investigador e mentor da nova legislação deu origem a uma profunda reforma na saúde pública em Portugal, e à criação da Direção-geral de Saúde e Beneficência Pública e do Instituto Central de Higiene, mais tarde Instituto Superior de Higiene, que em 1929 mudou o nome para Instituto Ricardo Jorge. No início do século XX, Portugal estava atualizado e dispunha de especialistas competentes que acompanhavam o debate científico internacional, se bem que a aplicação da reforma não se traduziu imediatamente numa melhoria das condições sanitárias do país.

Câmara Pestana ainda continuou no Porto a estudar a peste bubónica e acabou por ser infetado e morrer em Lisboa no dia 15 de novembro de 1899, apesar de também ter sido vacinado com o soro. Mas o combate contra a disseminação da epidemia estava ganho, e a doença foi considerada extinta em janeiro de 1900.

Uma inovação importante nesse período foi uma máscara profilática facial inventada pelo médico Afonso de Lemos, para ser usada por médicos e enfermeiros na observação e tratamento dos doentes de peste (Diário..., 24 ago. 1899, p.1). Considerando que foi apenas em 1918, durante a epidemia de gripe, que as máscaras faciais foram popularizadas, esse aparelho é demonstrativo da criatividade dos médicos portugueses.

Tifo exantemático, gripe pneumónica e varíola

O ano de 1918 foi marcado pelo final da Primeira Guerra Mundial. Porém, mais mortífera foi a epidemia de gripe pneumónica que se espalhou por todo o mundo e que provou ser “um dos piores flagelos epidémicos da história humana”, que matou entre cinquenta e cem milhões de pessoas (Sobral et al., 2009). No Porto, essa epidemia encontrou uma população já extremamente debilitada pelas doenças endémicas descritas, agravadas pelas condições sanitárias que ainda não tinham sido objeto de melhorias significativas.

Em dezembro de 1917 declarou-se uma epidemia de tifo exantemático no Porto. Logo em janeiro de 1918, na qualidade de diretor-geral da Saúde, Ricardo Jorge deslocou-se ao Porto para estudar o problema e colocar em prática as primeiras medidas sanitárias. Como resultado do seu inquérito local, elaborou um relatório que foi apresentado no Conselho Superior de Higiene, no qual desenvolveu a história e definição da doença e apresentou o plano das medidas destinadas ao seu combate naquela cidade e no país (Diário..., 21 fev. 1918, p.1-2). Seu plano sanitário foi colocado em prática pelo professor Augusto de Almeida Monjardino, nomeado comissário do governo na cidade do Porto para combate à epidemia no dia 23 de fevereiro de 1918, e depois pelo professor António de Almeida Garrett, que o sucedeu no cargo e, desde 18 de maio de 1918, dirigiu o combate à epidemia de tifo exantemático que se prolongou até ao ano seguinte (Almeida, 2011b).

As medidas sanitárias tomadas para evitar a propagação do tifo exantemático foram muito semelhantes às da peste bubónica de 1899, com os banhos obrigatórios e a desinfecção de roupas e casas para matar os piolhos transmissores da doença, o isolamento dos doentes e dos seus contatos mais imediatos, as visitas domiciliárias e a notificação obrigatória dos epidemiados, com a cidade dividida em áreas sanitárias e a obrigatoriedade de guias sanitárias para os viajantes (apenas não se criou o cordão sanitário), além da recomendação do recru-tamento de tifosos curados para os serviços perigosos de despiolhamento, aproveitando sua imunidade à doença (Sousa et al., 2009).

Em simultâneo, o comissário do governo teve de lidar com a epidemia de gripe pneumónica que, desde agosto desse ano, e com maior intensidade em outubro, provocou em Portugal um número de mortos estimado em mais de 135 mil, apesar das estatísticas oficiais apontarem para 59 mil (Sobral et al., 2009). As primeiras notícias sobre a influenza nos jornais portugueses referiram-se a Espanha, onde a doença ainda era considerada benigna (Diário..., 26 maio 1918, p.1). Poucos dias depois, o rei Afonso XIII e o embaixador português em Madri, Egas Moniz (que ganhou o prémio Nobel da medicina em 1949) ficaram de cama, mas se recuperaram rapidamente (Diário..., 30 maio 1918, p.1). Nos primeiros dias de junho, a doença chegou a Portugal trazida por trabalhadores rurais que tinham estado a trabalhar nas ceifas em Badajoz e Olivença. Os primeiros casos registaram-se em Vila Viçosa, onde rapidamente um quinto da população ficou infetada, mas ninguém faleceu (Diário..., 5 jun. 1918, p.2).

O primeiro relatório de Ricardo Jorge alertou para a o facto de que “nenhum contágio conhecido possui em tal grau esta voracidade de tempo e de espaço” (Diário..., 19 jun. 1918, p.1). Ao contrário das epidemias anteriores, no que disse respeito à gripe, sua propagação pelo ar tornou desnecessárias medidas restritivas à circulação de pessoas. Aconselhou-se apenas “evitar a permanência em lugares fechados onde haja grandes aglomerações ... devem arejar-se largamente as habitações e lugares de trabalho. É para aconselhar o uso de preparações desinfetantes das vias nasais e garganta” e tornou-se “obrigatória a declaração por escrito de todos os casos” (O Comércio..., 15 jun. 1918, p.1). Segundo outro relatório de Ricardo Jorge, “não se oferece profilaxia efetiva e eficaz a exercer contra tal epidemia que não seja a higiene geral e assistência dos atacados preferentemente em hospital de isolamento” (O Comércio..., 25 set. 1918, p.1). Mais tarde, as feiras e os mercados foram proibidos e as escolas só iniciaram o ano letivo depois do dia 28 de novembro. Cada município foi dividido em zonas médicas e farmacêuticas, e as receitas nas farmácias eram grátis para os pobres. As farmácias funcionaram em horário alargado e deveriam estar fornecidas com os medicamentos necessários: aspirina, sais de quinino, de amónia e purgantes; cafeína, ampolas de óleo de cânfora, sementes de mostarda e de linhaça, entre outros. E às “pessoas caritativas e remediadas” era-lhes pedido que criassem “comissões de socorro” para “acudir aos necessitados” (O Comércio..., 1 out. 1918, p.2). Nesse ano não há referência ao uso de máscaras faciais por parte dos profissionais de saúde em Portugal; apenas uma notícia sobre São Francisco, na Califórnia, cujos “habitantes trazem umas máscaras apropriadas, tanto na rua, como nos estabelecimentos comerciais, para os preservarem dos efeitos dos micróbios do ar” (O Comércio..., 17 dez. 1918, p.1).

A publicidade da época refletiu as preocupações com os cuidados de higiene, com grande incidência sobre medicamentos, sabonetes e desinfetantes, e até casacos para o frio, recorrendo a grandes títulos com as palavras “gripe” e “epidemia”. Por exemplo, um xarope que em agosto curava tosses, em setembro já curava a gripe:

Figura 3 : Anúncio do xarope peitoral de Cambará (O Comércio..., 31 ago. 1918, p.3) 

A epidemia atingiu seu pico em outubro e começou a declinar em novembro. Apesar de os jornais continuarem a descrever sua benignidade, especialmente nas cidades, com o objetivo de prevenir o pânico, as cartas dos correspondentes da província descreviam a situação “pavorosa” e “a quantidade de órfãos de vítimas da epidemia que se encontram na maior das misérias” (Diário..., 24 nov. 1918, p.1). A mortalidade foi tal que levou as autoridades locais a proibir o toque de finados nos sinos das igrejas, pela ansiedade que causava. Os medicamentos, os caixões e os funerais atingiram preços tão altos que o governo publicou tabelas com os preços máximos e aplicou multas a quem não as cumprisse. Muitos médicos e pessoal de saúde foram mandados para as zonas rurais, o que originou queixas nas cidades. Por esse motivo, apesar de as faculdades de medicina estarem fechadas, foi permitido aos estudantes fazerem os exames para obterem as qualificações necessárias para poderem exercer medicina. E até os alunos dos últimos anos, que ainda não tinham completado as cadeiras todas, foram chamados para trabalhar nos hospitais e assim ajudar no combate à epidemia.

É importante salientar a assistência privada às vítimas e às suas famílias. Desde há séculos que a assistência social e médica era assegurada pelas misericórdias locais. Em períodos de crise, a sociedade civil respondia mais ativamente, e os jornais constituíram peças essenciais para ativar e congregar os esforços dos beneméritos e recolher dinheiro para as suas “subscrições”. Por exemplo, o Diário de Notícias conseguiu reunir 12.000$000 em duas semanas para a assistência aos “epidemiados pobres em convalescença e às famílias indigentes dos epidemiados falecidos”, logo após ter recebido 80.000$000 nos dois meses anteriores para os prisioneiros de guerra em França (Diário..., 7 nov. 1918, p.1).

Em simultâneo, entre junho e dezembro de 1918 verificou-se uma epidemia de varíola que obrigou a um movimento de vacinação rigorosíssimo em todo o país. A doença era endémica, mas sua intensidade provocou sua classificação como epidémica. A vacina já existia desde o século XVIII, a partir dos trabalhos de Edward Jenner. Contudo, foi apenas em 1885 que Pasteur generalizou seu uso. No final do século XIX, as vacinas passaram a ser consideradas uma questão de prestígio nacional, e vários Estados emitiram leis de vacinação obrigatória. Em Portugal, no início do século XX, tal como no presente, as vacinas não eram obrigatórias por lei, mas acabavam por o ser na prática, pois a frequência das escolas e dos locais de trabalho implicava a prova de vacinação. Em 1918, foram afixados editais em todos os bairros “determinando que nenhum indivíduo de mais de oito anos possa frequentar escola, instituto de educação, oficina, fábrica, estabelecimento comercial ou industrial, fazer exame ou concurso de desempenho, qualquer cargo público, sem que prove ter sido vacinado ou sofrido um ataque de varíola dentro dos últimos sete anos. Os diretores ou chefes destas coletividades são responsáveis pela observância destas disposições, incorrendo os infratores em penas de 1$00 a 6$00 de multa” (Diário..., 17 nov. 1918, p.1). As vacinas eram administradas de graça nas delegações de saúde e também pela Cruz Vermelha. Foram ainda criados ambulatórios para vacinação nos asilos, prisões, esquadras de polícia e nalgumas coletividades (O Comércio..., 31 jul. 1918, p.1).

Na sequência dessas epidemias, Ricardo Jorge participou em conferências internacionais, como a da Comissão Sanitária dos Países Aliados, que se realizou em Paris em abril de 1918 (Diário..., 10 abr. 1918, p.1) e também no ano seguinte, em março, apresentou à mesma comissão um relatório sobre a gripe (Jorge, 1919); em outubro de 1919 apresentou uma comunicação ao Comité Internacional de Higiene Pública sobre o tifo exantemático no Porto, na qual reafirmou que o piolho, agente responsável pela transmissão da doença, era ainda muito frequente nas classes mais pobres, também as mais afetadas (Jorge, 1920).

Apesar do intenso trabalho de Ricardo Jorge, o processo de transição sanitária teria lugar em Portugal apenas a partir da década de 1920, em flagrante atraso relativamente a outros países europeus. Porém, só se consolidaria definitivamente na década de 1950, época em se pode afirmar que a transição epidemiológica estava terminada (Sousa et al., 2009).

A higiene na imprensa

Em todos os momentos epidémicos descritos, um fator foi sempre salientado nas notícias, independentemente do estado dos conhecimentos médico-farmacêuticos das respetivas épocas: a higiene. Repetem-se desde os meados do século XIX as preocupações com a limpeza e arejamento das casas, das roupas, dos móveis e do corpo dos doentes. Curiosamente, as referências aos cuidados com a higiene das mãos estão praticamente ausentes. Por exemplo, durante a epidemia de cólera, há apenas uma referência ao estranho comportamento dos médicos do hospital de Roma que não se aproximavam “dos doentes senão com a cara coberta com máscara e luvas nas mãos” (O Comércio, 20 set. 1854, p.2).

Numa base de dados tão vasta como a que foi construída para esta investigação, entre 6.700 entradas apenas dez notícias referem o tema da lavagem das mãos. Por exemplo, no relatório de Ricardo Jorge sobre a peste, pode ler-se:

As mãos lavar-se-ão com soluto de sublimado a 2 por mil; na falta de um antisséptico na ocasião, recorrer-se-á à água, sobretudo quente, e ao sabão ordinário, e ainda à imersão em vinagre ou álcool. Deve haver todo o cuidado na desinfeção das mãos, não esquecendo a limpeza meticulosa das unhas com uma escova apropriada. As roupas desinfetam-se pela lixiviação em barrela ou pela imersão em sulfato de cobre a 5% durante algumas horas (Diário..., 28 ago. 1899, p.1).

Além dessa referência há ainda mais sete neste período epidémico, incluindo uma na Pastoral do Cardeal Patriarca, com instruções profiláticas que incluíam a limpeza do corpo, das roupas e das habitações pelo emprego de desinfetantes com formol “em dose de um grama para um litro, e nisto lavar as mãos ou roupas suspeitas” (Diário..., 4 set. 1899, p.1). E mais duas em 1918: uma referente à desinfeção pelo “uso de tópicos nas partes mais expostas, como mãos e calçado, [de] vaselina mentolada e o óleo canforado”, durante a epidemia de tifo (O Comércio..., 27 jan. 1918, p.1); e outra numa entrevista ao chefe do laboratório de análises clínicas do Hospital Escolar, que aconselhou, contra a gripe, “a boa alimentação e abrigo das correntes de ar; o uso diário de hóstias de antitérmicos, como fenacetina, aspirina ou quinina; desinfeção cuidadosa e amiudada das fossas nasais e garganta ... desinfeção das mãos antes das refeições com qualquer antisséptico como água formolada (20 gotas por um litro de água), ou qualquer sabonete antisséptico” (Diário..., 4 out. 1918, p.1-2).

Durante a epidemia de peste, a publicidade mostrou-se um veículo privilegiado e pioneiro nesse tema, com anúncios recorrentes de sabonetes desinfetantes e da necessidade de lavar as mãos após o contato com objetos contaminados. Por exemplo, o sabonete Sousa Martins, de alcatrão composto, vendido na Farmácia Estácio, no Rossio, em Lisboa, apresentava a qualidade de “lavar muito bem, amaciando a pele e conservando-a desinfetada, ou desinfetando-a, se for um aperto de mão, ou pelo contacto com uma das sujas notas que circulam no mercado, ou com qualquer objeto contaminado” (Diário..., 28 jul. 1899, p.3).

Figura 4 : Anúncio de pasta dentífrica (O Comércio..., 26 nov. 1899, p.3) 

Figura 5 : Anúncio de sabonete (Diário de Notícias, 18 abr. 1918, p.4) 

Enquanto não há qualquer alerta de médicos ou autoridades sanitárias para a necessidade de higiene oral, foi nos anúncios que se encontraram as primeiras referências à lavagem dos dentes. Logo em 1865, uma perfumaria recentemente aberta no Rossio anunciou “um grande sortimento de escovas para dentes, unhas, fato, cabelo e chapéus; pentes e muitas qualidades para caspa e alisar” (Diário..., 25 mar. 1865, p.4). E um dentista francês, também estabelecido no Rossio, publicou, na sua língua, um anúncio à “Grande escolha de dentífricos de renome, pós e elixires muito eficazes para a conservação dos dentes e das gengivas. D. de Vitry, cirurgião-dentista de Suas Magestades” (Diário..., 21 maio 1865, p.3). Claramente, a higiene oral era ainda algo apenas acessível a uma elite.

No que diz respeito à qualidade dos desinfetantes anunciados, é assustador o leque de opções para sua aplicação:

Jeys Fluid: O mais perfeito desinfetante – O melhor purificante. Deve ser usado em todas as casas onde se preza a higiene e a boa saúde. O seu uso nos quartos de dormir é muito útil, especialmente em casos de doenças, pois transforma imediatamente uma atmosfera violada e impregnada de micróbios em uma outra mais pura e sadia. Como desinfetante tem várias e úteis aplicações. É excelente para latrinas, canos de esgoto, cavalariças, vacarias, casotas de cães etc. Como purificante pode usar-se em mobílias, roupas de cama, vestuário etc. Para o banho é muitíssimo refrescante e dá ótimo resultado para lavar a cabeça. Tira a caspa, mata os parasitas, amacia o cabelo e evita a sua queda. Para a lavagem dos cães e gatos ... Vende-se nas drogarias e farmácias (O Comércio..., 27 jan. 1918, p.3).

A higiene ainda tinha um grande caminho a percorrer até chegar à prevenção correta das epidemias.

Quadro 1 : Resumo do tema 

Epidemias no Porto Datas Mortes Taxas de mortalidade Causas conhecidas na época Causas atribuídas a Transmissão Medidas sanitárias Tratamentos
Cólera morbus Maio de 1855 a 1857 22.700 por todo o país 45% Desconhecida Miséria, falta de higiene, comportamentos excessivos, maus hábitos alimentares, miasmas, terror Desconhecida; negação do contágio, alimentação, água Isolamento dos doentes e de cidades inteiras, cordões sanitários, quarentenas, higiene, hospitais especiais, proibição de mercados, encerramento de escolas Tratamento específico desconhecido. Espírito de cânfora, esfregar os doentes com água salgada morna, bebidas espirituosas, menta, iodo, sanguessugas

Peste bubónica Junho de 1899 a janeiro de 1900 111, de 326 casos 34% Bacilo descoberto por Yersin e Kitasato Shibasaburō Miséria, falta de higiene, pulgas, ratos, ”um micróbio”, comportamentos excessivos Pulgas dos ratos; transmissão pela pele, nariz e boca Isolamento dos doentes e de toda a cidade, cordão sanitário, higiene, hospitais especiais, proibição dos mercados e feiras, desinfeção de prédios e roupas, banhos obrigatórios, visitas sanitárias pelos delegados de saúde acompanhados da polícia, inspeção de passageiros dos caminhos de ferro, crianças pagas pela caça aos ratos, máscara profilática facial Soro Yersin, vacina Haffkine, naftalina. Desinfetantes: cal, formol, cânfora e álcool canforado, ácido sulfuroso, sabão, aguardente, sulfato de cobre, ácido fénico e sublimado corrosivo. Contra a febre, antipiréticos: quinina, antipirina, fenacetina; para os acessos convulsivos: brometos, cloral, morfina; contra as dores dos bubões: cataplasmas emolientes com beladona. Tónicos: vinho do Porto ou de Xerez, poção de Todd. Os vómitos combatem-se com gelo, água de Seltzer, subnitrato de bismuto

Tifo exantemático Dezembro de 1917 a agosto de 1919 1.481, em 9.035 casos 16,4% (19,2% em 1918 e 9,8% em 1919) Bactéria do tifo exantemático, identificada por H.T. Ricketts e Stanislaus von Prowazek Um vírus transmitido pelos piolhos, classes baixas pobres, com casas e alimentação deficientes, em particular pedintes e criminosos Piolhos Remoção dos piolhos, higiene e desinfeção do corpo, das roupas e das casas; banhos públicos obrigatórios e queima das casas e de todo o mobiliário e roupas. Isolamento dos doentes, da respetiva família e vizinhos; visitas sanitárias pelos delegados de saúde acompanhados da polícia; escolas encerradas Desconhecidos. Para remover os piolhos: banhos frequentes com água e sabão; petróleo, benzina, essência de terebentina; para as roupas naftalina para prevenção e queima de enxofre para desinfeção; para as casas usava-se a cal

Gripe pneumónica Junho de 1918 a dezembro de 1918 59 mil Estudos mais recentes apontam para 135.257 9.8 por mil em toda a população de Portugal Parcialmente identificado, vírus ainda ignorado Uma bactéria, miséria, alimentação deficiente Ar; Primeira Guerra Mundial; migrações de militares e de trabalhadores rurais Profilaxia contra o contágio desconhecida. Higiene geral e assistência médica, isolamento dos doentes em hospitais especiais. Escolas encerradas, adiamento dos exames na universidade, proibição de feiras e mercados, declaração obrigatória da doença. Profilaxia individual: gargarejos mentolados ou salgados. Receitas para os pobres de graça nas farmácias. Membros privilegiados da comunidade foram incentivados a formar comissões locais de urgente e rápido auxílio aos atacados da influenza pneumónica Tratamento específico desconhecido. Medicamentos: aspirina, sais de quinino, de amónia e purgantes; cafeína, ampolas de óleo de cânfora, sementes de mostarda e de linhaça, chá de borragem, licor amoniacal anizado, sulfato de soda desfeito em água quente ou em limonada citro-magnésica reforçada; soro antipneumococcus, carboneto de amoníaco, benzoato de soda, bálsamo Tolu e benjoim, injeções intravenosas de soro glucosado, açúcar e alimentação adequada. Um médico francês aconselhou sangrias e urotropina

Varíola Junho de 1918 a dezembro de 1918 Desconhecida Desconhecida Vírus da varíola, identificado por Edward Jenner   Ar, pele Vacina Desconhecida

Fonte: elaborado pela autora a partir dos jornais consultados

Considerações finais

Verifica-se que o pessoal médico e as autoridades oficiais estavam informados das mais recentes novidades científicas. A imprensa diária demonstrou essa situação e provou-nos que a circulação do conhecimento era uma realidade, por meio da divulgação de livros, transcrições e traduções de revistas especializadas, comentários das obras mais recentes. Sabemos também que os médicos e cientistas portugueses participavam em conferências científicas internacionais e realizavam viagens de estudos aos melhores laboratórios e centros de conhecimento europeus. No entanto, esse conhecimento restringia-se aos grandes centros. Era um facto a pouca disponibilidade dos melhores profissionais para se deslocarem à província, onde faltavam meios, equipamentos e medicamentos para acudir às populações. Ao longo do período analisado foi clara a evolução dos conhecimentos e das práticas médicas e a diferença entre as medidas sanitárias impostas.

Outro fator comum em todas as epidemias descritas relaciona-se com a injustiça da apli-cação das medidas sanitárias e as falhas na sua aplicação, que resultavam na sua ineficácia. Como consequência, a negação da epidemia, para que as restrições fossem imediatamente levantadas. O medo e o terror são também fatores recorrentes, assim como a questão moral da doença e o fator comportamental: a epidemia como castigo para comportamentos excessivos e desregrados. Essa é uma herança religiosa que a ciência absorveu e ainda não nega, pois incorporou-a no seu discurso. A falta de higiene e o comportamento socialmente repreensível aparecem sempre associados à doença e está presente também o fator culpa. Em todos esses casos, a imprensa revelou-se uma fonte histórica indispensável. Perante as considerações expostas e os exemplos apresentados, a hipótese de que a imprensa generalista portuguesa do século XIX e início do século XX tinha a intenção de educar e formar o público leitor e ouvinte parece-nos perfeitamente identificada e comprovada.

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