Compartilhar

Aspectos biopsicossociais da saúde de estudantes e funcionários de uma instituição de ensino superior portadores de cefaleia

Aspectos biopsicossociais da saúde de estudantes e funcionários de uma instituição de ensino superior portadores de cefaleia

Autores:

Bruna Pereira Pessigatti,
Ana Paula Costa Rodrigues,
Pâmela Valério Aguiar,
Fabiano Moura Dias

ARTIGO ORIGINAL

BrJP

versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192

BrJP vol.3 no.1 São Paulo jan./mar. 2020 Epub 27-Fev-2020

http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20200005

INTRODUÇÃO

A avaliação pelo modelo biopsicossocial considera que o corpo humano é um organismo complexo, influenciado por diversos fatores. Nessa concepção, a saúde e a doença são condições que estão em equilíbrio dinâmico e são determinadas por variáveis biológicas, psicológicas e sociais, todas em constante interação. O diagnóstico, a prevenção e o tratamento das doenças devem considerar as contribuições desses três conjuntos de variáveis. Dessa forma, a melhor maneira de cuidar das pessoas é considerar que a etiologia das condições de saúde é sempre multifatorial1.

A cefaleia é comumente conhecida como dor de cabeça e citada como uma condição de saúde incapacitante desde a antiguidade2,3. Entretanto, só em 1988 que a Sociedade Internacional de Cefaleias (IHS) sugeriu, por meio da publicação do artigo “Classificação e Critérios Diagnósticos das Cefaleias”, orientações para classificar e diagnosticar as dores de cabeça conforme sua etiologia4.

As cefaleias são denominadas como primárias quando não há atribuição de uma causa específica, por exemplo, o tipo migrânea, cefaleia do tipo tensional (CTT) ou autonômica trigeminal. São consideradas secundárias quando estão associadas a outro distúrbio ou à consequência de uma agressão ao organismo, de ordem geral ou neurológica, como traumas, tumores, excesso de fármacos dentre outros4,5.

Dentre os tipos de cefaleia, a CTT e a enxaqueca episódica são as mais prevalentes na população mundial. Apesar de acometer ambos os sexos, o predomínio da CTT é maior no sexo feminino, em idade produtiva, entre 30 e 39 anos6.

O impacto social das cefaleias está associado ao absenteísmo escolar e do trabalho, assim como a redução da produtividade, tanto escolar quanto econômica, na população acometida7,8. O impacto pessoal das cefaleias apresenta relação direta com as alterações de personalidades, do estilo de vida, do estresse físico e psicológico constante. Além disso, os fatores pessoais, como escolaridade, condição financeira e situação conjugal são descritos como capazes de influenciar a apresentação clínica dessa condição de saúde9-11.

A presença de cefaleias em estudantes universitários é cada vez mais comum, superando a presença de dor de cabeça em trabalhadores. Nessa população, supõem-se que exista uma associação da presença das cefaleias a fatores como sobrecarga dos estudantes, estresse, irritabilidade, insônia e depressão. Além disso, as cefaleias podem influenciar as relações familiares e provocar descontentamento com os estudos dos indivíduos acometidos12,13.

De acordo com o modelo biopsicossocial, tão importante quanto identificar a doença é saber se o indivíduo poderá trabalhar, realizar suas atividades diárias no trabalho, na escola ou em outras áreas sociais. Assim, definir e medir as deficiências possibilita desenhar e monitorar o impacto de intervenções em saúde ou relacionadas à saúde. Para isso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) desenvolveu o Programa de avaliação de incapacidade da saúde mundial (Whodas 2.0), que fornece um modelo padronizado de mensuração da saúde e deficiência transculturalmente14. O Whodas 2.0 proporciona um sistema de medição comum para o impacto de qualquer condição de saúde em termos de funcionalidade, mas ainda não foi utilizado para a avaliação de pacientes com cefaleia.

Dessa forma, o objetivo deste estudo foi conhecer os aspectos biopsicossociais da saúde de estudantes e funcionários com cefaleia de uma universidade da cidade de Vila Velha/ES.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo do tipo transversal analítico. Foram convidados a participar da pesquisa os estudantes e os funcionários de uma instituição de ensino superior do município de Vila Velha. A divulgação do projeto foi realizada por mídias sociais da universidade e por cartazes afixados no campus. Os critérios de inclusão foram ser de ambos os sexos, com idade entre 18 e 59 anos, que estudavam ou trabalhavam na universidade e que apresentavam relato de dor de cabeça. Os critérios de exclusão foram fibromialgia, disfunções temporomandibulares, distúrbios neurológicos, cardiovasculares, neoplasia, gestantes ou não preenchimento dos critérios definidos ICDH-3b de diagnóstico. Cinquenta e três indivíduos se inscreveram no projeto, porém foram incluídos os 51 que preencheram os critérios de inclusão.

Foi utilizado um questionário para a avaliação das variáveis sociodemográficas, incluindo questões que classificavam a cefaleia segundo os critérios estabelecidos pela Classificação Internacional de Cefaleia da Sociedade Brasileira de Cefaleia4. A escala analógica visual (EAV) foi utilizada para classificar a intensidade da dor de cabeça no momento da avaliação e a média de dor das cefaleias nos últimos três meses15.

Para graduar a incapacidade causada pela cefaleia em relação à vida profissional e social, foi aplicado o questionário Avaliação de Incapacidade de Enxaqueca (MIDAS). Ele possui sete questões relacionadas ao trabalho, atividades sociais, familiares e de lazer nos últimos três meses, além de analisar a intensidade e frequência dos episódios de cefaleia16,17. O impacto da frequência da cefaleia sobre a qualidade de vida foi avaliadopelo Teste de Impacto de Dor de Cabeça (HIT-6). Esse instrumento apresenta seis itens referentes à dor, funcionamento social, cognitivo psicológico e angústia18,19.

O questionário McGill, desenvolvido para fornecer medidas qualitativas de dor que possam ser analisadas por meio de estatística20, foi utilizado com o objetivo de caracterizar os aspectos sensitivo-discriminativo, afetivo-motivacional, cognitivo, avaliativo e miscelânea dos indivíduos com dor de cabeça pertencentes a esta pesquisa21.

A avaliação da saúde e deficiência foi realizada pelo questionário genérico Programa de avaliação de incapacidade da saúde mundial versão 2.0, 12 itens (Whodas), que possui seis domínios: cognição, mobilidade, autocuidado, relações interpessoais, atividades de vida e participação nos últimos 30 dias14. Também foi avaliada a qualidade do sono pelo Índice de Qualidade do Sono de Pittsburgh (PSQI), por meio de 19 questões que abordavam a qualidade subjetiva do sono, ocorrência de distúrbios, latência, duração, fármaco para auxiliar o sono e a disfunção diária para se manter acordado enquanto se realiza alguma atividade22.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e pesquisa da Instituição sob o parecer nº 3.162.150 de 2019.

Análise estatística

Os resultados foram demonstrados em frequência absoluta e relativa, média e desvio padrão da média. Após o teste de normalidade de Shapiro Wilk, observou-se que as variáveis não possuíam uma distribuição gaussiana e, por isso, para a análise de correlação, utilizou-se o coeficiente de correlação de Spearman. Para identificar a força da correlação entre as variáveis analisadas, assumiu-se que os valores de 0,0-0,29 indicaram correlação fraca, fraca, de 0,30-0,59 moderada, de 0,60 a 0,89 forte e de 0,90 a 1,00 muito forte. Todas as análises estatísticas foram realizadas utilizando o programa Prism Pad Graph 5.0 (GraphPad Software Inc. Califórnia), e um valor de p≤0,05 foi considerado estatisticamente significativo.

RESULTADOS

Foram avaliados 51 participantes com predominância do sexo feminino (n=41, 80,4%), com idade média de 28 anos (mínima = 18 e máxima = 59). A maioria era solteiro (n=38, 74,5%) e não possuía filhos (n=40, 78,4%), e o número de estudantes superou o de funcionários (n=32, 62,7%; n=19, 37,3%, respectivamente) (Tabela 1).

Tabela 1 Características dos participantes da pesquisa (n=51) 

Variáveis Frequência absoluta Frequência relativa (%)
Sexo
Feminino 41 80,4
Masculino 10 19,6
Estado civil
Solteiro 38 74,5
Casado 12 23,5
Divorciado 1 2,0
Profissão
Funcionário 19 37,3
Estudante 32 62,7
Número de filhos
0 40 78,4
1 7 13,7
2 3 5,9
4 1 2,0

As características específicas relacionadas à dor e sua interferência no cotidiano dos indivíduos estão sumarizadas na tabela 2. O tempo médio de percepção do sintoma foi de 105±118,3 meses (mínima =5 meses e máxima =432 meses).

Tabela 2 Características da dor e o efeito na vida diária (n=51) 

Variáveis
Percepção do sintoma (meses)
(Média±DP)
105,0±118,3
Dor atual (Média±DP) 2,3±2,4
Dor nos últimos 3 meses (Média±DP ) 6,6±1,8
Localização da dor Frequência absoluta Frequência relativa (%)
Unilateral 23 45,1
Bilateral 28 54,9
Relação da condição
Melhora 12 23,5
Estável 22 43,1
Piora 17 33,3
Frequência dos sintomas
Menos que 1 vez no mês 7 13,7
1 vez por mês 6 11,8
Muitas vezes no mês 16 31,4
Muitas vezes na semana 15 29,4
Continuamente 7 13,7
Momento em que está pior
Ao levantar-se 8 15,7
Pela manhã 6 11,8
À tarde 19 37,3
À noite 16 31,4
Quando dorme 1 2,0
O dia inteiro 1 2,0
Sintomas presentes
Fotofobia 37 72,5
Náuseas 25 49,0
Vômito 3 5,9
Influência da dor durante o dia
Estresse no trabalho 32 63
Estresse em casa 26 51,0
Comportamento perfeccionista 28 54,9
Redução do apetite 14 27,5
Pouco interesse pelo que faz 13 25,5
Problemas psiquiátricos/psicológicos 22 43,1
Classificação da dor de cabeça
Cefaleia do tipo tensional 23 45,1
Enxaqueca 28 54,9

No momento da entrevista, 29 indivíduos relataram dor de cabeça, com uma média de intensidade da dor de 4±1,8 pela EAV. Já na avaliação da dor dos últimos 3 meses, a média pela EAV foi de 6,6±1,8.

A maioria dos indivíduos relatou dor bilateral (n=28, 54,9%), estável em relação ao início da percepção das dores (n=22, 43,1%), com várias recorrências no mês (n=16, 31,4%), apresentando piora no período da tarde (n=19, 37,3%), além de estar acompanhada principalmente pelo sintoma de fotofobia (n=37, 72,5%), estresse no ambiente de trabalho (n=33, 63%) e em casa (n=26, 51%). A maioria relatou perfeccionismo (n=28, 54,9%).

De forma qualitativa, a dor foi avaliada utilizando o questionário McGill, através dos domínios sensoriais, afetivos, cognitivos e miscelânea. O índice de total de dor foi 42,1±23,3, o que significa um índice de dor moderado. Seus resultados são descritos na tabela 3. A funcionalidade global avaliada pelo Whodas, também é apresentada na tabela 3.

Tabela 3 Aspectos qualitativos da dor e avaliação da funcionalidade global (n=51) 

McGill Média±DP Resultado
Sensorial-discriminativo 16±7,1 Moderada
Afetivo-motivacional 7,6±4,4 Moderada
Cognitivo-avaliativo 2,5±1,2 Moderada
Miscelânea 4,1±2,8 Leve
Índice de dor (Total) 42,1±23,3 Moderada
Whodas
Atividades diárias 3,80±1,56 Moderada
Cognitivo 3,57±1,6 Moderada
Mobilidade 3,61±1,56 Moderada
Autocuidado 2,37±0,96 Leve
Relações interpessoais 3,07±1,56 Moderada
Participação 4,0±1,81 Grave
Total 20,43±6,48

Os resultados relacionados ao grau de incapacidade, impacto e qualidade do sono das pessoas com cefaleia são apresentados na tabela 4. A avaliação do grau de incapacidade da dor através do MIDAS mostrou que a maioria dos indivíduos (n=17, 33,3%) não apresentava incapacidade ou apresentava incapacidade mínima. Esse resultado foi seguido por 14 indivíduos (27,5%) com incapacidade grave. Já o impacto avaliado pelo HIT-6 exibe um predomínio de indivíduos com impacto grave (n=27, 52,9%). Em relação à qualidade do sono avaliada pelo PSQI, 30 indivíduos (58,8%) apresentaram distúrbios do sono.

Tabela 4 Grau de incapacidade, impacto da dor e qualidade do sono (n=51) 

Instrumentos Frequência absoluta Frequência relativa (%)
Incapacidade
Mínima ou nenhuma 17 33,3
Leve 10 19,6
Moderada 10 19,6
Grave 14 27,5
HIT-6
Pouco impacto 6 11,8
Algum impacto 10 19,6
Impacto substancial 8 15,7
Impacto grave 27 52,9
Qualidade do sono
Boa 1 1,9
20 39,2
Distúrbio 30 58,8

HIT-6 = teste de impacto de dor de cabeça.

Na tabela 5 são apresentadas as correlações entre os domínios de funcionalidade abordados pelo instrumento Whodas e as demais variáveis. Observou-se que a idade apresentou baixa correlação (r: 0,290) com o domínio relações interpessoais, e nenhuma correlação com os demais domínios, o sexo feminino obteve correlação moderada apenas com o domínio participação social (r: 0,414) e a frequência dos sintomas denota correlação moderada com o domínio participação interpessoal (r: 0,397). Ao correlacionar os sintomas de fotofobia, identificou-se moderada correlação com a realização de atividades diárias (r: 0,352) e com a mobilidade (r: 0,386). Foi analisada ainda a correlação do Whodas com os instrumentos que avaliam a incapacidade da cefaleia, impacto da cefaleia na qualidade de vida, qualidade do sono e qualidade da dor, sendo observado que o MIDAS e o HIT-6 só não se correlacionaram com o domínio autocuidado, enquanto que o Pittsburg e o McGill não se correlacionaram com nenhum dos domínios do Whodas.

Tabela 5 Correlação entre as variáveis demográficas, a incapacidade, o impacto da cefaleia, a qualidade do sono e a dor com os domínios de funcionalidade global avaliados pelo Whodas 2.0 (n=51) 

Atividade Cognitivo Mobilidade Autocuidado Relações Participação
Idade 0,220 0,072 0,163 0,201 0,290* 0,0056
Sexo 0,179 0,045 0,154 0,050 0,147 0,414*
Frequência dos sintomas 0,254 0,117 0,179 0,250 0,204 0,397*
Psicológico 0,195 0,265 0,176 0,306* 0,251 0,248
Fotofobia 0,352* 0,178 0,386* 0,153 -0,050 0,237
Fonofobia 0,336* 0,111 0,202 0,146 0,054 0,285
MIDAS 0,536* 0,392* 0,552* 0,210 0,289* 0,571*
HIT-6 0,497* 0,295* 0,490* 0,195 0,383* 0,649*
PSQI -0,271 0,135 0,088 0,084 0,007 0,030
McGill 0,198 0,139 0,187 0,150 0,098 0,230

HIT-6 = teste de impacto de dor de cabeça; PSQI = Índice de Qualidade do Sono de Pittsburgh; MIDAS = Avaliação de Incapacidade de Enxaqueca. Valores demonstrados em r (correlação de Spearman);

*p<0,05

DISCUSSÃO

Neste estudo, a maior parte dos indivíduos com dor de cabeça apresentava enxaqueca e com acometimento principalmente em mulheres; já no grupo de estudantes, houve semelhança entre a quantidade de indivíduos com enxaqueca e CTT.

A predominância de indivíduos com enxaqueca na presente pesquisa, principalmente no sexo feminino, corrobora os achados de pesquisa que avaliou as características de 2000 pacientes com cefaleia primária e secundária, com maior incidência de enxaqueca23. Outros estudos encontraram, além da prevalência das cefaleias em mulheres, uma média de idade entre 25 e 55 anos, semelhante aos resultados expostos no presente trabalho6,12. Além disso, observou-se nesta pesquisa que quanto maior a idade, menor o comprometimento das relações interpessoais, o que pode ser justificado pela maturidade e experiência ao longo da vida. As mulheres avaliadas apresentaram maior prejuízo da participação social. Sugere-se que o fato de as mulheres apresentarem crises mais frequentes de dor de cabeça possa ter influência hormonal, principalmente no período menstrual e o estresse6,24,25.

Em relação aos estudantes, houve analogia entre os indivíduos com enxaqueca e CTT, corroborando estudo que incluiu 119 estudantes de uma universidade pública de São Paulo, indicando o início ou a piora das cefaleias após o ingresso nas universidades, resultando em agravos na produtividade de suas atividades estudantis26.

Em relação ao estado civil, estudo apontou que pessoas casadas estão suscetíveis a apresentarem mais episódios de cefaleias, podendo ser justificado pelas demandas ocupacionais e familiares, somadas ao estresse diário27. Porém, o presente estudo constatou que os indivíduos solteiros, a maioria estudantes, apresentavam maior índice de cefaleias. Esse fato relaciona-se a fatores biopsicossociais locais e individuais, à sobrecarga dos estudantes, descontentamento com os estudos, estresse, irritabilidade, insônia e depressão12,13.

As dores de cabeça podem vir acompanhadas de sintomas como fotofobia e/ou fonofobia, náuseas e/ou vômito, o que podem gerar incapacidades auto-observadas nas atividades diárias4,28. Foi encontrada uma prevalência do sintoma de fotofobia associada a um comprometimento da mobilidade dos indivíduos. Além disso, a fotofobia e a fonofobia apresentaram correlação no comprometimento das atividades diárias.

A intensidade da dor autoavaliada nos últimos três meses, por meio da EAV e McGill, apresentou índice de dor moderada. A maioria relatou dor no momento da avaliação, sendo relativamente baixa em comparação aos últimos três meses. Estudo com 90 mulheres divididas em dois grupos (CTT e controle), coletou uma amostra da saliva dos participantes que foi utilizada como marcador indireto na atividade da dor29. Foi observado um aumento do nível da amilase-salivar do grupo experimental, equiparando-se aos resultados obtidos na aplicação do McGill. Esse fato comprova que o McGill é um questionário subjetivo eficaz na mensuração da dor.

As cefaleias estão entre as dez doenças mais incapacitantes no mundo30. O grau de incapacidade demonstrado nesta pesquisa foi avaliado através do questionário MIDAS, no qual foi identificada nenhuma ou mínima incapacidade da dor na maioria dos participantes, em relação aos últimos três meses. Porém, foi encontrado um número importante de indivíduos classificados com incapacidade grave; destes, a maioria apresentava enxaqueca. A associação da enxaqueca com maior grau de incapacidade assemelha-se a estudo que avaliou 198 estudantes universitários com cefaleia, onde foi observada uma maior incapacidade em pacientes com enxaqueca ao comparar com os pacientes com CTT31.

Essa incapacidade avaliada pelo MIDAS se refere às alterações parciais ou completas das atividades de trabalho, domésticas e de lazer32. A maioria dos indivíduos apresentou alterações importantes relacionadas ao presenteísmo, ao reduzirem pela metade ou menos da metade suas atividades por motivo de dor de cabeça. Além disso, quanto maior a incapacidade e o impacto na vida dos indivíduos, maior é o comprometimento da funcionalidade global. Esse resultado pode ser atribuído a um declínio cognitivo durante as crises de cefaleia. Tal declínio advém, principalmente, de uma redução da velocidade processual e de leitura, memória verbal e aprendizagem nas tarefas que requerem atenção33,34. Dessa forma, há impacto negativo na saúde dos indivíduos e isso eventualmente pode impactar economicamente o setor profissional e de assistência à saúde11.

O impacto econômico relacionado ao presenteísmo é 2,6 vezes maior que o número de faltas, principalmente em indivíduos com enxaqueca episódica e crônica35. No presente trabalho, o impacto da dor de cabeça no funcionamento social foi classificado como grave para a maioria dos indivíduos. Fatores individuais, como alterações da personalidade, estilo de vida, estresse físico e psicológico de forma constante, situações econômicas e conjugais, além do grau de escolaridade podem colaborar para esse resultado11.

Apesar da maioria dos indivíduos apresentarem distúrbios relacionados ao sono, não se verificou nenhuma associação à funcionalidade global avaliada. Ao contrário do resultado encontrado nesta pesquisa, alguns autores afirmam que o sono insuficiente pode ser o causador da cefaleia, o que também impacta negativamente nas atividades diárias dos indivíduos36,37. Uma revisão analisou a influência do sono escasso e suas implicações na saúde pública e observou que o sono insuficiente contribui para o surgimento de distúrbios cardiorrespiratórios, psicológicos, diabetes mellitus, enxaqueca, dentre outros38. Essa escassez do sono resulta em alteração do comportamento no ambiente acadêmico e de trabalho, com manifestação de problemas intelectuais, físicos e emocionais.

O Whodas é um instrumento elaborado pela OMS para mensurar a deficiência e a incapacidade, apoiando o modelo da Classificação Internacional de Saúde, em um contexto biopsicossocial, nos domínios cognição, mobilidade, autocuidado, relações interpessoais e atividades de vida39. Apesar da cefaleia ser uma comorbidade comum na população, as suas repercussões sobre as atividades e a participação social, até o momento, não foram descritas na literatura. Não existe estudos com aplicação do instrumento Whodas em pacientes com cefaleia, o que torna este estudo inédito.

Embora os pacientes tenham relatado um moderado comprometimento da qualidade da dor e dos aspectos relacionados ao sono, essas variáveis não se correlacionaram com os aspectos da funcionalidade global avaliados pelo Whodas 2.0. Sugere-se que os domínios do Whodas 2.0, avaliados pelo questionário curto com 12 itens, poderiam ter impedido a discriminação de aspectos da funcionalidade que estariam relacionados a esses fatores. Por outro lado, a qualidade da dor e do sono são aspectos subjetivos e individuais, marcados por condições psicológicas que podem variar com a história do indivíduo. Dessa maneira, em uma amostra, os resultados podem ser bastante variáveis, impedindo uma correlação estatística.

CONCLUSÃO

De acordo com os resultados do presente estudo, a cefaleia é uma afecção que se intensifica à medida que se ampliam as atribuições sociais. Dessa forma, muito além da perspectiva da doença, o presente trabalho, de forma inédita, demonstrou que a avaliação dos fatores pessoais, sociais e familiares é fundamental para compreender o desencadeamento da cefaleia, as influências na sua duração e os fatores potenciais que contribuem para suas complicações.

REFERÊNCIAS

1 Farias N, Buchalla CM. A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde da Organização Mundial da Saúde: Conceitos, Usos e Perspectivas. Rev Bras Epidemiol. 2005;8(2):187-93.
2 Bourke J. The headache in history and culture. Art Med. 2017;389(11):77-8.
3 Rizzoli P, Mullally WJ. Headache. Am J Med. 2018;131(1):17-24.
4 Headache Classification Committee of the International Headache Society (IHS). The International Classification of Headache Disorders, 3rd ed. Cefaleia. 2018;38(1):1-211.
5 Mingels S, Dankaerts W, Granitzer M. Preclinical signs of a temporomandibular disorder in female patients with episodic cervicogenic headache versus asymptomatic controls: a cross-sectional study. PM R. 2019;12.
6 Vetvik KG, MacGregor EA. Sex differences in the epidemiology, clinical features, and pathophysiology of migraine. Lancet Neurol. 2017;(16):76-87.
7 Saylor D, Steiner TJ. The Global Burden of Headache. Semin Neurol. 2018;38(2):182-90.
8 Statculescu AM, Chen Y. Synergism between female gender and high levels of daily stress associated with migraine headaches in Ontario, Canada. Neuroepidemiology. 2018;51(3-4):183-9.
9 Schramm SH, Moebus S, Lehmann N, Galli U, Obermann M, Bock E, et al. The association between stress and headache: a longitudinal population-based study. Cephalalgia. 2015;35(10):853-63.
10 Zampieri MA, Tognola WA, Galego JC. Patients with chronic headache tend to have more psychological symptoms than those with sporadic episodes of pain. Arq Neuropsiquiatr. 2014;72(8):598-602.
11 Muñoz I, Hernández MS, Santos S, Jurado C, Ruiz L, Toribio E, et al. Personality traits in patients with cluster headache: a comparison with migraine patients. J Headache Pain. 2016;17:25.
12 Lebedeva ER, Kobzeva NR, Gilev D, Olesen J. Prevalence of primary headache disorders diagnosed according to ICHD-3 beta in three different social groups. Cephalalgia. 2016;36(6):579-88.
13 Johansson AM, Vikingsson H, Varkey E. The physiotherapist, an untapped resource for headaches: a survey of university students. Eur J Physiother. 2017;20(1):45-50.
14 Ferrer MLP, Perracini MR, Rebustini F, Buchalla CM. WHODAS 2.0-BO: normative data for the assessment of disability in older adults. Rev Saude Publica. 2019;53:19. English, Portuguese.
15 Furtado RN, Ribeiro LH, Abdo Bde A, Descio FJ, Martucci CE Jr, Serruya DC. [Nonspecific low back pain in young adults: associated risk factors]. Rev Bras Reumatol. 2014;54:(5):371-7. Portuguese, English.
16 Vasudha MS, Manjunath NK, Nagendra HR. Changes in MIDAS, perceived stress, frontalis muscle activity and non-steroidal anti-inflammatory drugs usage in patients with migraine headache without aura following ayurveda and yoga compared to controls: an open labeled non-randomized study. Ann Neurosci. 2018;25(4):250-60.
17 Oikonomidi T, Vikelis M, Artemiadis A, Chrousos GP, Darviri C. Reliability and Validity of the Greek Migraine Disability Assessment (MIDAS) Questionnaire. Pharmacoecon Open. 2018;2(1):77-85.
18 Tassorelli C, Diener HC, Dodick DW, Silberstein SD, Lipton RB, Ashina M, et al. Guidelines of the International Headache Society for controlled trials of preventive treatment of chronic migraine in adults. Cephalalgia. 2018;38(5):815-32.
19 Moraska AF, Stenerson L, Butryn N, Krutsch JP, Schmiege SJ, Mann JD. Myofascial trigger point-focused head and neck massage for recurrent tension-type headache: a randomized, placebo-controlled clinical trial. Clin J Pain. 2015;31(2):159-68.
20 Melzack R. The McGill Pain Questionnaire: major properties and scoring methods. Pain. 1975;1(3):277-99.
21 Silva AM, Santos LM, Cerqueira EN, Carvalho ES, Xavier AS. Characterization of pain resulting from perineal trauma in women with vaginal delivery. BrJP. 2018;1(2):158-62.
22 Passos MH, Silva HA, Pitangui AC, Oliveira VM, Lima AS, Araújo RC. Reliability and validity of the Brazilian version of the Pittsburgh Sleep Quality Index in adolescents. J Pediatr. 2017;93(2):200-6.
23 Pedraza MI, Mulero P, Ruíz M, de la Cruz C, Herrero S, Guerrero AL. Characteristics of the first 2,000 patients registered in a specialist headache clinic. Neurologia. 2015;30(4):208-13.
24 Agosti R. Migraine burden of disease: from the patient's experience to a socio-economic view. Headache. 2018;58(1):17-32.
25 Sacco S, Merki-Feld GS, Ægidius KL, Bitzer J, Canonico M, Gantenbein AR, et al. Effect of exogenous estrogens and progestogens on the course of migraine during reproductive age: a consensus statement by the European Headache Federation (EHF) and the European Society of Contraception and Reproductive Health (ESCRH). J Headache Pain. 2018;19(1):76.
26 Andrade AS, Tiraboschi GA, Antunes NA, Viana PV, Zanoto PA, Curilla RT. Vivências acadêmicas e sofrimento psíquico de estudantes de Psicologia. Psicologia: Ciência e Profissão. 2016;36(4):831-46.
27 Pinto JM, Ferreira MM, Costa MB, Garcia SA, Andrade WM, Fernandes CK, et al. Frequência de cefaleia em funcionários dos hospitais de uma cidade da Região Oeste II do estado de Goiás. Rev Fac Montes Belos. 2015;8(1):1-15.
28 Cortez MM, Digre K, Uddin D, Hung M, Blitzer A, Bounsanga J, et al. Validation of a photophobia symptom impact scale. Cephalalgia. 2019;0(0):1-10.
29 Vahedi M, Mazdeh M, Hajilooi M, Farhadian M, Barakian Y, Sadr P. Research paper: the relationship between salivary alpha amylase activity and score of McGill pain questionnaire in patients with tension type headache. Basic Clin Neurosci. 2018;9(1):59-64.
30 Global Burden of Disease study 2017 Collaborators. Global, regional, and national incidence, prevalence, and years lived with disability for 354 diseases and injuries for 195 countries and territories, 1990-2017: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2017. Lancet. 2018;392:1789-858.
31 Queiroz LP, Silva Junior AA. Prevalence and impact of headache in Brazil. Headache. 2015;55(1):32-8.
32 Moura LC, Pereira LB, Moura LC, Pimentel LH. Prevalência de incapacidade por enxaqueca em estudantes de medicina. Rev Bras Neurol Psiquiatr. 2016;20(3):217-29.
33 Gouveia RG, Oliveira AG, Martins I. Cognitive dysfunction during migraine attacks: A study on migraine without aura. Cephalalgia. 2015;35(8):662-74.
34 Baena CP, Goulart AC, Santos IS, Suemoto CK, Lotufo PA, Bensenor IJ. Migraine and cognitive function: Baseline findings from the Brazilian Longitudinal Study of Adult Health: ELSA-Brasil. Cephalalgia. 2018;38(9):1525-34.
35 Leonard M, Raggi A. A narrative review on the burden of migraine: when the burden is the impact on people's life. J Headache Pain. 2019;20(1):41.
36 Kristoffersen ES, Stavem K, Lundqvist C, Russell MB. Excessive daytime sleepiness in secondary chronic headache from the general population. J Headache Pain. 2017;18(1):85.
37 Peñas CFL, Muñoz JJF, Ceña MP, Bravo PP, Méndez MC, Pardo EN. Sleep disturbances in tension-type headache and migraine. Ther Adv Neurol Disord. 2017;11:1-6.
38 Chattu VK, Manzar MD, Kumary S, Burman D, Spence DW, Pandi-Perumal SR. The global problem of insufficient sleep and its serious public health implications. Healthcare. 2018;7(1).
39 Silveira LS, Castro SS, Leite CF, Oliveira NM, Salomão AE, Pereira K. Validade e confiabilidade da versão brasileira do World Health Organization Disability Assessment Schedule em pessoas com cegueira. Fisioter Pesqui. 2019;26(1):22-30.