versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.13 no.2 São Paulo abr./jun. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082015AO3331
A influenza, ou gripe, está presente em todo o mundo, é altamente contagiosa, afeta de forma aguda o sistema respiratório e apresenta morbimortalidade agravada entre idosos, crianças, e entre os portadores de comorbidades.(1)
Embora o quadro clínico dos casos de influenza seja inespecífico, com evolução clínica geralmente benigna e autolimitada, têm-se observado casos com acometimento pulmonar de forma grave, principalmente em grupos de risco para complicações da influenza.(1)
O Ministério da Saúde iniciou no ano 2000 a implantação de um sistema de vigilância da influenza em âmbito nacional.(2,3) Casos de influenza sazonal não são de notificação compulsória no Brasil, mas toda suspeita de surto de influenza sazonal ou influenza humana por novo subtipo deve ser notificada no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) e submetida ao algoritmo de decisão do Regulamento Sanitário Internacional.(4–6)
A pandemia gerou uma necessidade de mudança na vigilância epidemiológica da influenza, tornando-se estratégias da vigilância o monitoramento da gravidade da doença e a detecção das mudanças de virulência do vírus.(6,7)
Na revisão de literatura sobre o assunto, não encontramos, nem em publicações governamentais e nem em publicações acadêmicas,(8–26) uma descrição consolidada dos casos de influenza A(H1N1) pandêmica de 2009 durante a pandemia no Brasil, notificados ao Ministério da Saúde e com consequente desconhecimento mundial.
Descrever os aspectos clínicos dos casos de influenza A(H1N1)pdm09 notificados no Brasil.
Foi desenvolvido um estudo descritivo, utilizando-se dados secundários, nos anos de 2009 e 2010. Os dados foram obtidos a partir da base nacional, do módulo “influenza pandêmica” do SINAN, solicitada ao Ministério da Saúde, com registros identificados nominalmente. Consideraram-se as definições de caso de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) e de SRAG por influenza aquelas do Ministério da Saúde do Brasil.(1) Critérios para caso descartado de SRAG por influenza são: caso em que não tenha sido detectada infecção pelo vírus influenza, caso em que tenha sido diagnosticada outra doença ou casos suspeitos com vínculo epidemiológico a um caso descartado laboratorialmente.(1,27)
Os bancos foram submetidos ao processo de verificação de duplicidade, utilizando-se o software RecLink III®. Para a análise descritiva, foi utilizado o software Epi Info versão 3.5.4.
O projeto foi submetido à Comissão de Ética em Pesquisa Científica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e aprovado em 6 de junho de 2012, sob o parecer 34710, CAAE: 03608412.8.0000.0065.
Foram identificadas e excluídas 173 (0,16%) duplicidades. Considerando os registros mantidos, foram notificados 105.054 casos suspeitos de influenza A(H1N1) pdm09. Desse total, 95.485 (90,9%) foram notificados no ano de 2009 e 9.569 (9,1%) no ano de 2010. Como classificação final, 53.797 (51,20%) dos casos notificados foram classificados como influenza por novo subtipo viral, 40.926 (39,00%) foram descartados, 3.297 (3,10%) foram causados por outro agente infeccioso e 7.034 (6,70%) não foram categorizados.
Obtivemos, como classificação final, 53.797 (56,79%) dos casos notificados encerrados como influenza por novo subtipo viral e 40.926 (43,21%) descartados. A incidência de influenza pandêmica na população no ano de 2009 foi de 28,03/100 mil habitantes e, em 2010, 0,51/100 mil habitantes.
Na avaliação das características epidemiológicas, entre os casos confirmados, 56,73% eram do sexo feminino e, entre os descartados, essa proporção foi de 55,48%. A média de idade dos confirmados foi de 26,31 (desvio padrão DP±18,10) anos e dos descartados, 26,47 (DP±21,63) anos. A mediana de idade para o primeiro grupo foi de 24 (intervalo: zero a 98) anos e, para o segundo grupo, 25 (intervalo: zero a 103) anos.
O registro de início dos sintomas dos primeiros casos ocorreu na semana epidemiológica (SE) 16 de 2009. A SE 31/2009 foi a semana com maior ocorrência de início de sintomas (n=10.132; 10,70%) dos casos notificados e confirmados (n=6.811; 12,66%) (Figura 1).
Figura 1 Distribuição por semana epidemiológica de início de sintomas dos casos notificados por influenza pandêmica A(H1N1)pdm09, segundo classificação final do diagnóstico
A febre foi o sinal mais frequente, sendo registrada em 99,74% dos confirmados e 98,92% dos descartados. A tosse (99,59 e 98,05%) e a dispneia (95,11 e 91,48%) foram os outros sintomas mais frequentes relatados pelos confirmados e descartados, respectivamente.
Entre os confirmados, a presença de comorbidades foi notificada em 32,53% dos casos e entre 38,29% dos descartados. As comorbidades mais frequentemente relatadas pelos casos notificados foram pneumopatia crônica (27,71%), tabagismo (21,84%) e cardiopatia crônica (15,21%) (Figura 2). Outras comorbidades, além das relatadas, foram notificadas em 58,33% dos confirmados e em 59,08% dos descartados.
Entre os confirmados, 65,85% utilizaram o critério clínico-epidemiológico para a classificação final do caso e 34,15%, o laboratorial. Para o descarte dos casos, essas proporções foram 79,36 e 19,57%, respectivamente. Nos casos que evoluíram para óbito, 73,27% foram confirmados por laboratório.
Destacamos que 3,93% dos casos classificados como descartados tiveram amostras processadas por reverse transcription polymerase chain reaction (RT-PCR) com resultado positivo para influenza por novo subtipo viral. Destacamos também 21,20% de culturas negativas nos casos classificados como confirmados e 3,82% de culturas positivas entre os classificados como descartados.
Os exames de raio X de tórax apresentaram mais frequentemente infiltrado intersticial, 57,41% entre os casos confirmados e 54,23% entre os descartados, seguidos por resultado considerado normal em 23,26% dos confirmados e 18,66% dos descartados. A consolidação foi apresentada em 3.968 (9,90%) dos casos notificados, sendo em 1.533 confirmados e 2.435 descartados.
Na avaliação da evolução, 46,42% dos casos confirmados foram hospitalizados e essa proporção foi de 70,38% entre os descartados.
Na análise da evolução dos casos, 47.643 (93,77%) dos confirmados para influenza por novo subtipo viral evoluíram para cura. A taxa de letalidade (2.176/53.797) foi de 4,04%.
Obtivemos como classificação final para as gestantes 3.267 (53,57%) dos casos notificados encerrados como influenza por novo subtipo viral e 2.820 (46,33%) descartados. A incidência de influenza por novo subtipo viral em gestantes em 2009 foi de 97,02/100 mil habitantes e, em 2010, 4,26/100 mil habitantes.
A média da idade dos casos confirmados foi de 25,32 (DP±6,42) anos e dos descartados, 25,89 (DP±6,42) anos. A mediana de idade para ambos os grupos foi de 25 (intervalo: 10 a 49) anos. A moda de idade para os casos confirmados foi de 21 anos e, para os descartados, 23 anos.
Na avaliação da idade gestacional, a maioria das gestantes confirmadas, 1.288 (39,42%), estava no segundo trimestre de gestação, seguida por 1.249 (38,23%) no terceiro trimestre gestacional. Entre as descartadas, 1.125 (39,89%) estavam no segundo trimestre e 1.018 (36,10%) no terceiro. A idade gestacional foi ignorada para 105 (3,21%) das gestantes confirmadas e 84 (2,98%) das descartadas.
O registro de início dos primeiros sintomas ocorreu na SE 17 de 2009. A SE 31 e 32/2009 foram as semanas com maior ocorrência de início de sintomas, sendo 538 e 418 casos notificados confirmados, e 320 e 324 descartados, respectivamente.
Tosse (99,47%), febre (99,39%) e a dispneia (98,27%) foram os sinais e sintomas mais frequentes entre os notificados. Mialgia (68,14%), coriza (57,13%) dor de garganta (54,25%) e calafrio (53,76%) foram os outros sintomas mais referidos (Figura 3).
Figura 3 Proporção dos sinais e sintomas das gestantes notificadas, segundo classificação final do diagnóstico
Entre as confirmadas, a presença de comorbidades foi notificada em 35,48% dos casos e entre 39,01% dos casos descartados.
Entre as gestantes, 56,29% foram confirmadas e 25,39% descartadas por critério laboratorial. Os exames de raio X de tórax apresentaram mais frequentemente o infiltrado intersticial, 636 (55,26%) entre as gestantes confirmadas e 592 (53,48%) entre as descartadas, seguido de resultado considerado normal em 284 (24,67%) das confirmadas e em 295 (26,65%) das descartadas. A consolidação foi apresentada em 189 (8,37%) dos casos notificados, sendo em 93 confirmados e 96 descartados.
Na avaliação da evolução, 74,55% dos casos confirmados foram hospitalizados e essa proporção foi de 76,41% entre os descartados.
Na análise da evolução dos casos, 2.730 das gestantes confirmadas para influenza por novo subtipo viral evoluíram para cura, 5 evoluíram para óbito por outras causas e 307 não possuíam essa informação preenchida. O óbito por influenza ocorreu em 225 dos casos confirmados. A taxa de letalidade (225/3.267) foi de 6,88%.
Como resultado do nosso estudo, encontramos que pessoas do sexo feminino, crianças e adultos jovens foram os mais frequentemente notificados e classificados como casos confirmados de influenza A(H1N1)pdm09. Estes achados reproduzem o que foi encontrado em outros estudos e refletem a composição da população brasileira.(28)
Em 2010, como é de conhecimento internacional, foi realizada a campanha nacional de vacinação contra a influenza, na qual 90 milhões de pessoas foram vacinadas contra o vírus A/H1N1pdm 2009. Embora não seja o ponto focal deste estudo, pudemos observar a grande redução na incidência da doença após a referida campanha – provavelmente um impacto dessa intervenção.
A presença de febre, a tosse e a dispneia foram os sinais e sintomas mais frequentes dos casos classificados como confirmados, descartados e em gestantes do nosso estudo. As manifestações clínicas provocadas pelo vírus pandêmico da influenza são, em geral, ligeiramente mais graves que a infecção causada pelo vírus sazonal. Nas atualizações de definição de caso realizadas pelo Ministério da Saúde, o quadro de SRAG, caracterizada por febre, tosse e dispneia, foi mantido.(1,7,27)
Então, dentre os casos classificados como confirmados para influenza pandêmica, observamos um discreto aumento na proporção de gestantes (35,48%) que apresentaram comorbidades quando comparadas a população geral (32,53%), e na letalidade entre as gestantes (6,88%), em comparação à população geral (4,04%). Isso pode ser um achado importante, que demonstra uma maior gravidade de infecção nas grávidas, ou ser um viés de captação do serviço, já que estes estavam sensíveis para a vigilância e assistência à população reconhecida como de maior risco.
Referente à presença de comorbidades, na população do nosso estudo, encontramos proporções próximas (32,53% dos confirmados, 38,29% dos descartados, 35,48% das gestantes confirmadas, 39,01% das gestantes descartadas e 58,99% dos óbitos) a de outros estudos.(9,14,16,18,22,24,29)
Podemos observar que nossos achados, tanto de sinais e sintomas, quanto sobre as comorbidades, são semelhantes aos encontrados na literatura. Pacientes com a tríade característica de SRAG (febre, tosse e dispneia), idade menor de 2 anos ou maior de 60 anos, imunodeprimidos, portadores de doença crônica e gestantes são grupos mais vulneráveis para o agravamento do quadro da infecção pelo vírus influenza H1N1 pandêmico.(1,7,17,27)
Com o passar da pandemia, mais casos foram classificados como confirmados por meio do critério clínico-epidemiológico, o que é esperado (e o que foi determinado) em situação de pandemia com perfil de transmissão de doença respiratória. Levantamos aqui a hipótese de um erro de classificação dos casos. Decidimos por não reclassificar os casos e analisar um novo cenário, pois essa situação reflete a realidade do sistema de informação e reforça a discussão sobre a qualidade dos dados.
Manifestações clínicas e radiológicas na infecção pelo vírus influenza não são específicas.(8,15,18,23,29) Como mencionado, o quadro clínico é similar ao das demais infecções respiratórias, podendo ser agravado por características do agente infeccioso ou pela condição do hospedeiro, que, até então, não estavam associadas à carga viral e nem à severidade dos sintomas. O achado de infiltrado intersticial no exame de raio X não acrescenta como diagnóstico diferencial, pois o mesmo pode representar o quadro clínico de diversas moléstias, geralmente referido em processos de natureza inflamatória ou como uma resposta imunológica local exacerbada.
A taxa de letalidade encontrada em nosso estudo é condizente com as outras taxas disponibilizadas na literatura consultada para esta discussão.
As informações dos casos notificados representam apenas os casos captados pelo sistema de vigilância de doenças de notificação compulsória, sendo necessário considerar diferentes fontes de informação para monitoramento epidemiológico.
A subnotificação de casos no SINAN não deveria ocorrer, pois a influenza humana por novo subtipo viral é de notificação compulsória para fins de vigilância em saúde,(4) mas, sabidamente é esta e a qualidade dos dados são as principais limitações encontradas em estudos com dados secundários.
O perfil epidemiológico dos casos classificados como confirmados para influenza pandêmica encontrado em nosso estudo não agregou características que denotassem atenção a grupos específicos no perfil da epidemia. Embora a faixa etária dos acometidos (crianças e adultos jovens) difira parcialmente do perfil esperado para os casos de influenza sazonal (menores de 2 anos de idade e maiores de 60 anos), não foram encontradas diferenças na descrição entre casos classificados como confirmados e descartados.
Referente ao perfil epidemiológico das gestantes, os achados do nosso estudo sugeriram uma maior morbimortalidade para este grupo. A gravidade da infecção pelo vírus influenza nas gestantes pode estar relacionada com as próprias alterações que o processo gestacional desencadeia no organismo feminino, com sobrecarga dos sistemas circulatório, respiratório e imunológico. Essa população é submetida a maiores cuidados, pois rotineiramente apresenta melhor aderência aos serviços, uma vez que está inserida sistematicamente para acompanhamento de pré-natal. Desta forma, a melhor atenção do cuidado dos profissionais com as gestantes pode ter contribuído para uma maior detecção de suspeitos e confirmação diagnóstica e, consequentemente, a menores taxas de complicações, internações e mortalidade neste grupo.
Em nosso estudo, o perfil observado em relação ao quadro clínico de influenza pandêmica, bem como os grupos mais vulneráveis e com pior prognóstico, foi semelhante ao já descrito em outros estudos. A combinação adulto jovem-obesidade parece requerer mais atenção para evitar a evolução para quadros de maior gravidade da infecção.
A maior proporção de comorbidades registradas nos casos classificados como descartados sugeriu que a população estava informada sobre as características da sintomatologia da infecção pelo vírus pandêmico, alerta para as condições de risco e orientada para buscar pelos serviços de saúde. Sugeriu, consequentemente, a sensibilidade do sistema de saúde para com estes grupos de risco e que a qualidade do cuidado pode ter favorecido a uma menor mortalidade.
A investigação de exame de raios X de tórax na ficha do SINAN, apresentou resultado para a conduta clínica, e não para a vigilância epidemiológica.
Um dos destaques deste estudo foi a qualidade dos dados do SINAN, o que tornou nítida a necessidade de crítica de consistência do sistema para essa doença. Recomendamos aos profissionais de saúde que, diante de casos de influenza pandêmica que apresentem severidade do quadro clínico, comorbidades ou que estejam gestantes, seja considerada a assistência hospitalar, pois estes fatores compõem um pior prognóstico do quadro da infecção pelo vírus pandêmico da influenza.