versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.12 no.2 São Paulo abr./jun. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082014AO3025
A etiologia reumática predomina como principal causa de valvopatia no Brasil,(1) bem diferente da Europa e dos Estados Unidos, onde as doenças degenerativas representam a principal causa.(2)
No Brasil, a população está envelhecendo. A expectativa de vida ao nascer, segundo dados do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS), está em torno de 73 anos(3) e esse envelhecimento tem aumentado o diagnóstico de doenças valvares de etiologia degenerativa, acompanhadas, com frequência, de comorbidades idade-dependentes.
Esse tipo de paciente é um verdadeiro desafio para o clínico que está na linha de frente do atendimento, uma vez que as comorbidades, somadas à doença valvar de base, tornam o tratamento complexo, e os desfechos clínicos nem sempre são satisfatórios.
Diante dessa complexidade crescente, especialistas em doença valvar têm proposto, junto das sociedades de cardiologia, a abordagem desses pacientes com um time multidisciplinar de profissionais (the heart team), que inclui cardiologistas, pneumologistas, geriatras, cirurgião cardíaco, nutricionistas, radiologistas, hemodinamicistas e psicólogos, entre outros.
No sistema de saúde brasileiro, os hospitais universitários são peças fundamentais, pois são referências para os casos de alta complexidade em todo território nacional. Contudo, pelas dificuldades de acesso encontradas em nosso sistema de saúde, os pacientes que deveriam receber cuidados preventivos em fases inicias da doença valvar nas unidades básicas de saúde acabam chegando aos hospitais terciários e quaternários em estágios avançados da cardiopatia valvar, necessitando de intervenções em caráter emergencial via pronto atendimento.
As características clínicas e as comorbidades dos pacientes com doença valvar que chegam descompensados no pronto atendimento são desconhecidas. Logo, é fundamental, para o clínico, conhecer o perfil epidemiológico, clínico e ecocardiográfico dos portadores de doença valvar que chegam no serviço de pronto atendimento.
Avaliar o perfil epidemiológico, clínico e ecocardiográfico dos pacientes com doença valvar que chegam descompensados no pronto atendimento de um hospital universitário de referência nacional.
Análise descritiva de dados clínicos e ecocardiográficos de 174 pacientes consecutivos portadores de doença valvar grave, que apresentaram descompensação clínica e que procuraram atendimento no pronto-socorro, permanecendo internados em um hospital terciário de cardiologia do Estado de São Paulo no ano de 2009.
Todos os pacientes deveriam ter como diagnóstico principal e motivo da descompensação clínica a doença valvar, que, independentemente do tipo de valvopatia, foi confirmada por equipe da unidade de valvopatia clínica, além de avaliação ecocardiográfica. Todos pacientes encontravam-se em classe funcional III/IV da New York Heart Association.
As variáveis coletadas na admissão do perfil clínico foram:
Idade
Gênero
Valvopatia de base
Etiologia da doença valvar (baseada em história clínica, exame físico e ecocardiograma)
Comorbidades: hipertensão arterial que foi definida como pressão arterial >140x90mmHg ou uso de antihipertensivos; diabetes mellitus definida como necessidade de hipoglicemiantes orais e/ou insulina coronariopatia; arteriopatia periférica e alteração neurológica prévia
Cirurgia cardíaca prévia
Presença de prótese valvar
Fibrilação atrial (paroxística, persistente e permanente)
Medicamentos em uso pelo paciente.
No ecocardiograma após internação foram registrados: diâmetros ventriculares e atrial esquerdo; pressão sistólica de artéria pulmonar (PSAP); função diastólica (padrão de enchimento ventricular); fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE); estimativa da função do ventrículo direito; e análise das válvulas. A PSAP foi categorizada em dois grupos: pressão elevada, se PSAP >30mmHg, e normal, se PSAP <30mmHg. FEVE >50% foi considerada normal e FEVE <50%, diminuída.
Variáveis contínuas foram expressas na forma de média e desvio padrão (distribuição normal), e de mediana e variação interquartil (distribuição assimétrica). As variáveis categóricas foram expressas na forma de frequências absolutas e relativas. O protocolo de pesquisa foi aprovado na Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa (Cappesq) em 7 de abril de 2010, com protocolo número 0155/10.
Dentre os 174 pacientes avaliados, a média de idade foi de 56±17 anos e 54% eram do gênero feminino, a principal etiologia da doença valvar foi a reumática com 60%, seguida pela doença degenerativa, com 15% (Tabela 1). A valvopatia mais comumente observada de forma isolada foi a insuficiência mitral (27,5%), seguida por estenose aórtica (23%). Em relação às comorbidades, 51% tinham diagnóstico de hipertensão arterial, 16% diabetes mellitus e 44% fibrilação atrial. Mais de um terço dos pacientes já tinha sido submetido a outra cirurgia cardíaca valvar e 95% deles colocaram prótese biológica. A disfunção de prótese valvar foi motivo de internação em 9,2%; a principal prótese foi a mitral, com 8,1%, seguida pela aórtica. Tinham associação com doença coronariana 17% dos pacientes (Tabela 1).
Tabela 1 Características dos pacientes
Achados clínicos | Média e/ou % |
---|---|
Idade, anos | 56±17 |
Gênero feminino | 54 |
Hipertensão arterial | 51 |
Diabetes mellitus | 16 |
Fibrilação atrial | 44 |
Reoperações | 37 |
Doença valvar | |
Insuficiência mitral | 27,5 |
Estenose aórtica | 23 |
Insuficiência aórtica | 13 |
Estenose mitral | 11 |
Etiologia | |
Reumática | 60 |
Doença degenerativa aórtica | 15 |
Prolapso de valva mitral | 13 |
Endocardite | 9 |
Outros* | 3 |
Em relação ao uso de medicação, 80% usavam diuréticos, 55% inibidores de enzima conversora, 33% antagonista de aldosterona, 44% digoxina, 35% betabloqueadores, 17% aspirina, 25% anticoagulantes e 10% amiodarona (Tabela 2).
Tabela 2 Medicações em uso
Medicações | Uso (%) |
---|---|
Diuréticos | 80 |
Inibidores de enzima conversora | 55 |
Inibidores do receptor de angiotensina II | 12 |
Antagonistas de cálcio* | 13 |
Digoxina | 44 |
Betabloqueadores** | 35 |
Antagonista de aldosterona | 33 |
Aspirina | 17 |
Anticoagulantes | 25 |
Estatinas | 27 |
Amiodarona | 10 |
Hidralazina/nitrato | 12 |
Em relação aos parâmetros ecocardiográficos (Tabela 3), a média do ventrículo esquerdo na sístole foi de 38±12mm e na diástole foi de 54±12mm. A média da FEVE foi 56±13%. FEVE foi classificada como normal (FEVE>50%) em 77% e diminuída (FEVE<50%) em 23%. A PSAP média foi de 53±6mmHg, sendo que 55% dos pacientes apresentaram pressão pulmonar elevada (PSAP>30mmHg) e 45% tinham PSAP<30mmHg. Todos os pacientes estavam em classe funcional III ou IV no momento da admissão na unidade de pronto atendimento e o principal motivo da descompensação clínica foi a evolução da doença de base. A maioria dos pacientes já tinha sido avaliada por especialistas no ambulatório e mais de 90% deles já estavam em programação de cirurgia por evolução dos sintomas e parâmetros ecocardiográficos.
Tabela 3 Parâmetros ecocardiográficos
Ecocardiograma | Valores |
---|---|
Átrio esquerdo, mm | 48±12 |
DSVE, mm | 38±12 |
DDVE, mm | 54±12 |
FEVE, % | 56±13 |
PSAP, mmHg | 53±16 |
Os principais achados desse estudo foram: a maioria dos pacientes com doença valvar atendidos na emergência apresentam etiologia reumática; apesar da principal etiologia ser reumática, a média etária dos pacientes foi acima do esperado para essa etiologia; uma parcela significativa dos pacientes atendidos já tinha sido submetida à cirurgia cardíaca valvar; a maioria dos pacientes atendidos já estava em programação cirúrgica.
Na doença reumática, a erradicação do quadro infeccioso de orofaringe abortaria o aparecimento da doença imune e suas complicações.(4) Entretanto, no Brasil, a assistência básica e o acesso aos serviços de saúde estão longe do ideal, e a febre reumática ainda tem incidência elevada. Em nosso estudo, de fato, a etiologia reumática foi a mais frequente. De modo geral, os pacientes reumáticos são acometidos em idade mais jovem (escolares e adolescência) e, dependendo do grau de comprometimento valvar, as repercussões podem se manifestar em idades muito precoces. Existe um predomínio em pacientes do gênero feminino e a principal válvula acometida é a mitral.
Em nosso estudo, a maioria dos pacientes era do gênero feminino, e o acometimento mitral foi bastante comum. Entretanto, a média etária dos pacientes esteve acima do esperado (considerando a etiologia reumática). Destacamos que os pacientes apresentavam doença valvar em estágios mais avançados, caracterizados por cirurgia valvar prévia e presença frequente de fibrilação atrial e hipertensão pulmonar.
Na história natural da valvopatia, a presença de sintomas relacionados com a doença valvar é a principal indicação da correção da valvopatia. No entanto, alguns parâmetros ecocardiográficos, como função ventricular, pressão de artéria pulmonar e diâmetros ventriculares, também são levados em conta para a indicação de intervenção.(1)Particularmente, a presença de fibrilação atrial e a hipertensão pulmonar também têm implicações prognósticas. A pressão de artéria pulmonar está relacionada a risco aumentado de óbito e insuficiência cardíaca.(5)
A fibrilação atrial, que é responsável por reduzir o débito cardíaco e predispor a eventos tromboembólicos,(6)também é preditora independente de risco de óbito no pós-operatório de cirurgia cardíaca, como exposto no escore STS de risco.(7)
Outra característica marcante dessa população foi a quantidade de cirurgias prévias que, nesse caso, pode ser explicado pela etiologia reumática, na qual a primeira cirurgia acontece em idade jovem havendo preferência institucional por bioprótese. Essa escolha é norteada por dois motivos principais: nas mulheres em idade reprodutiva, o uso de anticoagulantes crônicos dificultaria a gestação e, com a prótese mecânica, o uso dessa medicação é obrigatória, o que não acontece com a bioprótese; em segundo lugar, a dificuldade de acesso a assistência médica e o baixo nível educacional estariam inversamente relacionados a uma boa aderência aos anticoagulantes orais e ao seu adequado controle.(8)
No que tange à cirurgia em jovens, sabemos que a durabilidade de uma prótese biológica pode ser de até 15 a 20 anos, na melhor das hipóteses, mas sua disfunção ao longo do tempo pode acontecer em qualquer momento do acompanhamento. Esse fato constituiria mais um fator para explicar a alta incidência de reoperações.
A média da função ventricular não foi tão baixa como esperado na população com sintomas importantes (classe funcional III/IV), mas muitos casos eram de portadores de insuficiência mitral isolada ou combinada, o que sabidamente superestima a função ventricular.
A maioria dos pacientes já foi avaliada por especialistas no ambulatório e mais de 90% deles já estavam em programação de cirurgia. Entretanto, pela desproporção entre procura e disponibilidade para intervenção em procedimento cirúrgico programado, em muitos casos os pacientes aguardam pelo tratamento, sendo acompanhados clinicamente de forma ambulatorial. Nesse período, muitos pacientes acabam internados em condições desfavoráveis e em estágios avançados de mal adaptação cardíaca. A cirurgia não programada, em caráter de urgência, é uma realidade em nosso país em razão da grande demanda, da má distribuição e da desorganização do sistema de saúde. Esse atraso já foi descrito em outros centros do mundo.(9)
A cirurgia deflagrada via pronto-socorro é uma variável independente de risco operatório e, nos principais escores de risco para cirurgia cardíaca, como o EuroSCORE, representa uma variável independente de risco.(10)
Trata-se de um estudo descritivo, unicêntrico e limitado no tempo, sem possibilidades de inferências. Entretanto agrega informações relevantes de “mundo real” por ter sido realizado em um centro de atendimento cardiológico de referência no atendimento de doença valvar de alta complexidade.
Apesar do aumento das comorbidades e fatores de risco idade-dependentes comumente descritos nos portadores de cardiopatia valvar, o perfil clínico dos pacientes que chegam ao pronto atendimento representou uma coorte típica de pacientes reumáticos em estágios mais avançados de doença. Predominaram doença mitral, pacientes jovens (comparados a coortes internacionais de valvopatas), alto índice de reoperações e hipertensão pulmonar. Esses pacientes requerem atendimento prioritário e em serviço especializado de alta complexidade.