versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.30 no.2 São Paulo 2018 Epub 17-Maio-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182017181
A artrogripose é uma síndrome múltipla congênita rara (1-3), com caráter não progressivo, tendo como características clínicas malformações, bem como o enrijecimento e contrações articulares. Suas manifestações se iniciam durante o período de desenvolvimento embrionário na vida intrauterina(1,2).
Trata-se, então, de uma doença congênita que, por sua raridade, possui prevalência de 1:300 por 5000 nascidos vivos e que comporta em sua sintomatologia clínica mais de 150 transtornos diferentes(3). Existem vários tipos de artrogripose, todos eles estão relacionados à acinesia fetal, isto é, diminuição do movimento do feto (4), em que o mais comum é a amioplasia, cuja prevalência é de um em cada 10.000 casos(5,6).
O diagnóstico é frequentemente realizado após o parto, devido a não observância da movimentação do feto durante o período pré-natal (7).
As características clínicas mais comuns da doença são: ombros virados para dentro (em abdução), contraturas de joelhos, deformidades de extensão nos cotovelos, contraturas de flexão nos dedos e punho e luxação de quadris e joelho(8). Outras ocorrências clínicas possíveis são intercorrências na alimentação, o que ocorre em função do enrijecimento articular – característico da artrogripose(1,2) - que afeta a mandíbula, repercutindo em rigidez lingual(8).
O acompanhamento médico e terapêutico de um paciente com a doença deve ser, a partir do diagnóstico, multidisciplinar. Inclui médicos, geneticistas e cirurgiões, psicólogos, assistentes sociais, fonoaudiólogos e fisioterapeutas, sendo que todos esses manejos e cuidados propiciarão melhor qualidade de vida para o paciente(4).
Os estudos relacionados à artrogripose buscam investigar as características gerais da malformação. A literatura existente não explora as intercorrências alimentares, assim como não comenta as características relacionadas à função de deglutição e/ou outras interferências da doença na motricidade orofacial. Este relato de caso busca descrever a manifestação funcional relacionada à fonoaudiologia através do processo de avaliação em um caso de artrogripose em pediatria.
Estudo de caso realizado com a aprovação do Comitê de Ética em pesquisa – CEP, do Hospital da Criança Santo Antônio do Complexo Hospitalar Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (ISCMPA) sob o número 1900382. O responsável pela criança assinou o termo de consentimento informado para análise e divulgação dos dados em eventos e/ou revistas científicas.
O paciente em questão, foi encaminhado para o ambulatório de especialidades do Sistema Único de Saúde – SUS, do hospital infantil, Hospital da Criança Santo Antônio, que faz parte do complexo hospitalar da ISCMPA, com dezessete meses, quando foi realizada a avaliação Fonoaudiológica utilizando o Protocolo de Avaliação de Disfagia Pediátrica (PAD-PED)(9), devido à queixa de transtorno de deglutição e do uso contínuo de sonda de alimentação nasoentérica desde os primeiros dias de vida.
O PAD-PED é uma proposta de protocolo de avaliação clínica da disfagia pediátrica, baseada em evidências científicas, que busca identificar as alterações na dinâmica da deglutição em crianças, considerando as etapas do desenvolvimento do sistema estomatognático, assim como caracterizar os sinais clínicos sugestivos de penetração/aspiração laringotraqueal. Este protocolo avalia o impacto da disfagia na funcionalidade da alimentação e auxilia na conduta mais acertada no quadro clínico estabelecido, a partir dos resultados da avaliação(9).
O paciente foi submetido à avaliação do desenvolvimento neuropsicológico através do Teste de Denver II, que se trata de um teste de rastreamento de risco de desenvolvimento infantil.
A rotina dos recém-nascidos internados na unidade de tratamento intensivo neonatal (UTI-Neo) do hospital e maternidade Mario Totta, que faz parte do complexo hospitalar ISCMPA e, é de submissão à Triagem Auditiva Neonatal (TAN), assim como o ambulatório de especialidades de Fonoaudiologia contempla o encaminhamento para avaliação audiológica dos pacientes sob seus cuidados. Na TAN, o paciente falhou, apresentando risco para perda auditiva. Após a avaliação fonoaudiológica, ele foi submetido à avaliação auditiva através de audiometria por condicionamento de respostas de orientação, em campo livre para tons puros warble, com equipamento PA-5 da Interacoustics®.
Trata-se de uma criança do gênero masculino, cuja história pregressa é de parto cesáreo com idade gestacional – IG de 39s, natural do interior do estado, encaminhado para a UTINeo devido a presença de fraturas congênitas e dificuldades na amamentação, onde permaneceu durante os dois primeiros meses de vida, para elucidação diagnóstica e estabilidade do quadro clínico.
De acordo com dados de anamnese inicial, a mãe relata que a criança mamou pouco nos primeiros dias de vida e, quando da sua internação na UTI-Neo, teve a alimentação por via oral (VO) interrompida e introduzida a dieta por sonda nasoentérica (SNE). Durante essa internação, o paciente recebeu acompanhamento fonoaudiológico diário e foi orientado que não era aconselhado que recebesse alimentação por VO devido ao risco de aspiração laringotraqueal.
Em sua primeira avaliação clínica, realizada no quinto dia de vida, durante o seu período de internação na UTINeo, constam no prontuário do paciente: palato plano; postura de lábios entreaberta com língua elevada; reflexos orais de busca, mordida e vômito ausentes; reflexo de sução débil; movimentação de mandíbula e língua alteradas; sucções fracas, com padrão menor que cinco sucções/pausa, arrítmicas; incoordenação sucção-deglutição-respiração (S-D-R). Em teste de VO com seringa de 1 ml, associado a sucção de dedo enluvado, foi observado acúmulo de leite em cavidade oral, com leve escape anterior.
Ainda nesse período de internação (na UTINeo), foi realizada a TAN, quando se obtiveram os seguintes resultados: Emissão Otoacústica Evocadas por Transientes (EOAET) e potencial evocado auditivo de tronco encefálico automático (PEATE A) – falhou em A. Aos dois meses de vida, recebeu alta da UTINeo com encaminhamento para avaliação genética, para realização de exame de audição para diagnóstico através do Potencial Evocado Auditivo de Tronco Encefálico (PEATE – diagnóstico) e atendimento clínico em Ambulatório de Fonoaudiologia. A realização do PEATE – diagnóstico devido ao risco de perda auditiva não foi concluído até os 19 meses, pela dificuldade do menino em se manter adormecido.
O diagnóstico de artrogripose ocorreu com 12 meses e 27 dias, tendo como características clínicas do seu quadro diagnóstico a fratura congênita de úmero, pé torto congênito e assimetria craniofacial.
Com 17 meses, o paciente foi acolhido no Ambulatório de Fonoaudiologia, quando foi realizada a reavaliação utilizando-se o protocolo de avaliação PAD-PED, através do qual estabeleceu-se o diagnóstico de disfagia orofaríngea de grau grave, pois, ao exame estrutural e funcional, se observaram: lábios evertidos, com postura aberta, tônus adequado e ausência de mobilidade; postura de língua em repouso simétrica, no assoalho bucal e mobilidade reduzida; tônus preservado para língua e bochechas; presença de dentes (incisivos centrais superior e inferior); qualidade vocal dentro dos padrões de normalidade, verificados em choro. Na avaliação de deglutição com saliva e líquidos, observaram-se sialoestase e sialorreia e ausência de movimento ou de deglutição. Na avaliação com líquidos, verificou-se escape anterior pelas comissuras labiais. As características de incoordenação da S-D-R, observadas em exame inicial, mantiveram-se nessa avaliação clínica. O paciente permaneceu choroso durante todo o atendimento, o que dificultou a complementação da testagem.
Na avaliação do desenvolvimento neuropsicológico, se observou atraso, com marcos de não sentar sem apoio e não engatinhar.
Com 20 meses, ele foi submetido à audiometria por condicionamento de respostas de orientação, cujos níveis mínimos de respostas em campo livre para tons puros warble, com equipamento PA-5 (Interacoustics) permitiram estabelecer que as respostas sugerem provável perda auditiva bilateral, de grau mínimo/leve na orelha direita e de grau superior na orelha esquerda. Observou-se, também, ausência de reflexo cocleopalpebral para estímulo sonoro superior a 90 dB e resposta para comandos verbais (viva-voz) compatíveis com nível II de Azevedo(10). Os níveis mínimos de respostas encontram-se expostos no Quadro 1 . Os achados audiométricos demostram, também, atraso no desenvolvimento da função auditiva.
Quadro 1 Respostas auditivas do tipo localização da fonte sonora
Níveis mínimos de respostas (dBNA) | 500 Hz | 1000 Hz | 2000 Hz | 4000 Hz |
---|---|---|---|---|
Para o lado direito | 30 | 20 | 20 | 20 |
Para o lado esquerdo | 40 * | 30 * | 40 * | 30 |
* Resposta de localização para o lado direito; dBNA – nível de audição em decibéis; Hz – Hertz
Desde os 19 meses, o menino está em acompanhamento com a equipe da cirurgia bucomaxilofacial, pediatria, cirurgia torácica, fonoaudiologia e fisioterapia. Recebeu alta da genética.
Os estudos relacionados à artrogripose buscam investigar as características gerais da enfermidade e estão relacionados ao enrijecimento e contrações articulares. Nossa observação atenta-se para as intercorrências fonoaudiológicas que essa síndrome altera, sem dados na literatura.
A rigidez articular, referida na literatura(1,2), apresentada pelo paciente em questão com assimetria craniofacial e de mandíbula, altera a sua mobilidade orofacial, gerando problemas de alimentação, sendo que tal dificuldade está evidenciada no quadro de disfagia pediátrica. A disfagia é definida como qualquer alteração no trânsito de alimento da cavidade oral até o estômago(9), podendo ocorrer penetração ou aspiração de alimento durante o processo de alimentação(11).
O diagnóstico de disfagia orofaríngea grave estabelecido caracteriza o quadro clínico com impossibilidade de alimentação por VO, devido ao alto risco de aspiração presumido.
O quadro clínico estabelecido, resultante das alterações no processo de deglutição que o paciente apresenta, pode, pelas características desse distúrbio, apresentar alterações em uma das fases da deglutição, sendo essas: oral, faríngea e esofágica(12,13). No caso em questão, evidencia-se o comprometimento orofaríngeo da deglutição, com alteração de postura e mobilidade orofacial e a ausência de reflexo protetor de tosse. As ocorrências de sialoestase e sialorreia demonstram a dificuldade no controle da saliva, podendo necessitar medidas de controle de aspiração de saliva.
A indicação e uso de via alternativa de alimentação é a opção segura para o caso nesse momento, pois a nutrição enteral com uso de sondas e/ou ostomias é indicada na impossibilidade de ingestão oral (14). Com base no quadro clínico do paciente, ele foi encaminhado para o serviço de gastroenterologia pediátrica com a indicação da gastrostomia percutânea endoscópica, devido à necessita de dieta enteral por período superior a um mês(15).
Em referência aos resultados da avaliação auditiva e a indicação de provável perda auditiva bilateral, infere-se que tal condição possa estar diretamente ligada à característica clínica de enrijecimento muscular e contrações articulares, e essa deverá ser elucidada com a complementação de exames de diagnóstico por avaliações fisiológicas da audição. Em vista dos achados audiológicos, o paciente foi encaminhado para o serviço de otorrinolaringologia pediátrica para que, a critério médico, tais investigações possam ser continuadas.
O desconforto do paciente durante o atendimento clínico, o choro constante ao toque e falha na interação interpessoal podem ser justificados pela constante manipulação médica/clínica, aliada ao atraso no seu desenvolvimento neuropsicológico. Sabe-se que o processo de hospitalização pode determinar agravos emocionais assim como sociais e podem desencadear ou intensificar o sofrimento imposto pela mudança de hábitos.
As características clínicas da artrogripose, devido ao enrijecimento muscular e contrações articulares, que acometem a região de cabeça e pescoço possibilitam intercorrências fonoaudiológicas, desencadeando alterações estruturais e funcionais orofaciais, favorecendo a ocorrência do quadro de disfagia orofaríngea. Associa-se ao quadro, a perda auditiva.