versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.28 no.3 São Paulo mai./un. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20162015170
A audição, associada aos aspectos motores e de cognição, é determinante no desenvolvimento da linguagem oral e escrita. O processo de transformação do estímulo acústico desde sua detecção até sua compreensão e interpretação é chamado de processamento auditivo(1).
O processamento auditivo temporal é o processamento do sinal acústico em função do tempo de recepção, auxiliando a detecção ou discriminação dos estímulos que são apresentados numa rápida sucessão de tempo(2,3). Entre as habilidades relacionadas aos aspectos temporais auditivos ou processamento temporal estão incluídos: mascaramento, integração, ordenação e resolução temporal.
A habilidade auditiva de ordenação temporal simples refere-se ao processamento de dois ou mais estímulos auditivos em determinada ordenação de ocorrência no tempo. Este comportamento auditivo permite ao indivíduo discriminar a correta ordem de ocorrência dos sons(4).
A resolução temporal refere-se à habilidade do sistema auditivo em detectar dentro de um estímulo sonoro, mudanças rápidas e bruscas, ou seja, trata-se do intervalo de tempo mínimo necessário para a discriminação de eventos acústicos diferentes(2,3).
As habilidades de ordenação e resolução temporal, de acordo com a literatura, exercem funções na percepção e compreensão da fala humana, logo constituem pré-requisito para habilidades linguísticas(5). A alteração da percepção auditiva pode trazer problemas no desenvolvimento da fala e linguagem, bem como na aprendizagem e socialização de crianças(6). Estudo longitudinal com 236 crianças alemãs, acompanhadas por vinte meses, constatou que o processamento temporal auditivo tem influência causal no desenvolvimento da alfabetização(7).
Há evidências de que os aspectos temporais auditivos são a base do processamento auditivo, principalmente em relação à percepção de fala no que diz respeito à sonoridade, duração e ordenação dos fonemas e discriminação de palavras(4,8), devendo, portanto, ser analisado durante o processo diagnóstico(2).
Além das questões relacionadas ao processamento temporal auditivo, as características socioeconômicas e os riscos sociais podem exercer grande influência no desenvolvimento cognitivo e de linguagem da criança(9). Estudos têm revelado que comumente as crianças com dificuldades escolares têm comprometimento de ordem emocional, comportamental(10) e aspectos temporais auditivos(6,11).
Dessa forma, este estudo teve como objetivo investigar os aspectos temporais auditivos de crianças de 7 a 12 anos de idade com mau desempenho escolar e a associação com aspectos comportamentais, percepção de saúde, perfil escolar, de saúde e fatores sociodemográficos.
Trata-se de estudo observacional analítico transversal com amostra probabilística de crianças de 7 a 12 anos de idade, com mau desempenho escolar das escolas públicas municipais de uma cidade com aproximadamente 86 mil habitantes, localizada no interior de Minas Gerais, participantes dos Atendimentos Educacionais Especializados (AEE)(12). O AEE é um serviço da educação especial que identifica, elabora e organiza recursos pedagógicos e de acessibilidade, considerando as necessidades específicas das crianças. Para participarem desses atendimentos, as crianças deveriam ter necessariamente mau desempenho escolar de acordo com a avaliação dos professores.
Os escolares e seus responsáveis foram convidados a participar da pesquisa e os que concordaram assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE. Foram excluídos os participantes que não realizaram todas as avaliações propostas ou que tiveram questionários incompletos; com evidências ou histórico de alterações neurológicas, cognitivas e /ou psiquiátricas; com diagnóstico prévio de perda auditiva, crianças com acúmulo de cerúmen no meato acústico externo e as com Emissões Otoacústicas Transientes ausentes.
Foi realizado o cálculo amostral que considerou 9% de erro amostral, intervalo de 95% de confiança e 50% de prevalência, atentando para a gama de desfechos de interesse. Considerando os critérios apresentados, foi estimada uma amostra de 90 crianças (Figura 1).
A coleta de dados foi realizada em uma Instituição de atendimento multidisciplinar e, para a avaliação dos níveis de pressão sonora da sala de avaliação, foi utilizado o medidor de nível de pressão sonora da marca Instrutherm, modelo DEC-490. O equipamento estava com calibração dentro do prazo de validade. As medições foram realizadas de acordo com os procedimentos da norma brasileira NBR 10151(13). O nível de ruído médio foi 50 dB(A). Está dentro da faixa recomendada, que estabelece que o ruído em sala de aula deve variar entre 40 dB(A) e 50 dB(A)(14).
Primeiramente houve entrevista com os pais para coleta de informações sobre a vida escolar e fatores de saúde, além das questões sociodemográficas, incluindo o Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB)(15). Para esta classificação, são considerados itens de posse da família e grau de instrução do chefe familiar, sendo classificada de A1 a E, em que A apresenta maior poder de compra e E menor. Os pais preencheram o Strengths and Difficulties Questionnaire (SDQ)(16). Trata-se de um questionário que tem como objetivo a investigação de comportamentos, emoções e relações interpessoais das crianças, sendo constituído por 25 itens divididos em cinco subescalas: problemas no comportamento pró-social, sinais de hiperatividade, problemas emocionais, de conduta e de relacionamento. Além disso, os responsáveis foram questionados sobre a percepção de saúde de seus filhos. Esta única questão da percepção da saúde também foi respondida pelas crianças, com as seguintes opções de resposta: muito boa, boa, razoável, ruim e muito ruim.
Na avaliação auditiva, após a inspeção do meato acústico externo, realizada com equipamento Mini Heine 3000, as crianças que apresentaram Emissões Otoacústicas presentes bilateralmente foram submetidas aos testes que avaliam os aspectos temporais auditivos de ordenação temporal simples e resolução temporal. O equipamento para a realização das Emissões Otoacústicas foi o OtoRead- Standard e Clinical –Interacustics, versão 7.65.01.
A ordenação temporal simples foi avaliada por meio dos testes de memória de sons verbais em sequência (TMSV) e de memória de sons não verbais em sequência (TMSNV). O TMSV é um teste diótico em que os participantes deveriam repetir três sequências diferentes com quatro sílabas (/pa/, /ta/, /ka/, /fa/) emitidas pela avaliadora, sem pista visual. Já no TMSNV, os escolares deveriam identificar a ordem correta de apresentação de três sequências diferentes com quatro instrumentos (agogô, sino, guizo, coco), sem pista visual. A resolução temporal foi avaliada por meio do teste Randon Gap Detection Test (RGDT). Esse teste consiste em pares de tons puros nas frequências de 500, 1.000, 2.000 e 4.000 Hertz, com intervalos entre os dois tons que variam de 0 a 40 ms. A criança foi instruída a responder gestualmente quando ela ouvisse dois tons. Os critérios de avaliação adotados foram os sugeridos pela literatura(17-19).
O equipamento utilizado para a avaliação da resolução temporal foi o audiômetro de dois canais PAC-2000 da marca Acústica Orlandi e fones TDH-39 (padrão ANSI, 1969) acoplado a um Micro System AZ1050, da marca Philips, sendo a intensidade fixa de apresentação de 65dBNS. Procedimento de Calibração que atende às Normas ISO 389 Parte 1, IEC 60645 parte 2 e ISO 8253 Partes 1, 2, e 3. Diante de dificuldade de compreensão ou execução em alguma avaliação, o respectivo teste não foi analisado.
Foram consideradas como variáveis respostas os três testes que avaliam os aspectos temporais da audição: TMSNV, TMSV e RGDT. Os testes foram classificados como adequado ou inadequado, segundo a padronização proposta pela literatura(17-19). As variáveis explicativas foram agrupadas em aspectos comportamentais e percepção de saúde; perfil escolar e de saúde; fatores sociodemográficos e histórico de saúde.
Para a análise dos dados, as respostas dos instrumentos foram organizadas e digitalizadas em um banco de dados e conferidas. Foi realizada análise descritiva da distribuição de frequência das variáveis categóricas e análise das medidas de tendência central e de dispersão para variáveis contínuas. Os dados coletados foram digitalizados e analisados por meio dos programas Excel e STATA 11.0.
Para verificar a associação estatística entre as variáveis respostas e as explicativas, utilizou-se a regressão logística. Na primeira etapa, realizou-se a análise de regressão logística univariável considerando o nível de significância de 5%, sendo as crianças com teste alterado comparadas àquelas sem alteração no mesmo teste. Na segunda etapa, todas as variáveis associadas aos testes do processamento temporal com valor de p ≤0,20 na análise univariável foram ajustadas por idade e gênero e incluídas no modelo multivariado. Utilizou-se o procedimento de deleção sequencial das variáveis iniciando pelas variáveis com menor significância estatística, permanecendo no modelo final apenas as variáveis associadas aos testes do processamento temporal com valor de p≤0,05.
A magnitude das associações foi aferida pelas razões de chance (odds ratio) e foram obtidos intervalos de 95% de confiança.
Este projeto foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o número CAAE 18683013.6.0000.5149.
Dos testes avaliados, 46% do total de 89 crianças que realizaram o teste de memória de sons não verbais em sequência (TMSNV) apresentaram o teste alterado; 88 crianças fizeram o teste de memória de sons verbais em sequência (TMSN), resultando em 36% de inadequação e a maioria (79%) dos 76 avaliados por meio do Randon Gap Detection Teste (RGDT) apresentou teste alterado (Tabela 1). Observa-se que houve variação do número de participantes que conseguiram realizar os testes propostos, principalmente com relação ao RGDT, sendo que 15% da amostra não conseguiu realizar a prova com respostas consistentes.
Tabela 1 Análise descritiva dos testes do processamento temporal da audição
Resultado | TMSNVa | TMSVb | RGDTc |
---|---|---|---|
n (%) | n (%) | n (%) | |
Normal | 48 (54,0) | 56 (64,0) | 16 (21,0) |
Alterado | 41 (46,0) | 32 (36,0) | 60 (79,0) |
Total | 89 (100,0) | 88 (100,0) | 76 (100,0) |
Legenda:
ateste de memória de sons não verbais em sequência;
bteste de memória de sons verbais em sequência;
cRandon Gap Detection Test
Quanto às características comportamentais, verificou-se que a maioria dos escolares apresentaram fatores emocionais negativos, sinais de hiperatividade, problemas de conduta e de relacionamento. Além disso, a maioria das crianças apresentou suplemento de impacto do SDQ alterado, ou seja, as dificuldades detectadas pelos pais podem indicar prejuízos nas atividades de lazer, amizades e no aprendizado acadêmico. A percepção de saúde negativa (razoável, ruim ou muito ruim) foi referida por 26% das crianças e por 13% dos pais. Na análise univariável, apenas a autopercepção de saúde teve associação estatística positiva para ordenação temporal simples de sons não verbais (p=0,01) (Tabela 2).
Tabela 2 Descrição da população estudada e análise de associação entre aspectos temporais da audição, aspectos comportamentais e percepção de saúde
Variáveis Explicativas | n (%) | TMSNVa | TMSVb | RGDTc | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Total 89 (100) | ORd (ICe 95%) | Valor-p | ORd (ICe 95%) | Valor-p | ORd (ICe 95%) | Valor-p | |||
Sintomas Emocionais | |||||||||
Normal | 29 (33,0) | 1 | 1 | 1 | |||||
Alterado | 59 (67,0) | 0,84 (0,34-2,06) | 0,71 | 0,92 (0,36-2,34) | 0,88 | 1,48 (0,46-4,75) | 0,51 | ||
Problemas de conduta | |||||||||
Normal | 34 (38,6) | 1 | 1 | 1 | |||||
Alterado | 54 (61,4) | 1,97 (0,81-4,79) | 0,13 | 0,90 (0,36-2,21) | 0,82 | 0,76 (0,23-2,51) | 0,66 | ||
Sinais de hiperatividade | |||||||||
Normal | 37 (42,0) | 1 | 1 | 1 | |||||
Alterado | 51 (58,0) | 1,41 (0,59-3,33) | 0,43 | 1,71 (0,69-4,23) | 0,24 | 0,76 (0,24-2,38) | 0,64 | ||
Problemas de relacionamento | |||||||||
Normal | 39 (44,3) | 1 | 1 | 1 | |||||
Alterado | 49 (55,7) | 1,66 (0,70-3,93) | 0,24 | 1,60 (0,65-3,93) | 0,21 | 1,18 (0,38-3,60) | 0,76 | ||
Comportamento pró-social | |||||||||
Normal | 76 (86,4) | 1 | 1 | 1 | |||||
Alterado | 12 (13,6) | 1,82 (0,52-6,31) | 0,34 | 1,88 (0,54-6,47) | 0,31 | 0,58 (0,13-2,59) | 0,48 | ||
Resultado total do SDQ | |||||||||
Normal | 27 (30,7) | 1 | 1 | 1 | |||||
Alterado | 61 (69,3) | 1,06 (0,42-2,65) | 0,90 | 0,98 (0,38-2,53) | 0,97 | 1,22 (0,36-4,10) | 0,75 | ||
Suplemento de Impacto do SDQ | |||||||||
Adequado | 22 (25,6) | 1 | 1 | 1 | |||||
Inadequado | 64 (74,4) | 2,14 (0,76-5,99) | 0,15 | 1,00 (0,36-2,77) | 0,99 | 0,64 (0,15-2,61) | 0,54 | ||
Percepção de saúde das crianças referida pelos pais | |||||||||
Muito boa | 11 (12,5) | 1 | 1 | 1 | |||||
Boa | 65 (73,9) | 0,43 (0,11-1,63) | 0,28 | 0,95 (0,25-3,64) | 0,95 | 1,14 (0,20-6,35) | 0,88 | ||
Razoável/ruim/muito ruim | 12 (13,6) | 0,40 (0,75-2,21) | 0,29 | 1,45 (0,26-8,12) | 0,67 | 0,76 (0,09-6,04) | 0,78 | ||
Autopercepção de saúde | |||||||||
Muito boa | 28 (31,5) | 1 | 1 | 1 | |||||
Boa | 38 (42,7) | 2,25 (0,79-6,39) | 0,13 | 1,09 (0,38-3,11) | 0,86 | 0,51 (0,11-2,24) | 0,37 | ||
Razoável/ruim/muito ruim | 23 (25,8) | 4,68 (1,42-15,46) | 0,01* | 1,75 (0,55-5,61) | 0,34 | 0,33 (0,07-1,57) | 0,16 |
Legenda:
ateste de memória de sons não verbais em sequência;
bteste de memória de sons verbais em sequência;
cRandon Gap Detection Test;
dOdds Ratio;
eIntervalo de confiança;
*p≤0,05
Ao analisar os dados com relação ao perfil de saúde e escolar (Tabela 3), observou-se que 72% dos pais tiveram queixa com relação à linguagem escrita das crianças, sendo as outras queixas fonoaudiológicas relatadas pelos pais com menor frequência. Em geral, os escolares foram matriculados antes dos quatro anos na escola e não apresentaram dificuldade na adaptação escolar. No entanto, 23% tiveram pelo menos uma reprovação na trajetória escolar. No momento da avaliação, a maioria das crianças não possuía diagnóstico médico, nem usavam medicação controlada. Na análise univariável, nenhuma associação com significância estatística foi evidenciada entre estas variáveis e o processamento temporal auditivo.
Tabela 3 Descrição da população estudada e análise de associação entre aspectos temporais da audição e perfil escolar e de saúde
Variáveis Explicativas | n (%) | TMSNVa | TMSVb | RGDTc | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Total 89 (100) | ORd (ICe 95%) | Valor-p | ORd (ICe 95%) | Valor-p | ORd (ICe 95%) | Valor-p | ||||
Idade de ingresso na escola | ||||||||||
Menor ou igual a 4 anos | 60 (70,0) | 1 | 1 | 1 | ||||||
Maior ou igual a 5 anos | 26 (30,0) | 1,12 (0,44-2,84) | 0,81 | 1,23 (0,47-3,25) | 0,66 | 2,11 (0,53-8,38) | 0,29 | |||
Reprovações | ||||||||||
Não | 67 (77,0) | 1 | 1 | 1 | ||||||
Sim | 20 (23,0) | 1,31 (0,47-3,58) | 0,59 | 2,43 (0,85-6,91) | 0,09 | 1,61 (0,40-6,47) | 0,50 | |||
Dificuldade de adaptação na escola | ||||||||||
Sim | 39 (45,3) | 1 | 1 | 1 | ||||||
Não | 47 (54,7) | 0,94 (0,39-2,22) | 0,89 | 0,97 (0,39-2,37) | 0,95 | 0,73 (0,23-2,31) | 0,60 | |||
Queixa de fala | ||||||||||
Sim | 43 (49,0) | 1 | 1 | 1 | ||||||
Não | 45 (51,0) | 0,76 (0,32-1,78) | 0,54 | 0,96 (0,40-2,34) | 0,93 | 0,90 (0,29-2,74) | 0,86 | |||
Queixa de linguagem oral | ||||||||||
Sim | 26 (30,0) | 1 | 1 | 1 | ||||||
Não | 62 (70,0) | 0,61 (0,24-1,56) | 0,31 | 0,71 (0,27-1,84) | 0,49 | 0,24 (0,04-1,17) | 0,08 | |||
Queixa de linguagem escrita | ||||||||||
Sim | 63 (72,0) | 1 | 1 | 1 | ||||||
Não | 25 (28,0) | 0,58 (0,22-1,51) | 0,27 | 0,95 (0,36-2,51) | 0,92 | 0,68 (0,20-2,32) | 0,54 | |||
Queixa de voz | ||||||||||
Sim | 7 (8,0) | 1 | 1 | 1 | ||||||
Não | 81 (92,0) | 0,60 (0,12-2,88) | 0,52 | 0,75 (0,15-3,65) | 0,73 | 0,58 (0,64-5,35) | 0,64 | |||
Queixa de audição | ||||||||||
Sim | 20 (23,0) | 1 | 1 | 1 | ||||||
Não | 68 (77,0) | 0,60 (0,22-1,66) | 0,33 | 0,63 (0,23-1,77) | 0,39 | 0,19 (0,02-1,63) | 0,13 | |||
Queixa de processamento auditivo | ||||||||||
Sim | 39 (44,0) | 1 | 1 | 1 | ||||||
Não | 49 (56,0) | 0,54 (0,23-1,27) | 0,16 | 0,58 (0,24-1,42) | 0,24 | 0,98 (0,32-3,02) | 0,98 | |||
Diagnóstico médico | ||||||||||
Sim | 14 (16,0) | 1 | 1 | 1 | ||||||
Não | 75 (84,0) | 2,43 (0,69-8,51) | 0,16 | 1.03 (0,31-3,42) | 0,96 | 3,44 (0,91-12,9) | 0,07 | |||
Medicamento controlado | ||||||||||
Sim | 24 (27,0) | 1 | 1 | 1 | ||||||
Não | 64 (72,0) | 0,97 (0,37-2,52) | 0,96 | 1,23 (0,45-3,32) | 0,68 | 1,22 (0,36-4,10) | 0,75 |
Legenda:
ateste de memória de sons não verbais em sequência;
bteste de memória de sons verbais em sequência;
cRandon Gap Detection Test;
dOdds Ratio;
eIntervalo de confiança
Já com relação aos aspectos sociodemográficos e histórico de saúde, a escolaridade parental predominante foi o analfabetismo ou ensino fundamental, as crianças tinham dois ou mais irmãos e pertenciam à classe econômica C. Neste estudo, a maioria das crianças foi a termo, apresentaram desenvolvimento neuropsicomotor adequado e não haviam tido internação até o momento da pesquisa. Na análise univariável, a classificação econômica e a idade foram as variáveis com associação significativa, p=0,05 e p=0,02, respectivamente (Tabela 4).
Tabela 4 Descrição da população estudada e análise de associação entre aspectos temporais da audição, fatores sociodemográficos e histórico de saúde
Variáveis Explicativas | n (%) | TMSNVa | TMSVb | RGDTc | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Total 89 (100) | ORd(ICe95%) | Valor-p | ORd(ICe95%) | Valor-p | ORd(ICe95%) | Valor-p | |||
Escolaridade materna | |||||||||
Analfabeta/Ensino fundamental | 53 (62,0) | 1 | 1 | 1 | |||||
Ensino médio/superior | 32 (38,0) | 1,15 (0,47-2,79) | 0,76 | 0,53 (0,20-1,38) | 0,19 | 1,12(0,35-3,56) | 0,84 | ||
Escolaridade paterna | |||||||||
Analfabeto/Ensino fundamental | 41 (56,0) | 1 | 1 | 1 | |||||
Ensino médio/superior | 32 (44,0) | 1,92 (0,74-5,00) | 0,18 | 1,04 (0,39-2,72) | 0,94 | 1,83 (0,49-6,83) | 0,37 | ||
Número de irmãos | |||||||||
Nenhum | 9 (10,0) | 1 | 1 | ||||||
Um irmão | 33 (37,0) | 2,18 (0,48-9,82) | 0,31 | 0,86 (0,17-4,22) | 0,86 | 1 | |||
Dois ou mais | 47 (53,0) | 0,64 (0,15-2,76) | 0,55 | 1,40 (0,30-6,39) | 0,66 | 1,27 (0,20-8,10) | 0,79 | ||
Classificação econômica | |||||||||
B | 18 (21,0) | 1 | 1 | 1 | |||||
C | 56 (64,0) | 0,47(0,16-1,42) | 0,18 | 3,87 (0,99-15,03) | 0,05* | 2,02 (0,55-7,33) | 0,28 | ||
D | 13 (15,0) | 0,39 (0,09-1,73) | 0,22 | 3,12 (0,58-16,74) | 0,18 | 1,81 (0,27-12,01) | 0,53 | ||
Gênero | |||||||||
Masculino | 61 (68,5) | 1 | 1 | 1 | |||||
Feminino | 28 (31,5) | 0,82 (0,33-2,04) | 0,68 | 1,50 (0,59-3,78) | 0,39 | 3,24 (0,66-15,88) | 0,15 | ||
Idade | |||||||||
7-8 | 48 (54,0) | 1 | 1 | 1 | |||||
9-10 | 26 (29,0) | 0,44 (0,16-1,91) | 0,11 | 0,60 (0,21-1,66) | 0,33 | 0,40 (0,11-1,46) | 0,17 | ||
11-12 | 15 (17,0) | 0,17 (0,04-0,72) | 0,02* | 0,49 (0,13-1,78) | 0,28 | 0,39 (0,08-1,75) | 0,22 | ||
DNPMf | |||||||||
Adequado | 65 (75,0) | 1 | 1 | 1 | |||||
Inadequado | 22 (25,0) | 0,97 (0,36-2,58) | 0,95 | 0,54 (1,88-1,59) | 0,27 | 1,36 (0,33-5,55) | 0,66 | ||
Idade gestacional | |||||||||
A termo | 79 (92,0) | 1 | 1 | 1 | |||||
Prematuro | 7 (8,0) | 1,74 (0,36-8,49) | 0,48 | 2,51 (0,52-12,19) | 0,25 | 0,47 (0.07-2,90) | 0,42 | ||
Internação | |||||||||
Sim | 40 (46,0) | 1 | 1 | 1 | |||||
Não | 47 (54,0) | 0,98 (0,42-2,30) | 0,98 | 0,88 (0,36-2,15) | 0,79 | 1,52 (0,49-4,67) | 0,46 |
Legenda:
ateste de memória de sons não verbais em sequência;
bteste de memória de sons verbais em sequência;
cRandon Gap Detection Test;
dOdds Ratio;
eIntervalo de confiança;
fdesenvolvimento neuropsicomotor;
*p≤0,05
Na Tabela 5, encontra-se o modelo final da análise multivariável, que foi ajustado por idade e gênero. A variável idade teve associação estatisticamente significante com todos os testes auditivos avaliados neste estudo. Houve associação positiva entre o RGDT com a autopercepção de saúde e gênero. A presença de significância estatística com o TMSV foi à reprovação e com o TMSNV, a autopercepção de saúde.
Tabela 5 Modelo final da análise multivariada
Variáveis Explicativas | TMSNVa | TMSVb | RGDTc | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
ORd(ICe95%) | Valor-p | ORd(ICe95%) | Valor-p | ORd(ICe95%) | Valor-p | |||
Idade | ||||||||
7-8 anos | 1 | 1 | 1 | |||||
9-10 anos | 0,48 (0,17-1,37) | 0,17 | 0,23 (0,60-0,93) | 0,04* | 0,25 (0,63-1,02) | 0,05* | ||
11-12 anos | 0,17 (0,04-0,67) | 0,01* | 0,16 (0,02-1,12) | 0,06 | 0,29 (0,64-1,30) | 0,1 | ||
Gênero | ||||||||
Masculino | 1 | 1 | 1 | |||||
Feminino | 0,72 (0,26-1,96) | 0,52 | 1,64 (0,61-4,40) | 0,32 | 5,29 (1,04-26,88) | 0,04* | ||
Autopercepção de saúde | ||||||||
Muito boa | 1 | 1 | ||||||
Boa | 2,21 (0,77-6,38) | 0,14 | - | - | 0,35 (0,07-1,61) | 0,18 | ||
Razoável/ruim/muito ruim | 4,69 (1,24-17,65) | 0,02* | 0,17 (0,03-0,84) | 0,03* | ||||
Reprovação | ||||||||
Não | - | - | 1 | - | - | |||
Sim | 7,58 (1,48-38,59) | 0,01* |
Legenda:
ateste de memória de sons não verbais em sequência;
bteste de memória de sons verbais em sequência;
cRandon Gap Detection Test;
dOdds Ratio;
eIntervalo de confiança;
*p≤0,05
Neste estudo, as crianças com mau desempenho escolar tiveram, em sua maioria, alteração dos aspectos temporais auditivos tanto para a habilidade de ordenação temporal simples quanto para a resolução temporal. Este achado corrobora outros estudos que evidenciaram que crianças com dificuldades escolares apresentam alteração no processamento temporal auditivo(6,11,20-22).
Foi relatado pelos pais elevado número de manifestações comportamentais, tais como sinais de hiperatividade, problemas de conduta e relacionamento, assim como questões emocionais. As crianças com estas características podem apresentar dificuldade nas interações sociais, na manutenção da atenção e no desenvolvimento das habilidades comunicativas(23). Um estudo comparou crianças com e sem alterações do comportamento auditivo e constatou que as crianças com distúrbio do processamento auditivo apresentaram maior dificuldade psicossocial em diversas áreas em comparação com as crianças sem o distúrbio(24). Nessa pesquisa, porém, não foi encontrada relação estatisticamente significante entre aspectos comportamentais e alteração dos aspectos temporais auditivos em crianças com mau desempenho escolar. Contudo cabe considerar que os testes de processamento usados no estudo foram distintos da atual pesquisa.
Neste estudo, as crianças pertencentes à classe C apresentaram 3,87 vezes mais chances de terem alteração da habilidade de ordenação temporal simples para sons verbais em sequência quando comparadas às crianças da classe B. Deste modo, a piora da classificação econômica aumentou a chance de a criança apresentar alteração da ordenação temporal simples. Vale considerar que, no presente estudo, não foi investigado o nível socioeconômico e sim uma classificação econômica que estima o poder de compra familiar. Um estudo nacional objetivou verificar a influência do nível socioeconômico na resolução temporal de 44 crianças de seis a 11 anos de escolas públicas e particulares e constatou que esta variável pode influenciar essa habilidade auditiva, ou seja, quanto pior a classificação econômica pior o desempenho nos testes que avaliaram o processamento temporal(25). Outro estudo mostrou que o grupo de crianças de nível socioeconômico baixo apresentou desempenho comparativamente pior, principalmente nos testes de reconhecimento, discriminação e memória sequencial de sons não verbais e verbais(26). As famílias com renda per capita alta e com mais anos de estudos, incluindo curso superior, tendem a produzir sentenças completas, utilizando maior variação sintática e melhor complexidade gramatical, o que influencia positivamente o desenvolvimento da criança(9).
No modelo final, a idade e o gênero, assim como a autopercepção de saúde e a reprovação, foram as variáveis com associações estatisticamente significantes em relação aos aspectos temporais auditivos avaliados.
Houve melhora no desempenho dos testes que avaliam o processamento temporal com o avanço da idade. Este achado corrobora a literatura que verificou melhora no desempenho dos testes de memória sequencial de sons não verbais e verbais em crianças de quatro a 14 anos de idade(22), assim como a resolução temporal(21). O processamento da informação é dependente da função neural e deve ser interpretado dentro de um contexto “neuromaturacional”. Com o aumento da idade, há melhora quantitativa nos testes eletrofisiológicos e comportamentais do processamento auditivo(27). Fatores como: compreensão das instruções, motivação, atenção à tarefa, capacidade de aprendizado, maturação do sistema nervoso auditivo e memória auditiva podem justificar a melhora do desempenho(2,27). Tal achado reitera a premissa de que o processo maturacional do sistema auditivo central ocorre de forma gradativa e que as respostas dos testes que avaliam ordenação e resolução temporal são influenciadas pelo aumento da idade.
Os resultados do presente estudo mostraram que as meninas apresentaram 5,29 vezes mais chances de terem o teste RGDT alterado quando comparadas aos meninos. Outro estudo mostrou que crianças do gênero masculino tiveram limiares de resolução temporal auditiva mais baixos, ou seja, melhores, do que os das crianças do gênero feminino. Tal achado não encontrou significância estatística(28). Alguns estudos não identificaram presença de associação estatística entre gênero e aspectos temporais auditivos(20,22).
A variável reprovação escolar apresentou significância estatística com a habilidade de ordenação temporal simples para sons verbais em sequência. As crianças, com pelo menos uma reprovação, tiveram 7,58 vezes mais chance de terem alteração no teste de memória de sons verbais em sequência. A ordenação temporal refere-se à capacidade de reconhecer, identificar e ordenar estímulos acústicos, de acordo com sua ordem de apresentação, durante determinado período de tempo. Tal habilidade, em que muitos processos perceptivos participam, é considerada uma das funções mais importantes do sistema nervoso central, uma vez que a fala e a compreensão da linguagem são dependentes da capacidade de se trabalhar com a sequência sonora(29). Este achado reforça a hipótese de que há uma relação entre a percepção acústica temporal e a percepção da fala e que esta dificuldade pode gerar alteração na comunicação, com impacto no aprendizado escolar.
Neste estudo, as crianças que classificaram a saúde como razoável, ruim ou muito ruim tiveram 4,69 vezes mais chances de terem alteração no teste de memória de sons não verbais em sequência. Ressalta-se que este teste avalia a ordenação temporal simples e, provavelmente, as crianças que não conseguem ter adequação dessa habilidade têm uma percepção real das suas dificuldades acadêmicas, com impacto na autopercepção de saúde. Já as crianças que relataram pior percepção de saúde tiveram também menor chance de ter o RGDT alterado. Este achado não é passível de discussão, sendo necessários estudos mais robustos para maiores conclusões. Acredita-se que a complexidade da tarefa pode ter sido uma das influências que reduziu o número de crianças que realizaram o RGDT, considerando que a população de estudo já tinha déficit nas habilidades escolares.
Com este estudo, pôde-se identificar as associações entre aspectos temporais auditivos e variáveis relacionadas à autopercepção de saúde, questões escolares e sociodemográficas. Por meio do modelo estatístico adotado, foi possível estudar uma série de fatores independentes, controlados entre si, para predizer a ocorrência de alteração dos aspectos temporais auditivos e, portanto, isso é um importante avanço. No entanto, acredita-se que, para uma análise mais completa, seria interessante a realização de outros testes que avaliam as habilidades auditivas de ordenação e resolução temporal. Além disso, por se tratar de um estudo transversal, não é possível estabelecer relação causal entre os aspectos temporais auditivos e os fatores investigados. Ressalta-se que a inclusão de um grupo de comparação permitiria ampliar as conclusões do estudo.
As crianças com mau desempenho escolar apresentaram alterações dos aspectos temporais auditivos. As habilidades temporais avaliadas estão associadas a diferentes fatores como processo maturacional, autopercepção de saúde e histórico escolar. Os resultados apresentados sugerem a necessidade de estimulação do processamento temporal auditivo tanto no ambiente terapêutico quanto no contexto escolar, considerando os fatores associados ao mau desempenho escolar.