versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.81 no.5 São Paulo set./out. 2015
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2015.07.013
Aproximadamente 10% a 12% dos casos de sinusite maxilar são causados por infecção odontogênica, devido à proximidade das raízes dos dentes posteriores superiores com as cavidades dos seios maxilares.1 As periodontites apical e marginal constituem 83% dos fatores de origem odontogênica capazes de causar manifestações nos seios maxilares.2 3 Lu et al. (2012)3 demonstraram uma relação direta entre a presença de lesões periapicais e o espessamento da membrana do seio maxilar, numa proporção de 100%. Os autores acreditam que os micro-organismos e as toxinas de infecções endodônticas podem se infiltrar no seio maxilar diretamente ou através das inúmeras anastomoses vasculares, medula óssea alveolar e vasos linfáticos.
Embora as bactérias sejam os agentes etiológicos mais estudados nas infecções endodônticas, os fungos também são isolados dos canais radiculares.4 9 A presença de fungos filamentosos em canais radiculares de dentes com necrose pulpar e lesão perirradicular foi detectada pela primeira vez por Gomes et al. (2010).10
Na literatura médica, existem vários artigos associando a presença de fungos filamentosos no seio maxilar com canais radiculares tratados endodonticamente em íntimo contato com o seio maxilar.11 16 Recentes estudos têm relatado que o tratamento endodôntico em dentes superiores posteriores é um forte fator de risco para o aparecimento de bola fúngica no seio maxilar.12 13
Entretanto, o papel das infecções endodônticas sobre o seio maxilar não está bem elucidado. Com base nestes relatos, o objetivo deste estudo foi investigar a presença de fungos filamentosos em canais radiculares com tratamento endodôntico e lesão periapical localizados próximos ao seio maxilar.
Esta pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética e pesquisa CEP CMM/HUAP 134/08 CAAE 0101.0.258.000-08. Todos os indivíduos responderam a um questionário de saúde e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Para este estudo foram selecionados 60 pacientes (24 sexo feminino e 36 sexo masculino), na faixa etária entre 18-65 anos de idade, que estavam em tratamento na Faculdade de Odontologia.
Estudo de coorte contemporânea com corte transversal.
Raízes palatinas de primeiros molares superiores que se encontravam radiograficamente em íntimo contato com o seio maxilar, com tratamento endodôntico realizado há mais de três anos e presença de lesão periapical.
Dentes com câmara pulpar exposta à cavidade oral, com sintomas de dor, presença de mobilidade, bolsa periodontal. Pacientes que usaram antibióticos e/ou antifúngicos orais nos últimos seis meses e aqueles com manifestações clínicas da candidíase oral.
Os dentes selecionados foram acessados após receberem isolamento absoluto, antissepsia com hipoclorito de sódio a 5,25% e neutralização com tiossulfato de sódio a 5%. O acesso aos canais radiculares foi realizado com broca esférica carbite em alta velocidade e, a seguir, o campo operatório foi novamente limpo com as mesmas substâncias supracitadas. O canal radicular palatino foi irrigado com solução salina estéril e, baseado no comprimento pré-estabelecido através da radiografia inicial, a guta-percha foi removida sem uso de solvente, utilizando brocas Gates-Glidden #2 e #3 e limas Hedstroem #25, #30 e #40. Após, uma lima K-file de diâmetro e comprimento compatíveis com o canal radicular foi introduzida de forma passiva, e a odontometria foi estabelecida através de localizador apical, sendo confirmada radiograficamente.
Seguindo o protocolo preconizado por Gomes et al. (2010),10 o canal foi irrigado com solução salina estéril e uma lima Hedstroem #40 foi utilizada para remover raspas de dentina. A seguir, três pontas de papel absorvente estéreis foram introduzidas no canal radicular, uma a uma, a 1 mm do ápice radicular e mantidas por um minuto, sendo a seguir transferidas para um tubo de ensaio contendo Agar Sabouraud (Difco Laboratories, Detroit, MI, EUA) com adição de 0,5% de cloranfenicol (Medley, Campinas, SP, Brasil), dentro de um campo isolado por duas lamparinas. Uma placa de Petri aberta, contendo o mesmo meio de cultura (meio de Sabouraud com cloranfenicol 0,5%), foi colocada dentro do campo isolado pelas duas lamparinas, a fim de verificar a acuidade do isolamento do campo operatório (controle negativo). Ao mesmo tempo foi realizado um controle positivo com uma placa de Petri contendo o mesmo meio de cultura, que permaneceu aberta durante a coleta das amostras, fora do campo isolado, a fim de verificar o possível crescimento de fungos ambientais, verificando se estes coincidiam com os isolados dos canais radiculares. As placas de Petri e os tubos de ensaio foram mantidos à temperatura ambiente por sete a 14 dias observando o crescimento micelial, para posterior análise dos isolados no Laboratório de Coleção de Cultura de Fungos.
A partir de uma cultura monospórica, retirou-se fragmento da colônia, e este foi colocado sobre uma lâmina acrescido de uma gota de corante citoplasmático Lactofenol de Amann com Azul de algodão (Difco Laboratório, Detroit, MI, EUA) e examinada ao microscópio óptico (YS 100 Nikon Corporation, Japão), para observar o micélio vegetativo e reprodutivo dos fungos.
Após verificação das características dos fungos, as linhagens foram repicadas com auxílio de alça de platina estéril, e um fragmento do fungo foi inoculado em placa de Petri contendo 20 mL de meio específico para favorecer seu crescimento e esporulação. Dependendo das características apresentadas, um meio de cultura foi empregado, podendo ser extrato de malte Agar, Agar Czapek ou Agar Batata (Disco Laboratories, Detroit, MI, EUA). As colônias foram incubadas em temperatura ambiente e observada a cada 24 horas, pois cada cepa tem um tempo de crescimento específico, dependendo do seu grupo taxonômico. A seguir, as colônias foram analisadas e classificadas macroscopicamente conforme a textura, coloração frente e verso, diâmetro, produção de pigmentos, tempo de crescimento e produção ou não de exsudato.
Fragmentos miceliais de cada isolado foram criteriosamente examinados nas preparações obtidas a partir de microcultivos em meio específico, segundo a técnica de Rivalier & Seydel.17Essa metodologia revelou o arranjo dos conídios in situ, permitindo a visualização da morfologia das estruturas de reprodução e/ou propagação ao microscópio ótico (YS 100 Nikon Corporation, Japão), após preparação de lâminas e aplicação de corante citoplasmático Lactofenol de Amann com Azul de algodão (Difco Laboratorio, Detroit, MI, EUA). A partir dos estudos macro e microscópicos da morfologia e utilização de literatura específica foi realizada a identificação taxonômica dos fungos isolados.18 20
Objetivando confirmar a identificação taxonômica, foi realizado o sequenciamento dos isolados. A Extração de DNA foi realizada de acordo com Yamakami et al.21 Cerca de 50 mL de meio de cultura foram inoculados com uma suspensão de conídios e incubadas durante 72h a 30 °C. O micélio foi transferido para um frasco de polipropileno de 50 mL contendo seis esferas de vidro (diâmetro de 4 mm). O tubo foi imerso em nitrogênio liquido durante 10 seg e agitado em um vortex durante 20 seg. Depois, 2 mL de tampão de extração de DNA (contendo 10 mM Tris-HCl (pH 8,0); EDTA 10 mM; NaCl 0,15; 2% de dodecil sulfato de sódio (SDS) e 0,5 mg de proteinase K por mL (Sigma Chemical Co., St . Louis, MO) foram adicionados e o descongelamento foi aguardado. A mistura foi incubada durante 2 horas a 55 °C. A proteinase K foi inativada por aquecimento da mistura a 95 °C durante 10 min., e um volume de 0,7 mL da mistura foi transferida para um tubo de microcentrífuga de 1,5 mL; um volume igual de fenol-clorofórmio (1:1) foi adicionado. A mistura foi centrifugada a 10.000× g durante 5 min a 4 °C. O sobrenadante foi transferido para outro tubo, e o mesmo procedimento se repetiu com clorofórmio-álcool isoamílico (24:1). O DNA foi precipitado com dois volumes de etanol a −20 °C, e centrifugado a 12.000× g durante 20 min a 4 °C e o sedimento seco. Após lavagem com etanol a 70% em 4 °C, o DNA extraído foi dissolvido em 50 μL de água destilada e 5 μL de suspensão, sendo utilizado para a PCR.
As reações de amplificação foram realizadas num volume final de 25 μL, contendo 10 pmoL de cada iniciador; 1,5 mL de MgCl2 (25 mM); 1,0 μL de dNTP (5 mM); tampão de Taq 2,5 μL de 10×; 1U de Taq DNA polimerase e 20 ng de ADN (Fermentas). Os primers ITS5 e ITS4 (ITS5 - 5' - GGA AGT AAA AGT CGT AAG AAC G - 3' ITS4 - 5' - TCC TCC GCT TAT TGA TAT GC - 3') foram usados. As reações de PCR foram realizadas em um termociclador T100 (Bio-Rad Laboratories Brasil Ltda.), programado com as seguintes etapas: pré-desnaturação a 94 °C/5 min, 30 ciclos (desnaturação (94 °C/30 seg), 40 °C a 55 °C com aumento de 0,5 °C por segundo (totalizando 30 segundos) (hibridação) e extensão (72 °C/1 min 30 seg). A extensão final foi realizada a 72 °C durante 4 min (29). Os produtos da reação de amplificação foram detectados usando eletroforese em gel de agarose em tampão TBE a 1% (Tris -borato EDTA) 1×, e a análise de eletroforese foi realizada a 36 V durante 2 horas. Utilizou-se o tamanho do marcador molecular de 1 Kb de DNA. O gel foi corado com brometo de etílio a 0,5 μg/mL durante 15 minutos, e visualizado com o auxílio de um transiluminador ultravioleta (UV), sendo fotografado com o auxílio de um sistema automático de detecção e análise de imagem (Gel Doc XR + Sistema com Software ImageLab, Bio-Rad Laboratories Brasil Ltda.).
Os produtos de PCR (6 μL) foram tratados com as enzimas de exonuclease I (USB 3.3 L) e SAP (fosfatase alcalina de camarão, USB; 0,66 L), a fim de eliminar os resíduos de iniciadores e de dNTP. Os tubos contendo a mistura foram mantidos a 37 °C durante 45 minutos, e depois a 80 °C durante 15 minutos. Na reação de sequenciamento, foi utilizado didesoxinucleótido fluorescente com o modelo sequenciador automático ABI Prism 377. As reações foram realizadas num volume final de 10 μL contendo 0,5 mL de iniciadores DYEnamic ET Sequência Premix Terminator (DYEnamic ET Dye Terminator Cycle Sequencing Kit, Amersham Bioscience). O T100 termociclador (Bio-Rad Laboratories Brasil Ltda.) foi programado em: 30 ciclos de 96 °C durante 30 segundos, 40 °C durante 30 segundos e 60 °C durante 1 minuto. Vinte microlitros da reação de sequenciamento foram transferidos para um tubo estéril e foram adicionados 20 μL de água MiliQ e 60 μL de isopropanol. A mistura foi homogeneizada em vortexe deixada durante 20 minutos em temperatura ambiente e, em seguida, centrifugada. O sobrenadante foi removido e o precipitado lavado duas vezes com 250 μL de etanol 70% e seco em estufa a 37 °C. O DNA foi dissolvido em 4 μL Formanide Loading Dye e submetido a electroforese em sequenciador automático ABI Prism 377 (Applied Biosystems). As sequências obtidas foram analisadas utilizando o programa Basic Local Alignment Search Tool(BLASTn), sendo então comparadas com as sequências obtidas após depositadasno GenBank.
Fungos filamentosos cresceram em seis das 60 raízes palatinas analisadas (10%). O exame macroscópico dos isolados mostrou o crescimento de colônias compatíveis com o gênero Aspergillus sp. (fig. 1). O exame microscópico dos isolados mostrou crescimento de hifas hialínicas, septadas e conidióforo globoso, características do gêneroAspergillus sp. (fig. 2). As sequências dos fungos filamentosos, analisados pelo programa BLAST e comparados com os depositados no GenBank, forneceu informações quanto à homologia de 100% para Aspergillus niger(GenBank nº AJ223852 ) em quatro amostras de 100% deAspergillus versicolor (GenBank nº JX232271) em uma amostra e 99% para Aspergillus fumigatus (GenBank nº AB025434 ) outra.
Após as análises fenotípica e genotípica, os fungos filamentosos isolados foram classificados como Aspergillus niger (6,7%),Aspergillus versicolor (1,6%) e Aspergillus fumigatus (1,6%).
Apesar de várias pesquisas já terem apontado a presença de leveduras4 9 22 24 e fungos filamentosos10 em infecções endodônticas, até o momento nenhum estudo havia verificado a presença de fungos filamentosos em canais radiculares com tratamento endodôntico e lesão periapical, embora haja relatos na literatura de que baixas concentrações de zinco, como encontrado na maioria dos cimentos obturadores endodônticos, propiciam um ambiente ideal para o desenvolvimento desses patógenos.25
Nosso estudo utilizou raízes palatinas de primeiros molares superiores, pois os ápices dessas raízes são anatomicamente mais próximos ao assoalho do seio maxilar.3 26 27 Dessa forma, nossa hipótese era de que dentes com tratamento endodôntico com lesão periapical, em íntimo contato com o seio maxilar, poderiam apresentar cultura positiva para fungos filamentosos, uma vez que estes patógenos são comumente isolados do seio maxilar.
Os resultados do presente estudo podem servir de alerta aos dentistas e otorrinolaringologistas, uma vez que Aspergillus também são isolados no seio maxilar nos casos de sinusite crônica, sendo descritas como principais vias de penetração as vias aerogênica e odontogênica.26 Vários estudos têm ressaltado que a baixa concentração de zinco encontrada nos cimentos endodônticos à base de óxido de zinco e eugenol pode facilitar a instalação de fungo na membrana do seio maxilar.11 13 15 16 O extravasamento de material obturador para o seio maxilar durante o tratamento endodôntico também tem sido apontado como causador de sinusite crônica por corpo estranho.2 11 13 Além disso, a quantidade de eugenol usada nos cimentos endodônticos tem sido diretamente relacionada ao crescimento do Aspergillus causador do micetoma no seio maxilar.15 16
Esta relação de proximidade das raízes palatinas dos molares superiores poderia propiciar a migração destes fungos filamentosos isolados dos canais radiculares para o seio maxilar, assim como fungos existentes no seio maxilar poderiam ter seu crescimento facilitado pelo ambiente propício do canal, com presença de nutrientes e materiais obturadores essenciais para o crescimento e proliferação destes patógenos. Profissionais afins devem estar alerta, pois esses microrganismos possuem características de patogenicidade que podem propiciar doenças no seio maxilar de origem odontogênica, ou vice-versa. Entretanto, novos estudos devem ser realizados buscando correlacionar a presença de fungos filamentosos em canais radiculares e a possibilidade de infiltração desses patógenos para o seio maxilar, verificando, também, a possibilidade de o seio maxilar atuar como via de contaminação, podendo levar ao insucesso do tratamento endodôntico.
Sob as condições experimentais em que foi realizada esta pesquisa e com base nos resultados obtidos, concluiu-se que raízes próximas ao seio maxilar com tratamento endodôntico e lesão periapical podem apresentar cultura positiva para fungos filamentosos.