versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.6 Rio de Janeiro jun. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018236.09022018
Ao olharmos para um Brasil contemporâneo, conquistas sociais relevantes colocadas em risco, é importante voltar para 1988 e lembrar o que significaram estes 30 anos da nossa Constituição Cidadã, do SUS e do direito à saúde com acesso universal. A transição entre os 20 anos de regime militar e a volta da democracia ensejou a organização de um movimento progressista, suprapartidário, denominado de Reforma Sanitária e que pensou e idealizou a construção de um país justo, equânime e com justiça social1.
Nesse movimento, a Assistência Farmacêutica (AF) foi incluída e viveu alterações profundas ao longo dos últimos trinta anos que pretendemos percorrer neste artigo (Quadro 1). É nesse contexto, e com marcos principais, que pretendemos discutir temas selecionados, tendo como eixo a Política Nacional de Medicamentos com suas diretrizes e prioridades e destacando, entre os princípios do SUS, a integralidade.
Quadro 1 Eventos selecionados da assistência farmacêutica no Brasil segundo decênios. Brasil, 1988-2017.
Diretrizes* | 1988-1997 | 1998-2007 | 2008-2017 |
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Aspectos gerais | 1990: Publicada a Lei Orgânica da Saúde 8080/90, que define o compromisso público da garantia assistência integral à saúde, inclusive a farmacêutica. | 1998, Portaria MS/GM 3916/98: Política Nacional de Medicamentos (PNM). | 2011, Lei 12401/11 e Decreto 7508/11: Alterações importantes na organização do Sistema Único de Saúde - SUS, no planejamento da saúde, na assistência à saúde e na articulação inter-federativa em aspectos diretamente atinentes à assistência farmacêutica. |
1997, Decreto 2283/97: Extinção da CEME, responsável, até então, pelo abastecimento de medicamentos do sistema público de saúde. | 2003: Realização da 1a Conferência Nacional de Medicamentos e Assistência Farmacêutica (CNAF). | 2013-2014, Portaria MS/GM 2077/12: Pesquisa Nacional de Acesso e Uso de medicamentos | |
2003/2004: Aplicação da avaliação da situação farmacêutica com método da OMS. | |||
2004, Resolução. CNS 338/04: Publicada a Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF). | |||
2005: Realizado Diagnóstico da farmácia hospitalar no Brasil. |
Em determinados momentos vamos nos referir a AF e em outros ao acesso a medicamentos, considerando que são dois conceitos inseridos nos princípios do SUS e, na agenda internacional, que devemos também considerar como um diferencial importante ao longo do tempo.
Considerando as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) em trabalhos anteriores, ressaltamos a importância das discussões para influenciar e pautar os diferentes países na implementação das ações voltadas a assegurar o acesso de suas populações aos medicamentos2,3. Na atualidade e com ampla revisão da literatura, a OMS aponta uma série de desafios relacionados com assegurar o acesso a tecnologias em saúde, diversos dos quais serão discutidos neste trabalho4.
Comissões de inquérito, Decretos e Leis, reorientação das políticas públicas, propostas tecnológicas não conseguiram ecoar na ideia de uma indústria farmacêutica estatal, que receberia a denominação de Farmoquímica Brasileira S.A (Farmobras S.A), que vinha sendo objeto de discussão ainda no regime militar. Entretanto, uma série de propostas e iniciativas impactaram de maneira definitiva a AF no SUS, ao longo de três décadas.
Essa Diretriz aglutinou elementos estratégicos e estruturantes para consolidação do SUS. Como nominado, na forma de “reorientação”, isso já traz em si um significado inovador, para “dar nova orientação ou novo sentido” ao processo iniciado e em evolução.
A expressão “assistência farmacêutica” cunhou-se em um contexto focal para o abastecimento de medicamentos. Embora o decreto5 criador da Ceme contivesse o termo AF, não havia até a promulgação da PNM, uma clara definição de seu escopo de ação, objetivos e o conjunto de atividades que a compunha. Logo, a reorientação da AF da PNM correspondeu a proposta de construção concreta de AF integrada ao SUS. Isso permitiria pavimentar o processo instalado de promoção de cidadania, coerente com os princípios constitucionais do direito à saúde.
A Diretriz Reorientação da Assistência Farmacêutica foi construída numa perspectiva transversal na PNM, produzindo impactos diretos no campo da saúde coletiva6. Destaca-se que suas prioridades tomam por base o tripé formado pela descentralização, financiamento e ações logísticas7. Ademais, também norteou e reforçou o compromisso sanitário dos três níveis de gestão do SUS para com os elementos constituintes do campo da AF.
As características inerentes à Diretriz em sua constituição histórica, ao longo dos três decênios, refletem o cenário social e político brasileiro, reproduzindo o desenvolvimento sanitário presente nestes intervalos (Quadro 2).
Quadro 2 Eventos selecionados relacionados a reorientação da assistência farmacêutica, desenvolvimento e capacitação de recursos humanos no Brasil segundo decênios. Brasil, 1988-2018.
Diretrizes* | Prioridades* | 1988-1997 | 1998-2007 | 2008-2018 |
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Reorientação da assistência farmacêutica | Garantia de recursos pelas 3 esferas para distribuição direta ou descentralizada Descentralização plena da aquisição e distribuição de medicamentos Financiamento específico para os medicamentos da atenção básica Atenção especial aos medicamentos de alto custo | 1997: O Programa Farmácia Básica busca viabilizar o acesso a medicamentos nos municípios de pequeno porte no período entre a extinção da CEME. | 1999, Portaria MS/GM 176/99: É iniciada a descentralização da AF. | 2008, Portaria 154/2008: São criados o Núcleos de Apoio a Saúde da Família (NASF), onde são estabelecidas as Ações esperadas da AF. |
2000, Decreto 3555/00 - O Pregão, nova modalidade de licitação, é regulamentada a fim de promover maior celeridade aos processos licitatórios, com importante impacto nas compras de medicamentos. | 2011: Estabelecida gratuidade para três grupos terapêuticos no Programa Farmácia Popular, com o programa denominado Saúde Não Tem Preço. | |||
2004, Portaria MS/GM 1651/04: Criação do Programa Farmácia Popular do Brasil, com expansão para a Rede Privada em 2006. | 2016: Aprovação da Emenda Constitucional no 95 de 15/12/2016, que trouxe o congelamento de gastos. | |||
2006: Projeto nacional (Planejar é Preciso) visava promover o planejamento da AF no nível municipal. | 2017, Portaria MS/GM 3992/17: São estabelecidas profundas alterações no financiamento do SUS, incluindo a assistência farmacêutica, com a extinção dos blocos. | |||
2007, Portaria MS/GM 204/07: São definidos blocos de financiamento no SUS, e são estabelecidos três blocos para os medicamentos, além de financiamento de infraestrutura. | ||||
Desenvolvimento e capacitação de recursos humanos | Treinamento de RH (gerenciamento de sistemas de saúde e de informação; guias terapêuticos padronizados; farmaco- vigilância) | 1999-2000: Realização de uma série de oficinas de treinamento oferecidas pelo MS no país para treinamento dos gestores municipais de AF visando a viabilização da descentralização da AF. | 2008, Portaria MS/GM 362/08: Inclusão do curso de Farmácia no Programa Pró-Saúde, cujo objetivo é capacitar estudantes e profissionais farmacêuticos a atender as necessidades da população brasileira e a operacionalizar o SUS. Para tal, foram aprovados incentivos financeiros, dependentes de aprovação, para projetos ligados a reestruturação física de serviços da rede pública e para capacitação. | |
2001 a 2002: Cursos do Projeto Sentinela, iniciados em 2002, com foco em gestão da AF, farmacovigilância e URM. Importante iniciativa paraconsolidação de uma rede de hospitais sentinelas capacitados para o gerenciamento de riscos a saúde. | 2008: Vários cursos foram promovidos pelo DAF (Mestrado Profissionalizante UFRGS, Especialização em Gestão, curso do Sistema Hórus na modalidade a distância, curso com simulação realística em Farmácia Hospitalar) | |||
2005: Criação do Mestrado Profissional em Gestão da Assistência Farmacêutica, através de Termo de Cooperação entre DAF e Faculdade de Farmácia do Rio Grande do Sul, formação de 31 mestres de 2005 a 2007. | 2012, Portaria MS/GM 1214/12, : Criado programa para qualificação da assistência farmacêutica no Brasil, sendo a educação um de seus quatro eixos 2013: Curso de Aperfeiçoamento em Atenção Básica/Primária à Saúde – AB/APS, ofrecido para toda a America Latina. | |||
2007, Portaria MS/GM 204/09: É estabelecido que até 15% dos recursos financeiros municipais, estaduais e do Distrito Federal do Componente Básico da AF poderão ser utilizados para estruturação e atividades ligadas a educação continuada. | 2017, Resolução MEC 06/17: Definidas pelo MEC as diretrizes curriculares do curso de Farmácia. |
Nos 10 primeiros anos do SUS, a AF foi caracterizada pela transição entre a extinção da Ceme e a vigência da PNM. Nessa trajetória inicial reimprimiu-se o Programa Farmácia Básica, marcado pelo envio de kits de medicamentos a municípios pequenos. Isso ainda refletia o caráter centralizador, com problemas e críticas semelhantes ao que antes havia verificado no período da Ceme8.
Entre 1998 e 2007, identifica-se princípios coerentes com o SUS, com foco na organização da AF pautada na descentralização e na busca de recursos para acesso a medicamentos. Alterações nas modalidades licitatórias e sistemas de aquisição eficientes foram introduzidos, o que impelia os entes subnacionais ao desafio de fortalecer sua capacidade de gestão e de planejamento.
Ainda no período, dois momentos centrais se destacaram. O primeiro, na recomposição do financiamento do SUS, dividido em blocos, que permitiu à AF um novo status com um bloco particular. Isso não trouxe grande expansão nos recursos para a AF, pois dados mais recentes dos gastos do governo federal, entre 2010 e 2016, mostraram crescimento médio de 21%, quando somados os três componentes de dispensação do bloco9, onde o Componente Básico foi o único que sofreu queda.
Outra característica se refere à fragmentação no cuidado com base na organização de serviços farmacêuticos segundo os três componentes de dispensação de medicamentos. Os modelos de organização e gestão dos serviços, com foco no produto e não no serviço ao paciente, dificultam a introdução do cuidado ao usuário e que, certamente, compromete a integralidade no SUS10.
O segundo evento foi a introdução do Programa Farmácia Popular do Brasil (PFPB), que ao longo de sua evolução passou por diversos arranjos, tendo na sua parceria com o comércio farmacêutico sua principal forma de consolidação e expansão. Esse modelo representou um retorno ao caráter centralizador do Ministério da Saúde (MS) na provisão de medicamentos. Trouxe à tona discussões sobre sua interlocução com o modelo público no SUS, traz dúvidas sobre sua ação complementar ou concorrencial, além dos seus maiores custos comparados em cenários públicos estudados11. Ainda, podemos arguir em que medida esse modelo, com ênfase no consumo de medicamentos como promotor de acesso a medicamentos, dialoga com os nexos da integralidade, quando não se identifica no PFPB ações de indução ao uso apropriado, acompanhamento farmacoterapêutico, etc.11.
Por fim, o último decênio de 2008 aos dias atuais traz antigos e novos desafios. O fortalecimento no modelo de atenção primária, pela expansão da Estratégia do Saúde da Família introduziu, via Núcleos de Apoio à Saúde da Família, ações relativas à organização das atividades de AF. Isso permitiu integração dos farmacêuticos com os demais profissionais de saúde, com possibilidade de ações, dentre outras, como as voltadas ao uso apropriado de medicamentos, como exemplo do cuidado integral, um valor do SUS.
Outros pontos recentes remetem aos riscos de comprometimento ao funcionamento do SUS, como as medidas de congelamento dos gastos públicos, que certamente contrapõem a garantia do direito à saúde12.
A extinção dos blocos de financiamento sem aumento nos recursos pode trazer fragilização de áreas internas ao sistema público de saúde que competirão entre si por recursos, como a AF. Esses fatos atuais não permitem ainda avaliar seus reais impactos. No entanto, propomos alguns questionamentos: (1) qual será o papel do MS como regulador, formulador e indutor de políticas públicas? (2) como ficará a situação de municípios brasileiros x sua capacidade de gestão e de financiamento? (3) em que medida a capacidade instalada com densidade tecnológica poderá drenar recursos de outros setores? (4) como lidar com as diferenças regionais tão marcantes no cenário brasileiro?
No cenário histórico após 30 anos do SUS e 20 anos da PNM, a AF historicamente se constituiu como uma área de suprimentos e logística, voltada ao apoio das ações e serviços de saúde, com baixa inserção às práticas sociais de cuidado e prestação de serviços farmacêuticos, dirigidas ao uso correto de medicamentos. Isso remonta aos desafios de se pensar que a Reorientação é um movimento contínuo, vivo e de transformação positiva da realidade e não um fim na letra fria da norma.
A amplitude de atividades e ações também confere a AF caráter polissêmico, semelhante a integralidade. Por isso é preciso conjugar ações concretas nas práticas assistenciais dos profissionais, na organização dos serviços farmacêuticos e nas respostas governamentais sensíveis às necessidades de saúde, à perspectiva de defesa desse valor doutrinário9,13.
Um dos fatores críticos para os sistemas e serviços de saúde são os recursos humanos. É necessário que estejam disponíveis em quantidade e qualidade para operacionalizar as políticas de saúde. Os guias da OMS e Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) consideram os recursos humanos como um dos componentes chave de uma PNM, levando em conta tanto o desenvolvimento quanto a gestão do trabalho14,15.
A PNM brasileira tem como uma de suas diretrizes o desenvolvimento de recursos humanos visando a disposição dos mesmos em qualidade e quantidade, chamando a responsabilidade para os três entes federativos à provisão adequada e oportuna dos mesmos (Quadro 2). A atual política cita a necessidade de capacitação em áreas específicas como promoção do uso racional de medicamentos, desenvolvimento tecnológico, assistência farmacêutica e vigilância sanitária16.
Azeredo16, quando estuda a implementação da política, demonstra que a diretriz em questão foi uma das poucas diretrizes com menos normas publicadas, num contexto de esforços de estabelecimento de normativas para as demais diretrizes, com vistas à sua implementação. Como interpretações possíveis, o autor aponta a baixa importância dada à diretriz e a dificuldade de articulação com o Ministério da Educação para propor as mudanças necessárias16. A situação parece melhorar com a criação da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, com a ampliação do programa Pró-Saúde para a Assistência Farmacêutica, com a publicação da Portaria Nº 2.981/200917, que estabelecia a utilização de determinada porcentagem de recursos financeiros do Componente Básico da AF, para estruturação e atividades ligadas a educação continuada e com o estabelecimento do programa Qualifar-SUS. Este último, com o objetivo de promover educação permanente, oferece em seu eixo educação cursos presenciais e a distância18.
Apesar do quadro exposto acima, pensando no decênio 1998 a 2007, vislumbra-se a importância e o esforço que o Ministério da Saúde empregou, nas últimas duas décadas, após a publicação da PNM. No Quadro 2 verifica-se as diferentes iniciativas do Ministério da Saúde para o fortalecimento da AF mediante capacitação dos recursos humanos envolvidos, principalmente os farmacêuticos19,20. Para profissionais médicos, destaca-se o Primeiro Curso Nacional sobre o Ensino em Uso Racional de Medicamentos, realizado em 2002, com foco na prescrição médica. É importante também frisar a realização de capacitações locais e regionais.
Entretanto, em contraste com todo o esforço supracitado, ainda persistem situações que precisam de atenção, estratégias e esforços para contorná-las. A concentração de farmacêuticos nas capitais21, os serviços de farmácia com estrutura inadequada e com falta de pessoal capacitado22 e, muitas vezes, a dificuldade de priorizar a capacitação frente a demanda da presença do farmacêutico no serviço, são situações presentes e frequentes23. Ainda, há barreiras que não serão derrubadas apenas com esforços de capacitação.
A trajetória dos medicamentos essenciais (ME) no Brasil, de 1988 a 2018, pode se configurar como uma aproximação da trajetória da própria PNM (Quadro 3).
Quadro 3 Eventos selecionados relacionados a seleção e uso apropriado de medicamentos no Brasil segundo decênios. Brasil, 1988-2018.
Diretrizes* | Prioridades* | 1988-1997 | 1998-2007 | 2008-2017 |
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Adoção de relação de medicamentos essenciais | Revisão permanente | 1997: Inicia-se a adoção do paradigma de evidências, buscando modernizar o processo de atualização da RENAME. | 2002 e 2006: São publicadas duas atualizações da RENAME. | 2009 a 2017: São publicadas cinco atualizações da RENAME e dois Formulários Terapêuticos Nacionais. |
2006: Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, com a publicação da Rename Fito. | 2011, Lei 12401/11: A responsabilidade de atualização da RENAME é transferida da COMARE para a CONITEC, que insere a RENAME no contexto da incorporação de tecnologias em saúde. | |||
Promoção do uso racional de medicamentos | Campanhas educativas Registro e uso de medicamentos genéricos Formulário terapêutico nacional Farmaco-epidemiologia e farmaco-vigilância | 1989: Publicação da 2 Ed. Do Memento terapêutico da CEME. | 2007, Portaria MS/GM 1555/07: Criado o Comitê Nacional para a Promoção do Uso Racional de Medicamentos. | 2008, RDC ANVISA 96/08: Atualizadas normativas sobre propaganda, publicidade, informação e outras práticas cujo objetivo seja a divulgação ou promoção comercial de medicamentos. |
1999, RDC ANVISA 328/99: São estabelecidos pela ANVISA requisitos para dispensação de produtos de interesse à saúde em farmácias e drogaria. | 2001: Entrada no Brasil no programa de Farmacovigilância da OMS. | 2009, RDC ANVISA 44/09: Estabelecidas Boas Práticas Farmacêuticas para o controle sanitário do funcionamento, da dispensação e da comercialização de produtos e da prestação de serviços farmacêuticos em farmácias e drogarias. | ||
2009, RDC ANVISA 47/09: Harmonização da forma e conteúdo das bulas de medicamentos, estabelecendo regras para sua elaboração, atualização, publicação, diferenciando bula para pacientes e bula para profissionais de saúde. | ||||
2011, RDC Anvisa 20/11: Estabelecidas normativas para o controle da prescrição e comercialização de antimicrobianos. |
O princípio da integralidade teve evolução durante o período de construção do SUS. Nos anos 1980-1990 a integralidade era vista como identificação e resposta a necessidades de saúde24. Sob esta égide observou-se a implementação do conceito dos ME como aqueles que satisfariam às necessidades de saúde de uma população25, conceito que preponderou na PNM de 1998, com a adoção e revisão permanente da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename).
Desde 1964 existia uma lista nacional de medicamentos e insumos. Durante a época da Ceme, a Rename era a lista que fundamentava a escolha de medicamentos comprados e distribuídos de forma centralizada. Em 1996, já no escopo da elaboração da PNM, nasceu a primeira lista de ME do Brasil, baseada em evidências, dando início a um intenso processo de revisões consecutivas26.
A partir de 2002, a própria OMS passou a definir ME como aqueles orientados a dar resposta às prioridades sanitárias de uma população27, mostrando que os conceitos de ‘essencialidade’ e ‘prioridade’ se complementavam. No Brasil, a condução da revisão da lista passou à Comissão Multidisciplinar de Atualização da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (COMARE), com regimento próprio, critérios explícitos de inclusão e exclusão de medicamentos28. O conceito de ME institucionalizou-se nos entes subnacionais, calcados nas necessidades sanitárias e adaptados às necessidades locais pela implementação das Relações Municipais de ME (Remume) e Estaduais (Resme). A construção da integralidade passava pela efetivação de um sistema hierarquizado, no qual as escolhas locais e estaduais supririam, de forma complementar, as necessidades orientadas pela Rename. A noção de essencialidade – medicamento eficaz e seguro, efetivo no tratamento a que se destina, com qualidade, e custo acessível – refletia a integralidade. Até 2006, duas novas atualizações da lista foram realizadas26.
Nos anos 2000, teve início o descompasso entre o conceito de ME e aquele regendo a lista nacional. Intensificaram-se as pressões para inovação no âmbito do SUS. Com oferta e implantação de novas tecnologias, objetivou-se conduzir o usuário por níveis de atenção, de forma ‘regulada’. As necessidades seriam atendidas, mas no interior de linhas de cuidado, condutoras da oferta no sistema17. Ao mesmo tempo, a organização do financiamento da AF passou a balizar a provisão e exercer pressão sobre a seleção. A Rename tornou-se vulnerável à capacidade municipal de abastecimento. Desde a descentralização da AF29as fragilidades da gestão local já se faziam sentir. Portarias que atrelavam o financiamento do medicamento à sua presença na Rename30 não conseguiram impedir a aplicação da escolha baseada em evidências, mas fragilizaram o processo hierarquizado que articulava listas locais e lista nacional27,31, tornando agudos o descompasso e a fragmentação da provisão no SUS.
Dificuldades na integralidade tornaram-se evidentes com a crescente judicialização para acesso a ME, a partir de 2007-2009. Antes, a judicialização do acesso foi marco original e importante para o atingimento do direito fundamental à saúde32; a manutenção da fragmentação do financiamento, entretanto, teve enorme impacto sobre a provisão, de sorte que uma área ‘cinzenta’ não coberta pelo financiamento se ampliasse e impelisse o usuário a buscar a via judicial.
De 2008 a 2010 foram feitas duas publicações importantes – o Formulário Terapêutico Nacional (FTN) – edições referentes à Rename de 2006 e à Rename de 2008. O FTN é uma importante estratégia complementar à lista de ME, pois ajuda a pautar a prescrição e a dar concretude à melhor escolha terapêutica, além de orientar os prescritores na sua formação para a boa prescrição.
A adoção do conceito de ME implica também em ações regulatórias – como ‘limpeza’ do mercado - restrição a registro de medicamentos de valor terapêutico duvidoso31,33,34, treinamento de prescritores para o uso racional, seguimento dos medicamentos introduzidos no mercado para coibir uso abusivo e mau uso, além de possibilitar exame da sua efetividade e da segurança no mundo real, entre outras. No entanto, o Brasil não tomou o caminho da restrição e do monitoramento do uso dos medicamentos. Houve, de fato, a introdução dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas a partir de 1997, cujo desenvolvimento se notabilizou a partir de 200233. Os protocolos são estratégia crucial no estabelecimento de padrões aceitáveis de uso, pois baseiam-se na melhor evidência. Ocorre que sua implantação se flexibilizou e sua aplicação no SUS tem sido aquém do esperado35.
Até 2012, a Rename teve seis versões revisadas (apenas as cinco primeiras publicadas), mas sofreu danos importantes com a publicação da Lei 12.40136, que passou à nova Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) a responsabilidade de incorporar as tecnologias no SUS e de revisar e atualizar a Rename. A lista publicada em 2012, produzida pelo MS a partir da compilação de todas as listas e fornecimento do SUS, passou a ser entendida como a lista de todos os produtos financiados pelo SUS37, e não mais uma lista de ME. Paradoxalmente, foram excluídos da lista todos os oncológicos e oftalmológicos. A integralidade, na ótica da lista nacional, passa a ser entendida como ‘tudo’38,39 provido pelos componentes de financiamento – com exclusão do financiado por APAC. Passou-se, assim, para uma lista positiva do sistema, colocando abaixo o conceito dos ME e da integralidade baseada em necessidade.
A partir de 2013, ocorre a flexibilização das normas de registro, abreviando o tempo para que um produto acesse o mercado brasileiro40, e normas regulando acesso expandido e uso compassivo41. Esta tem sido uma tendência internacional e é consequência da pressão por inovação e por financiamento42, resultando em judicialização crescente e em níveis sem paralelo, colocando em risco a provisão pública. Em 2016, a provisão regular de medicamentos no SUS, nos três níveis de atenção, consumiu 13 bilhões de reais. A via judicial, oito bilhões43.
Os 20 anos que nos separam do lançamento da PNM mostram avanços heterogêneos na provisão pública de medicamentos: vemos excelente acesso em alguns nichos de agravos na APS44, e enormes dificuldades para os usuários na obtenção de medicamentos especializados9,45. No entanto, a revisão permanente da Rename e a adoção do conceito dos ME, vistas como estruturantes para a Política e como orientadoras da provisão e de todas as atividades de AF, ficaram comprometidas no decorrer do tempo. Favorecer a ideia de essencialidade é estratégico para o SUS e absolutamente consoante com o princípio da integralidade. Faz sentido, dentro da ideia de redes, como estratégia de superação da fragmentação da atenção46.
O uso racional de medicamentos tem sido apontado, juntamente com o acesso a medicamentos de qualidade, como objetivo central de uma política de medicamentos. A partir do marco da Conferência de Nairobi47, se reconheceu que os benefícios do acesso não se concretizam, ou mesmo perdem, se os medicamentos não forem usados de forma adequada.
Há uma tendência atual de adotar a designação de “uso apropriado de medicamentos” (UAM) em lugar de “uso racional”, uma vez que o mal uso pode ser respaldado por racionalidades espúrias.
As estratégias de promoção do UAM têm sido classificadas como regulatórias, gerenciais e educacionais48. Os principais marcos relacionados aos esforços de promoção do UAM no Brasil estão sumarizados no Quadro 3.
No Brasil, registram-se poucas ações para promoção do UAM até o final dos anos 80. Talvez, das poucas ações de abrangência nacional, tenham sido as publicações dos mementos terapêuticos da CEME, que traziam orientações quanto às características, uso e cuidados com os medicamentos da RENAME. O último memento da CEME foi publicado em 198949.
Ao final da década de 90 surgem no Brasil algumas associações independentes de profissionais ou consumidores visando promover o UAM, tendo sempre o medicamento como parte importante de sua pauta. Naquela época, se iniciou também a parceria com organizações internacionais, com representação em diferentes continentes. O Núcleo de Assistência Farmacêutica (NAF/ENSP/Fiocruz), criado em 1998, e Centro Colaborador da OPAS/OMS, embora declare sua atuação focada em políticas farmacêuticas, tem atuado em vários temas relevantes ao UAM.
Tendo em vista que as estratégias regulatórias constituem núcleo importante para promoção do UAM, o órgão regulador brasileiro sempre teve papel importante no tema. Assim, na década 1988-97 cabe destaque ao esforço da Anvisa na instituição das Boas Práticas de Dispensação, atividade com impacto direto no UAM50.
Na década 1998-2007, destaca-se a criação do Comitê Nacional para a Promoção do Uso Racional de Medicamentos51 (com redefinições em 201352). Este comitê tem representação de várias instituições e tem desenvolvido ações como a organização de eventos, sendo o Congresso Brasileiro de Uso Racional de Medicamentos o principal deles, materiais educativos, recomendação de ações regulatórias e campanhas. Na mesma década, o Brasil institui na ANVISA o Sistema Nacional de Farmacovigilância, iniciativa que contou com forte indução da Organização OPAS, além de grupos nacionais que militavam pelo UAM53. Um importante reconhecimento foi a inclusão do Brasil como 62o membro oficial do Programa Internacional de Monitorização de Medicamentos53.
Finalmente, a década 2008-2018 tem assistido um número maior de iniciativas, como a atualização das normas de propaganda e publicidade em 200854, o estabelecimento das Boas Práticas Farmacêuticas, onde inclui a prestação de serviços farmacêuticos em farmácias e drogarias55, a harmonização do conteúdo das bulas56 e as normativas para o controle da prescrição/comercialização de antimicrobianos57.
O avanço trazido por essas iniciativas tem sido controverso. No caso do controle de propaganda, à época da consulta pública que resultou na normativa, houve um pronunciamento enfático de um grande grupo de pesquisadores, profissionais e ativistas do UAM, com críticas ao documento, em especial a não adoção da fiscalização prévia. Argumentavam que, ainda que a infração fosse detectada posteriormente, o baixo valor das multas faria com que o ganho recuperado com as vendas promovidas pela circulação das peças, ainda que num curto período, compensavam o risco. De fato, estudos realizados evidenciaram o baixo cumprimento da legislação em peças de propaganda de medicamentos tanto dirigida a profissionais quanto a usuários58,59.
No caso dos serviços farmacêuticos, o Conselho Federal de Farmácia se viu respaldado a normatizar a prescrição farmacêutica60, tema sem consenso mesmo dentro da categoria farmacêutica61. Houve pela Anvisa esforços de fortalecimento das ações quanto às bulas, como a publicação do bulário eletrônico62.
Finalmente, quanto aos antimicrobianos, também se tem demonstrado incipiente repercussão na redução do volume de consumo63.
As ações de promoção do UAM estão fortemente situadas no campo da promoção da saúde e prevenção de doenças, seja primária, secundária, terciária ou quaternária, portanto bastante imbricadas com o processo de cuidado em saúde. Pode-se dizer, portanto, que atendem diretamente ao princípio da integralidade. São muitas as dificuldades envolvidas, uma vez que têm grande repercussão no consumo de medicamentos, portanto nas vendas e na adoção das medidas que implicam em mudança de comportamento, tanto por profissionais, gestores e consumidores.
A questão da dependência tecnológica do Brasil no setor farmacêutico foi permanente ao longo do século XX e respondida em diferentes momentos, considerando o país na condição de “periferia” de um setor industrial que se consolidou principalmente nos países europeus e Estados Unidos, e cuja base dependeu do lançamento de inovações no mercado e na expansão de suas vendas64.
No início da década de 1970, o estímulo à produção nacional de medicamentos esteve relacionado às ações de AF. Com a constituição de um mercado público, que possibilitou assegurar uma demanda constante, a Ceme adotou outros instrumentos de política industrial para incentivar a produção pelo setor público e também o desenvolvimento de insumos farmacêuticos ativos (IFA) em território nacional65. A Ceme foi extinta em 1997 por não cumprir satisfatoriamente nenhum de seus objetivos iniciais, além de denúncias de irregularidades (Quadro 4)8.
Quadro 4 Eventos selecionados relacionados ao desenvolvimento científico e tecnológico e Promoção da produção de medicamentos no Brasil segundo decênios. Brasil, 1988-2018.
Diretrizes* | Prioridades* | 1988-1997 | 1998-2007 | 2008-2018 |
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Desenvolvimento científico e tecnológico | - | 1996, Lei 9279/96: Aprovada nova lei de Propriedade Industrial no Brasil, que define direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. A mesma apresenta diferenças marcantes comparada a lei anterior, visando atender as exigências do Acordo Trips. | 2000: Criado projeto (INOVAR) com financiamento da FINEP visando impulsionar a criação e o desenvolvimento de empresas de base tecnológica, incluindo as Farmacêuticas, através da promoção de investimentos em capital de risco. | 2009, Portaria MS/GM 2690/09 - Política nacional de gestão de tecnologias em saúde. |
2003 – 2006: Instalado o Fórum de competividade da cadeia produtiva farmacêutica como objetivo principal de fortalecer a cadeia produtiva farmacêutica nacional. | 2015, Lei 13123/15: Atualização da legislação sobre acesso a patrimônio genético, que ganha maior escopo de atuação e simplificação de procedimentos. Institui o Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado – SISGEN. | |||
2004: Lançada as Diretrizes da Política Industrial, Tecnológica e do Comércio Exterior (PITCE), que enfatizam o enfrentamento da vulnerabilidade externa com foco em setores intensivos em tecnologia como o farmacêutico e o farmoquímico, buscando o aumento da eficiência da produção nacional, aumento da capacidade inovativa e expansão das exportações. | 2017, Decreto 9245/17: Instituída política nacional de inovação tecnológica na saúde. | |||
2004, Lei 10973/04 Normatizados incentivos ao estímulo a inovação e à pesquisa tecnológica em ambiente produtivo, com ênfase a Instituição Científica, Tecnológica e de Inovação no processo de inovação e na parceria com empresas. | ||||
2005, Edital CNPQ 054/05: Lançado edital de apoio a pesquisa em Assistência Farmacêutica. | ||||
Promoção da produção de medicamentos | - | 2001: Projeto de Estímulo à Produção Farmacêutica -Para fortalecimento dos laboratórios públicos, o Ministério da Saúde desenvolveu um programa de investimentos para modernização de dez instituições (Guarda-Chuva). | 2008: Lançada política para o desenvolvimento produtivo visando fortalecer a capacidade de competição das empresas brasileiras, um dos seus desafios é elevar a capacidade de inovação das empresas. | |
2003: Política de Desenvolvimento Produtivo. | 2008, Portaria 374/2008: Lançado Programa Nacional de Fomento à Produção Pública e Inovação no Complexo Industrial da Saúde, que estabelece objetivos e diretrizes para modernizar e aumentar a capacidade tecnológica dos Laboratórios Públicos. | |||
2004: Criação do Programa de apoio ao Fortalecimento da Cadeia Farmacêutica (PRoFaRMa). | 2009: Desenvolvimento do Complexo Econômico - Industrial da Saúde (CEIS), por meio de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP). | |||
2005, Portaria MS/GM 843/05: É criada Rede de Laboratórios Farmacêuticos Públicos com o objetivo de fortalecer a indústria nacional. | 2011. É lançado o Plano Brasil Maior que estabelece uma série de medidas e metas para fortalecer a competitividade industrial. - Plano Brasil Maior. Inovar para competir. Competir para crescer. Plano 2011/2014. | |||
A primeira década de existência do SUS se encerra, portanto, com perspectivas de longo prazo, a partir da publicação, em 1998, da PNM. Aspectos relacionados à política industrial foram reconhecidos, com diretrizes específicas para o desenvolvimento Científico e Tecnológico (C&T) e a Promoção da Produção de Medicamentos16.
Na primeira década do SUS, a tradução desses enunciados em iniciativas concretas voltadas ao setor industrial nacional pode ser refletida tanto pela aprovação da Política de Genéricos (Lei 9.787/99), que por meio de investimentos do BNDES estimulou o crescimento do setor nacional privado66, quanto pelo Projeto Guarda Chuva, que assegurou financiamento aos LFO, principalmente considerando a produção de medicamentos antirretrovirais no contexto da epidemia de HIV/aids67. Lições importantes dessas experiências sugerem um papel relevante dos LFO na realização de estimativas de custo de produção e de desenvolvimento estratégico de produtos sob monopólio, contribuindo nos esforços de negociação de preços entre o governo e as empresas transnacionais.
A 1a Conferência Nacional de Medicamentos e AF buscou alinhar a AF a outras políticas no campo da produção industrial e da ciência e tecnologia, reconhecidas na Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF).
No que se refere à C&T, voltada ao setor saúde, entre os principais marcos está a Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (PNCTI), aprovada em 2004, na 2a Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia em Saúde e publicada em 2008, que incorporou os princípios do mérito científico e relevância social68.
Já na segunda década de existência do SUS, a questão do desenvolvimento industrial ganhou contornos para além do setor saúde, com a aprovação da Política Industrial, Tecnológica e do Comércio Exterior (PITCE), que incluiu o setor farmacêutico entre suas áreas e visou a redução da vulnerabilidade nacional, caracterizada por dependência externa nas áreas intensivas em tecnologia.
Em 2007, com o licenciamento compulsório das patentes do ARV efavirenz, a produção local foi novamente inserida entre as opções de implementação da medida, resultando num consórcio para a produção do insumo farmacêutico ativo (IFA), que resultou na disponibilização do genérico nacional do medicamento a partir de 2009 e gerando economia considerável nos gastos públicos.
A partir de 2008, na terceira década do SUS, o Complexo Industrial da Saúde (CIS) foi inserido entre os eixos estratégicos do planejamento em saúde do governo federal69, resultando na aprovação de uma série de normas que deram novos contornos à política industrial, com ênfase nos esforços de retomada da indústria farmoquímica nacional e fortalecimento dos LFO70. A partir de 2009, as Parcerias para Desenvolvimento Produtivo (PDP) foram estabelecidas como arranjos de transferência de tecnologia para fortalecer esses dois segmentos, considerando produtos adquiridos pelo SUS enquanto perspectiva de demanda constante, sem concorrência.
Em que pese a previsão de uma política industrial enquanto enunciado e priorização governamental, diagnóstico recente dos LFO evidencia que aspectos da capacitação tecnológica e da capacidade em contribuir para o acesso a medicamentos pouco avançaram neste segmento70, sugerindo baixa condição em responder às vulnerabilidades da AF no SUS. A seleção de tecnologias candidatas à produção local e ao desenvolvimento industrial deve ser considerada à luz da integralidade, o que, neste caso, implica analisar a dinâmica do mercado e priorizar aquelas sob risco de desabastecimento; áreas de vazios terapêuticos; e produtos de alto custo, com a finalidade de subsidiar a regulação de preços.
O Sistema de Regulação de Ética em Pesquisa com medicamentos está estabelecido sob responsabilidade do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e conta com a participação do MS em algumas de suas funções71.
A primeira resolução publicada para estabelecer normas para pesquisas na área de saúde no Brasil foi a Resolução CNS 01/88 (Quadro 5). A pouca adesão desejada entre os membros da comunidade científica deu origem à necessidade de se elaborar um novo documento mais detalhado na abordagem dos aspectos éticos requeridos na realização de pesquisas. Em 1995, foi criada uma comissão liderada pelo CNS para elaboração de uma nova resolução, publicada em 199672,73. A Resolução 196/96 atualizou diretrizes e estabeleceu a necessidade de criação de um sistema centralizado de revisão ética composto pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), “uma instância colegiada, de natureza consultiva, deliberativa, normativa, educativa, independente, vinculada ao CNS” e por Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) definidos como “colegiados interdisciplinares e independentes, com ‘munus público’, de caráter consultivo, deliberativo e educativo, criados para defender os interesses dos participantes da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrões éticos”74. Esta resolução foi revogada em 2012, com a publicação da Resolução CNS 466/12, que trouxe avanços, dentre eles instruções sobre a utilização de placebo e a necessidade de assegurar a todos os participantes ao final do estudo, por parte do patrocinador, acesso gratuito e por tempo indeterminado, aos melhores métodos profiláticos, diagnósticos e terapêuticos que se demonstraram eficazes. Além disso, contemplou a garantia de fornecimento aos participantes, que muitas vezes ficavam desassistidos, no intervalo entre o término da participação individual e o final do estudo75.
Quadro 5 Eventos selecionados relacionados a regulamentação sanitária Garantia da segurança, eficácia e qualidade dos medicamentos no Brasil segundo decênios. Brasil, 1988-2018.
Diretrizes* | Prioridades* | 1988-1997 | 1998-2007 | 2008-2018 |
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Regulamentação sanitária de medicamentos e regulação ética | Revitalização, a flexibilização de procedimentos e a busca por maior consistência técnico-científica Elaboração de procedimentos operacionais sistematizados Treinamento | 1988, Resolução CNS 01/88: Inaugura no pais o estabelecimento de normas para pesquisa na área da Saúde. | 1999: Uma Comissão Parlamentar de inquéritos, desencadeada por um escândalo relacionado à falsificação de medicamentos identifica um amplo conjunto de problemas e resulta na proposição de várias ações regulatórias. | 2008, Portaria ANVISA 422/208: É instituído o Programa de Melhoria de Regulamentação (PMR) da ANVISA. |
1993, Decreto 793/93: Decreto presidencial aborda de forma importante a questão dos genéricos no país (Denominação genérica de medicamentos). | 1999, Lei 9782/99: É criada a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), com modelo de agencia autônoma. | 2012, RDC CEMED 02/12: Definições importantes acerca do preço dos medicamentos pela CMED. | ||
1994, Portaria MS/GM 1565/94: São estabelecidas as diretrizes do sistema nacional de Vigilância sanitária (SNVS) considerando o papel das três esferas. | 1999, Lei 9787/99: Criada Lei de genéricos, normatizando um amplo número de aspectos, como qualidade, substituição. | 2012, Resolução CNS 466/12: Atualiza as diretrizes de ética em pesquisa. | ||
1996, Resolução CNS 196/96: Atualiza as diretrizes de ética em pesquisa e estabelece a criação do sistema CEP/CONEP. | 2000: Anvisa assume a secretaria executiva da Câmara de Medicamentos (CaMed), desencadeando uma série de intervenções para a regulação de preços de medicamentos. | 2013, Decreto 8077/13: São estabelecidas flexibilizações no registro de medicamentos. | ||
Garantia da segurança, eficácia e qualidade dos medicamentos | - | 1988, Decreto 96607/88: Publicada uma atualização da Farmacopeia Brasileira. | 1999: Identificação pela CPI de Medicamentos de amplo conjunto de irregularidades quanto a qualidade e segurança dos medicamentos, em especial a falsificação. | 2012, RDC ANVISA 12/12: Criação da Rede Brasileira de Laboratórios Analíticos em Saúde (REBLAS). |
2010, RDC ANVISA 49/10:Publicada uma atualização da Farmacopeia Brasileira. | ||||
2017: Publicado o Formulário Homeopático da Farmacopeia Brasileira 1ª Edição. |
Atualmente, destacam-se três iniciativas regulatórias que poderão modificar o cenário de revisão ética do país. A primeira é a Resolução CNS 506/16 que “estabelece os critérios para o processo de acreditação de CEP do Sistema CEP/Conep, em instituições públicas e privadas”. Pretende-se que este movimento promova uma maior descentralização do sistema, fortalecendo a autonomia de Comitês de Ética em Pesquisa para atuar de forma mais regionalizada. A segunda é a resolução 510/16 que aprova normas para regulamentar pesquisa na área de ciências humanas e sociais e outras que utilizam metodologias próprias dessas áreas. Desta forma, busca-se uma análise mais adequada às especificidades destas pesquisas, a constituição de uma nova área para submissão de projetos na Plataforma Brasil e ainda o estabelecimento de novos fluxos para apreciação das pesquisas de acordo com riscos envolvidos76.
Com o argumento de dar maior legitimidade jurídica e celeridade às pesquisas clínicas no país, tramita na Câmara de Deputados um projeto de lei (7082/17), já aprovado no Senado (PL 200/15), que dentre outras propostas propõe uma limitação no fornecimento do medicamento pós-estudo garantido pela Res. CNS 466/12. Propõe a criação de um novo sistema de regulação ética para pesquisas clínicas vinculado ao MS, a nosso ver um contrassenso se pensarmos na função precípua do CNS, órgão participativo e deliberativo vinculado ao MS com importantes funções de fiscalização e formulação de políticas de saúde no país e que vêm exercendo com seriedade a defesa dos participantes de pesquisas no Brasil.
Trinta anos é um período longo. O país é grande, desigual e complexo, e atravessou várias mudanças políticas, econômicas e sociais ao longo desse tempo. O tema dos medicamentos e AF é bastante amplo e central, com várias imbricações intersetoriais. Assim, contar esta história requer recortes e escolhas.
A seleção dos eventos não foi tarefa fácil. Foram considerados, principalmente, ainda que não exclusivamente, atos regulatórios, o que por si expressam um esforço de implementação. No entanto, isto não garante, necessariamente, que a implementação tenha sido plena ou bem sucedida, uma vez que não é pretensão deste texto um levantamento dos resultados alcançados. Por outro lado, consideramos necessário o alerta das consequências das atuais políticas que vem sendo implementadas e o desmonte de estruturas sólidas e que representaram consideráveis avanços sociais. Vamos defender o SUS!