versão impressa ISSN 2359-4802versão On-line ISSN 2359-5647
Int. J. Cardiovasc. Sci. vol.31 no.3 Rio de Janeiro maio/jun. 2018
http://dx.doi.org/10.5935/2359-4802.20180018
A cirurgia cardíaca é uma forma de tratamento de patologias coronarianas e miocárdicas que visa aumentar a sobrevida e a qualidade de vida do paciente. Porém, este tipo de cirurgia está relacionado a efeitos deletérios sobre os principais sistemas corporais, como os sistemas cardiovascular, nervoso central, digestivo, renal e respiratório.1 Neste contexto, as complicações pulmonares emergem como uma causa importante de aumento da morbimortalidade no pós-operatório.2
Pacientes submetidos a cirurgia cardíaca permanecem em ventilação mecânica (VM) no pós-operatório imediato até despertarem adequadamente e apresentarem boa estabilidade respiratória e hemodinâmica.3,4 Em alguns casos, a duração da internação é ainda maior e o paciente pode permanecer no leito por vários dias, frequentemente devido à necessidade de utilização de drogas vasoativas.
As complicações ocasionadas pela cirurgia cardíaca ocasionam alteração multifatorial da função pulmonar, incluindo colapso alveolar, diminuição da capacidade residual funcional, retenção de secreção e piora da efetividade da tosse.5,6
Quando a intervenção fisioterapêutica é prescrita corretamente durante o pré-operatório e o pós-operatório de cirurgia cardíaca, proporciona grandes benefícios para pacientes cardíacos e pode reduzir substancialmente a ocorrência de complicações nesses períodos. Estes benefícios potenciais tornam indispensável a inclusão do profissional de fisioterapia no ambiente hospitalar. Porém, ainda são escassas na literatura as informações acerca do impacto da alteração da mecânica respiratória sobre a duração da VM invasiva (VMI) e se isso levaria a um aumento do tempo de permanência na unidade de terapia intensiva (UTI).
Com base nestas considerações, este estudo teve por objetivo avaliar a associação entre a mecânica respiratória com a oxigenação e a duração da VMI e de internação na UTI em pacientes no pós-operatório de cirurgia cardíaca.
Trata-se de um estudo do tipo coorte prospectivo conduzido com pacientes internados no Instituto Nobre de Cardiologia / Santa Casa de Misericórdia no período de fevereiro a junho de 2016. O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade Nobre (CAAE 51208115.1.0000.5654) e todos os pacientes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido no período pré-operatório.
Os critérios de inclusão foram indivíduos de ambos os gêneros, com idade de 18 anos ou mais, submetidos a procedimentos de cirurgia cardíaca (revascularização miocárdica [RM], troca de valva aórtica e/ou mitral e correção de doenças cardíacas), que realizaram esternotomia e foram submetidos a circulação extracorpórea (CEM) sob VMI no pós-operatório imediato. Os critério de exclusão foram (a) instabilidade hemodinâmica com necessidade de drogas vasopressoras em alta concentração, (b) mecânica respiratória não avaliável (por exemplo, interação com a VM), (c) evolução para óbito durante o período na UTI, (d) necessidade de sedação por mais de 48 horas, (e) ausência de cateter arterial para coleta de amostra de sangue e (f) recusa à participação na pesquisa e à assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.
Os pacientes que preencheram os critérios de inclusão foram avaliados no momento de entrada na UTI, logo após saírem do centro cirúrgico. Após os primeiros cuidados da equipe de saúde, o fisioterapeuta plantonista avaliava a mecânica ventilatória e obtinha as medidas de pressão de pico e platô, complacência estática do sistema respiratório e resistência das vias aéreas a partir do ventilador (Vela, Viasys Healthcare, Critical Care Division, Palm Springs, CA, EUA).
Durante essa avaliação, os pacientes permaneciam em decúbito dorsal com cabeceira elevada a um mínimo de 30º, ainda sob efeito da anestesia cirúrgica, recebendo ventilação sob modo volume controlado (6 mL/kg) com fluxo inspiratório de 40 L/min, frequência respiratória de 15 mpm, tempo de pausa de 1 segundo, fração inspirada de oxigênio (FiO2) de 100% e pressão positiva ao final da expiração (PEEP) de 5 cm H2O. Para o cálculo da complacência estática, foi utilizada a fórmula volume corrente / (pressão de platô - PEEP) e para o cálculo da resistência, a fórmula (pressão de pico - pressão de platô) / fluxo.
Imediatamente após a avaliação da mecânica ventilatória, o médico plantonista coletava uma amostra de sangue arterial através de um cateter inserido na artéria radial. A amostra era analisada por um hemogasômetro e eram anotados os dados relacionados à pressão arterial de oxigênio (PaO2) e FiO2. Os níveis de PaO2 eram divididos pelos níveis de FiO2 para obtenção do índice de oxigenação.
Após essas avaliações, o paciente continuava a receber suporte de acordo com procedimentos de rotina da unidade, incluindo a manutenção de estratégias para desmame e decisão sobre a alta para a enfermaria. Os pesquisadores não interferiam sobre as decisões, apenas anotavam a duração da VMI (da admissão na UTI até a extubação) e de internação na UTI.
A análise foi realizada com o programa SPSS 20.0 e os dados estão representados como média e desvio padrão. A normalidade foi analisada com o teste de Kolmogorov-Smirnov. As variáveis categóricas foram analisadas com o teste do qui-quadrado e as variáveis numéricas (duração da VMI, tempo de permanência na UTI, complacência estática, resistência e trocas gasosas) com o teste de correção de Pearson. Valores de p < 0,05 foram considerados estatisticamente significantes.
Entre fevereiro e junho de 2016, foram internados 64 pacientes para realização de cirurgia cardíaca. Destes, 14 foram excluídos do estudo por mecânica ventilatória não avaliável (10 pacientes) ou por recusarem assinar o termo de consentimento (4 pacientes). Portando, foram incluídos 50 pacientes (dos quais 52% eram mulheres) com média de idade de 57,5 ± 13,5 anos que realizaram cirurgia cardíaca no Instituto Nobre de Cardiologia / Santa Casa de Misericórdia em Feira de Santana, Bahia (Brasil).
A Tabela 1 apresenta as características dos pacientes incluídos no estudo.
Tabela 1 Dados clínicos, demográficos e cirúrgicos dos pacientes submetidos a cirurgia cardíaca
Variáveis | Média/DP | N (%) |
---|---|---|
Idade (anos) | 57 ± 13 | |
Gênero | ||
Masculino | 24 (48) | |
Feminino | 26 (52) | |
Tipo de cirurgia | ||
RM | 37 (74) | |
Troca valvar | 12 (24) | |
Correção de malformações congênitas | 1 (2) | |
Duração da CEC (minutos) | 72 ± 22 | |
Duração da VM (horas) | 8 ± 3 | |
PaO2/FiO2 | 228,0 ± 33,4 | |
Extubação bem-sucedida | 50 (100) |
DP: desvio padrão; N: número de pacientes; RM: revascularização do miocárdio; VM: ventilação mecânica; CEC: circulação extracorpórea; PaO2: pressão arterial de oxigênio; FiO2: fração inspirada de oxigênio.
A complacência estática média foi de 35,5 ± 9,1 cm H2O, a resistência média das vias aéreas foi de 6,0 ± 2,3 cm H2O e o tempo médio de estadia na UTI foi de 2,9 ± 1,1 dias.
Não foi encontrada uma correlação significativa entre a duração da VMI com a complacência estática e a resistência (p = 0,73 e p = 0,51, respectivamente) (Tabela 2).
Tabela 2 Análise da mecânica ventilatória e a duração da ventilação mecânica invasiva (VMI) em pacientes submetidos a cirurgia cardíaca
Variável | |
---|---|
Complacência estática (cm H2O) | 35,5 ± 9,1 |
Duração da VMI (horas) | 8 ± 3 |
pa | 0,73 |
Resistência (cm H2O) | 6,0 ± 2,3 |
Duração da VMI (horas) | 8 ± 3 |
p* | 0,51 |
Dados apresentados como média ± desvio padrão.
*Teste de Pearson.
A Tabela 3 evidencia a complacência estática e a resistência em função do tempo de internamento na UTI, analisados com o teste de Spearman. Também não foi observada uma relação estatisticamente significativa nesta análise (p = 0,83 e p = 0,98, respectivamente).
Tabela 3 Análise da mecânica ventilatória e do tempo de internamento na unidade de terapia intensiva (UTI) em pacientes submetidos a cirurgia cardíaca
Variável | |
---|---|
Complacência estática (cm H2O) | 35,5 ± 9,1 |
Tempo de UTI (dias) | 2,9 ± 1,1 |
p* | 0,83 |
Resistência (cm H2O) | 6,0 ± 2,3 |
Tempo de UTI (dias) | 2,9 ± 1,1 |
p* | 0,98 |
Dados apresentados como média ± desvio padrão.
*Teste de Spearman.
Por outro lado, foi verificada uma forte correlação entre a complacência estática e as trocas gasosas (228,0 ± 33,4, r = 0,8, p < 0,001) (Figura 1).
Os resultados deste estudo mostram que a mecânica ventilatória (complacência estática e resistência) não influenciou a duração da VMI e o tempo de permanência na UTI. Por outro lado, a complacência estática apresentou uma forte correlação com as trocas gasosas no pós-operatório de cirurgia cardíaca.
Para Arcênio et al.,7 a anestesia e determinadas cirurgias predispõem o paciente a alterações na mecânica respiratória, volumes pulmonares e trocas gasosas. A cirurgia cardíaca, um procedimento considerado de grande porte, pode desencadear no pós-operatório alterações respiratórias relacionadas a diversos fatores, como função pulmonar e cardíaca no pré-operatório, utilização de circulação extracorpórea (CEC) e grau de sedação.
Segundo Badenes et al.,8 a cirurgia cardíaca associada à VM no pós-operatório causa significativa alteração estrutural e funcional a nível pulmonar devido ao processo inflamatório também associado à CEC, o que gera redução da complacência do sistema respiratório. No presente estudo, não foi possível realizar previamente à cirurgia uma avaliação dos parâmetros da função pulmonar.
Levando em consideração o declínio pulmonar que ocorre após cirurgia cardíaca, Auler Jr et al.9 investigaram o efeito da PEEP sobre a mecânica respiratória em pacientes submetidos a revascularização cardíaca. Os autores aplicaram diferentes níveis de PEEP (0, 5, 10 e 15 cm H2O) e demonstraram que com o aumento da pressão positiva, houve uma diminuição da resistência das vias aéreas e da elastância. Vale ressaltar que, no presente estudo, todos os pacientes tiveram a PEEP pré-estabelecida em 5 cm H2O e uma baixa resistência também foi observada com a média de 6 cm H2O.
Outro fator que pode aumentar o tempo de permanência do paciente na VMI e na UTI é a duração intraoperatória da CEC. Canver & Chanda10 observaram que a CEC é um fator independente para insuficiência respiratória pós-operatória, o que consequentemente leva a um aumento da duração da VMI e de estadia na UTI. Na tentativa de reduzir o impacto da CEC sobre a função pulmonar, Figueiredo et al.,11 avaliaram 30 pacientes no pós-operatório de RM com o intuito de verificar o impacto da pressão positiva contínua nas vias aéreas (CPAP) sobre as trocas gasosas durante a CEC e mostraram que não houve melhora duradoura com a utilização da CEC a 10 cm H2O.
As causas de falha na retirada da VM em pacientes submetidos a cirurgia cardíaca estão relacionadas sobretudo à presença de disfunção cardíaca e tempo prolongado de CEC. A duração da CEC é um dos principais fatores a retardar o desmame da VM após cirurgia cardíaca, devido ao importante distúrbio fisiológico causado pela resposta inflamatória ao circuito extracorpóreo.12 Em um estudo conduzido por Nozawa et al.,12 a complacência pulmonar estática esteve alterada, apresentando valores abaixo do normal, mas este parâmetro não foi suficientemente sensível para identificar o prognóstico dos pacientes em relação ao desmame da VM. A resistência das vias aéreas esteve aumentada em todos os pacientes; porém, não se observou diferença significativa entre os pacientes que evoluíram para independência da VM e os que evoluíram para insucesso no desmame.
Em relação às trocas gasosas, verificou-se no presente estudo que quanto menor a complacência estática, menor o índice de oxigenação. Rodrigues et al.,13 avaliaram 942 pacientes a fim de verificar os fatores associados à disfunção das trocas após cirurgia cardíaca e observaram que a presença de pneumonia, arritmia cardíaca e hemoterapia apresentou correlação com essa disfunção. Outros autores demonstraram que o índice de massa corpórea e o tabagismo podem estar associados à hipoxemia, que por sua vez tem relação com um declínio da complacência pulmonar.14,15
Como alternativa para corrigir essa piora da complacência pulmonar, Lima et al.,16 pesquisaram o impacto de diferentes níveis de PEEP sobre as trocas gasosas em pacientes submetidos a cirurgia de RM. Os autores avaliaram 78 indivíduos divididos em três grupos conforme o valor da PEEP (5, 8 e 10 cm H2O) e observaram que mudanças no valor da PEEP não interferem nas trocas. Quando os autores analisaram o grupo que recebeu PEEP de 5 cm H2O (valor idêntico ao utilizado no presente estudo), observaram um valor médio de 320,5 ± 65,0 mmHg, enquanto no estudo atual a média foi de 228,0 ± 33,4 mmHg.
As limitações do presente estudo incluem a falta de avaliação das comorbidades apresentadas pelos pacientes incluídos na análise. Outra limitação foi a ausência de informação sobre a complacência estática, resistência e trocas gasosas no pré-operatório.
Com base nos resultados deste estudo, concluímos que a mecânica pulmonar apresenta uma forte correlação com as trocas gasosas e uma fraca correlação com a duração da VM no pós-operatório de cirurgia cardíaca.