versão impressa ISSN 0101-2800
J. Bras. Nefrol. vol.36 no.4 São Paulo out./dez. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20140062
O Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES) é uma doença inflamatória crônica, multissistêmica, que acomete principalmente mulheres jovens em idade reprodutiva, em uma proporção de nove mulheres para cada homem.1 A prevalência varia de 20 a 150 casos/100.000 indivíduos.2 Sua etiologia ainda é obscura, e parece haver a interação de fatores genéticos, hormonais, ambientais e imunológicos para o desenvolvimento da doença.3
O envolvimento renal ainda constitui-se num dos principais determinantes da morbimortalidade de pacientes com LES. Manifesta-se clinicamente em 50% a 70% dos casos, mas 100% deles têm doença renal à microscopia eletrônica (ME). Em geral, as manifestações renais surgem nos primeiros dois a cinco anos da doença.4
A deficiência de vitamina D, reconhecida atualmente como epidêmica, pode ser um fator ambiental responsável pelo desencadeamento do LES.5 A função clássica da vitamina D é a regulação da homeostase óssea;6 entretanto, há evidências de que ela apresenta efeitos pluripotentes em vários órgãos e sistemas, destacando-se, neste contexto, seu papel sobre o sistema imunológico.7 Em relação ao sistema imune, a vitamina D potencializa a imunidade inata e suprime a imunidade adaptativa; afeta indiretamente a polarização dos linfócitos T, promovendo um desvio da resposta imune no sentido de tolerância.8 Seu papel sobre as células B consiste em inibir a secreção de anticorpos e a produção de autoanticorpos.9
Vários estudos demonstram elevada prevalência de hipovitaminose D em doenças autoimunes, entre elas, o LES.10-13 Além disso, no LES, é descrita a associação entre deficiência de 25(OH)D e ocorrência de nefrite, assim como associação com gravidade da doença.14
No Brasil, ainda são poucos os estudos abordando o tema LES e vitamina D. O presente estudo teve como objetivo avaliar a associação entre insuficiência de vitamina D, LES e inflamação.
O estudo foi do tipo transversal. Foi realizada revisão de prontuários médicos dos pacientes com LES do ambulatório de Reumatologia do Centro de Atenção à Saúde do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora (CAS/HUUFJF). Identificaram-se 126 pacientes elegíveis, os quais foram convidados a participar do estudo. Destes, 45 pacientes concordaram em participar e foram incluídos no estudo. Estabeleceu-se um grupo controle constituído por 24 indivíduos saudáveis (sem quaisquer patologias detectáveis aos exames clínico e laboratorial), pareados por sexo e idade e residentes na mesma localização geográfica, estudantes dos cursos de Medicina da UFJF e de Enfermagem da Universidade Estácio de Sá, de Juiz de Fora.
Foram incluídos no estudo pacientes com o diagnóstico de LES (segundo os critérios da American College of Rheumatology (ACR), propostos em 1982 e revisados em 1997,15,16 que tinham mais de 18 anos e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Gravidez e/ou presença de doenças sistêmicas que levam a comprometimento renal, como diabetes mellitus, vasculites, doenças infecciosas agudas, hepatites virais B e C e Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA) foram considerados critérios de não inclusão no estudo.
Os dados foram coletados de maio de 2010 a março de 2011. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário da UFJF. Os pacientes e controles que concordaram em participar do estudo responderam um questionário estruturado abordando as seguintes variáveis clínicas: sexo, idade, raça (avaliada por autorrelato), exposição ao sol (em horas/semana), estação do ano em que foi realizada a avaliação, uso de protetor solar e tabagismo.
Os pacientes que estavam em uso de cálcio e vitamina D foram submetidos a um período de washout de seis semanas (equivalente a três vezes a meia vida da droga) antes da inclusão no estudo.
A atividade da doença foi avaliada pelo Systemic Lupus Erythematosus Disease Activity Index (SLEDAI). O status inflamatório foi avaliado pelas análises séricas da PCRus (pela técnica de turbidimetria) e IL-6 (por meio de imunoensaio enzimático competitivo - ELISA).
A definição de nefrite lúpica obedeceu aos critérios do ACR.16 Caso o paciente tivesse sido submetido à biópsia renal, foi respeitada a classificação de glomerulonefrite lúpica da OMS proposta em 1989 e revisada em 2004.17 Para avaliação laboratorial do envolvimento renal, foram realizados EAS, hematúria e piúria quantitativas, proteinúria e depuração de creatinina em urina de 24 horas, além do anti-DNA nativo sérico.
A determinação da 25(OH)D total sérica foi realizada pelo método de cromatografia líquida de alta performance (HPLC), utilizando-se sistema da Shimadzu (Tóquio, Japão). Os níveis de 25(OH) D foram considerados suficientes se ≥ 30 ng/mL, insuficientes se entre 15 e 29 ng/mL e deficientes se < 15 ng/mL.7
A amostra do estudo foi estabelecida por conveniência. A normalidade das variáveis foi avaliada pelo teste de Shapiro-Wilk e a estatística descritiva foi realizada por meio da verificação da média ou mediana para as variáveis contínuas. A frequência absoluta e relativa foi utilizada para as variáveis categóricas. Quanto às diferenças entre os grupos de pacientes e controles, estas foram avaliadas pelos testes não paramétricos de Mann-Whitney quando as variáveis foram ordinais ou intervalares e qui-quadrado quando as variáveis foram nominais. A correlação entre a 25(OH)D e as variáveis utilizadas para avaliar nefrite, atividade da doença e inflamação estudadas foi calculada pelo coeficiente de correlação de Pearson.
A comparação entre os subgrupos de pacientes com insuficiência e suficiência de vitamina D e o grupo controle foi realizada pelo teste não paramétrico de Kruskal-Wallis.
Foi considerado significante p < 0,05. Analisaram-se os dados por meio do programa SPSS (Statistical Package for Social Sciences) Inc, Chicago, IL, EUA, versão 19.0.
As características clínicas basais dos grupos de pacientes e controles, assim como os dados laboratoriais estão expostas nas Tabelas 1 e 2.
Tabela 1 Características clínicas, demográficas e laboratoriais dos grupos
(n = 45) | (n = 24) | ||
---|---|---|---|
Idade (anos) | 35,3 (20-52) | 26 (18-53) | NS |
Sexo | NS | ||
Feminino | 44 (97,8%) | 24 (96,0%) | |
Raça | < 0,0001 | ||
Não Branca | 24 (53,3%) | 3 (12,0%) | |
Estação do ano | 13 (28,88%) | 1 (4,0%) | NS |
Verão | |||
Exposição ao sol (horas/semana) | 0,002 | ||
> 5 | 10 (22,2%) | 12 (48,0%) | |
Uso de protetor solar | NS | ||
Sim | 38 (84,44%) | 16 (64,0%) | |
Número de aplicações | NS | ||
> 2 | 8 (17,8%) | 2 (8,0%) | |
Tabagismo | 0,048 | ||
Sim | 7 (15,6%) | 1 (4,0%) | |
Presença de Hematuria | 13 (28,9%) | 3 (12,5%) | NS |
Dados expressos em mediana (mínimo e máximo) ou n (%); NA: Não aplivável; NS: Não significativo.
Tabela 2 Características clínicas basais dos pacientes
Pacientes (n = 45) | |
---|---|
Tempo de duração (meses) | 72 (3-264) |
SLEDAI | 10 (0-24) |
SLEDAI | 29 (64,4%) |
Atividade (≥ 6) | |
Uso de corticoide | 42 (93,3%) |
Dose de corticoide (mg de prednisona) | 20 (0-60) |
Cálcio/vitamina D | 8 (12,0%) |
Antimaláricos | 34 (75,55%) |
Difosfato de cloroquina 250 mg/dia | 22 (48,9%) |
Hidroxicloroquina 400 mg/dia | 12 (26,7%) |
Imunossupressores | 25 (55,55%) |
Azatioprina | 17 (37,8%) |
Micofenolato Mofetil | 1 (2,2%) |
Ciclofosfamida | 3 (6,7%) |
Metilprednisolona + ciclofosfamida | 1 (2,2%) |
Rituximabe | 1 (2,2%) |
Metilprednisolona | 1 (2,2%) |
Metotrexate | 2 (4,4%) |
Análise descritiva: mediana (mínimo-máximo) para as variáveis contínuas e n (%) para as variáveis categóricas.
A mediana dos níveis séricos da 25(OH) D foi menor nos pacientes com LES (29,48 ng/ mL, variação de 20,83-44,23 ng/mL) do que nos participantes controles (37,68 ng/mL, variação de 22,91-44,07 ng/mL) (p = 0,001). A prevalência de insuficiência de 25(OH)D foi maior no grupo de pacientes com LES (55%) do que no grupo controle (8%) (p = 0,001).
Vinte pacientes (44,4%) foram classificados como apresentando nefrite lúpica, de acordo com os critérios do ACR. Destes, 8 (44%) foram submetidos à biópsia renal, predominando a classe IV da OMS em 5 casos (62,5%). No subgrupo de pacientes com nefrite, a média de idade foi de 34,9 ± 7,3 (22-50 anos), a média do SLEDAI foi de 10 (0-24), apresentaram níveis de IL-6 variando de 0,9-13,5, com mediana de 5,0 pg/mL e PCRus entre 0,5-36,2, mediana 4,8 mg/L. A creatinina sérica apresentou média de 0,8 (0,5-2,6) mg/dL e a média da depuração da creatinina foi de 43,9 (35,6-220) mL/min/1,73 m2. Com relação à proteinúria, a mesma variou entre 112 a 4000, com mediana de 946 mg/24 horas. Seus níveis de vitamina D variaram entre 20,8-44,2 com mediana de 29,5 ng/ mL. Não houve diferença entre os níveis de vitamina D entre pacientes com LES e nefrite vs. LES sem nefrite.
Comparando os pacientes lúpicos (amostra total) com os controles, estes apresentaram prevalência significativamente superior de proteinúria avaliada pela fita de imersão comparados aos controles [16 (35,6%) e 1 (4,0%), p = 0,012]. A mediana da proteinúria de 24 horas no grupo de pacientes lúpicos foi estatisticamente superior à encontrada nos controles [234 (1-4.000) mg/24 horas e 105,5 (47,5-189,5) mg/24 horas, p = 0,003]. Não houve diferença estatisticamente significante da creatinina sérica [0,7 (0,5-2,6) mg/dL e 0,7 (0,5-1,0) mg/dL, p = 0,182] e da depuração da creatinina [101,1 (34-220) mL/ min/1,73 m2 e 107,6 (60-232,7) mL/min/1,73 m2, (p = 0,258)] entre os grupos doente e controle.
Os pacientes com insuficiência de vitamina D apresentaram maior prevalência de hematúria ao EAS comparados aos pacientes com suficiência e controles [10 (40,0%), 3 (15,0%) e 3 (12,5%), (p = 0,043)], respectivamente.
Com relação à atividade da doença avaliada pelo SLEDAI, 64,4% (n = 29) dos pacientes apresentavam doença ativa (SLEDAI ≥ 6). A mediana do SLEDAI foi de 10 (0-24) (Tabela 2).
Os níveis de IL-6 foram superiores no grupo com insuficiência de vitamina D [4,464 pg/mL (1,021- 52,049)], comparado ao grupo com suficiência [3,292 pg/mL (0,898-10,447)], e ao grupo controle [1,386 pg/mL (0,820-6,934)] (p < 0,0001) (Figura 1). Com relação aos níveis de PCRus, não foram observadas diferenças.
Figura 1 Insuficiência de vitamina D e IL-6 no LES - Box-plots da variável IL-6 (pg/mL) para os pacientes com insuficiência [4,464 pg/ mL (1,021- 52,049)] e suficiência de vitamina D [3,292 pg/mL (0,898- 10,447)]; e controles [1,386 pg/mL (0,820- 6,934)] (p < 0,0001). Teste de Kruskal-Wallis, p < 0,05.
A análise bivariada mostrou fraca evidência de correlação inversa entre vitamina D e IL-6 (r = -0,276; p = 0,066). Não se observou correlação entre vitamina D e as outras variáveis utilizadas para avaliação de atividade da doença e nefrite lúpica.
Neste estudo, observamos maior prevalência de insuficiência de vitamina D em pacientes com LES, assim como associação desta com níveis mais elevados de IL-6.
Atualmente, é descrita elevada prevalência mundial de hipovitaminose D no LES, em diversas localizações geográficas.18,19 Dados da população brasileira, em geral, também refletem os baixos níveis de vitamina D, mesmo em indivíduos saudáveis.20,21 Os resultados do presente estudo, realizado na cidade de Juiz de Fora, localizada a uma latitude de 21º45" ao sul, demonstrou elevada prevalência de insuficiência de vitamina D em pacientes portadores de LES comparados aos controles, em concordância com os resultados de Fragoso et al.,10 que observaram insuficiência de vitamina D em 57,7% de 78 pacientes portadores de LES em estudo realizado em Pernambuco. Outros três estudos brasileiros também reforçam os nossos achados.11-13
Nosso estudo não observou correlação entre vitamina D e as variáveis utilizadas para avaliar nefrite lúpica. Observamos maior prevalência de hematúria nos pacientes com insuficiência de vitamina D quando comparados aos grupos com suficiência dessa vitamina e controles. Os pacientes avaliados apresentaram-se com doença renal controlada na maioria dos casos, o que pode ter influenciado a análise dos resultados. A nefrite lúpica constitui-se numa das principais causas de morbimortalidade no LES e a associação entre hipovitaminose D e nefrite lúpica foi avaliada em estudos clínicos, como o de Kamen et al.,22 que evidenciaram associação entre deficiência de vitamina D e nefrite. Avaliando uma população de LES juvenil, Robinson et al.23 observaram associação inversa entre níveis de 25(OH)D e relação proteína/ creatinina, além de níveis mais baixos de vitamina D em pacientes com proteinúria.
A despeito de haver estudos mostrando correlação entre vitamina D e marcadores de atividade renal, nossos resultados não os corroboram. Em um estudo iraniano que avaliou pacientes com LES, aqueles com os níveis de 25(OH)D menores que 5 ng/mL apresentaram títulos mais elevados de anti-DNA nativo.24 Uma associação inversa entre 25(OH)D e os níveis de anti-DNA nativo (r = -0,13; p = 0,02) e anti-C1q (r = -0,14; p = 0,02) também foi observada em estudo recente de Mok et al.25
Estudo recente publicado por Petri et al.14 evidenciou melhora significativa da relação proteína/ creatinina após suplementação com vitamina D em pacientes com níveis insuficientes de 25(OH)D.
O LES é, por definição, uma doença inflamatória autoimune, e é descrito status inflamatório exacerbado nesses pacientes. No presente estudo, foi observado aumento significativo de PCRus e de IL-6 nos pacientes quando comparados aos controles. Analisando especificamente a relação entre a 25(OH)D e IL-6, essa citocina apresentou níveis significativamente superiores nos pacientes com insuficiência de vitamina D, quando comparados aos pacientes com suficiência e grupo controle. Foi observada fraca evidência de associação inversa entre vitamina D e essa citocina nos pacientes avaliados (r = -0,276; p = 0,066). Conforme já mencionado previamente, tais resultados podem refletir o baixo índice de atividade da doença dos pacientes avaliados, nos quais houve predomínio de atividade leve.
Concordando com nossos achados, Amezcua-Guerra et al.26 evidenciaram associação positiva entre SLEDAI e VHS/PCR no LES; associação também encontrada por Chun et al.27 Entretanto, Firooz et al.28 não demonstraram associação desses marcadores inflamatórios com atividade da doença. A IL-6 é uma citocina que exerce influência sobre a regulação do sistema imune e inflamação, atuando na diferenciação de linfócitos B e T.29 No LES, ocorre aumento dos níveis de várias citocinas inflamatórias, como IL-6, IL-1 e TNF-alfa,27,30,31 o que reforça nossos resultados.
O nosso estudo apresenta limitações. Primeiramente, por se tratar de avaliação de natureza transversal, não podemos sugerir causalidade entre as associações encontradas e a ocorrência de hipovitaminose D no LES. O número de pacientes avaliados (n = 45) também pode ter influenciado os resultados, assim como o fato de os pacientes apresentaram baixos índices de atividade da doença. Uma análise posterior, incluindo um maior número de pacientes incidentes e com doença mais grave, poderia nos proporcionar resultados mais robustos no que diz respeito à associação entre insuficiência de vitamina D, nefrite lúpica, atividade da doença e inflamação.
Nas pacientes lúpicas estudadas, a insuficiência de vitamina D foi prevalente e se associou com níveis mais elevados de IL-6 e com presença de hematúria. Não foi observada correlação significativa entre os níveis de vitamina D, nefrite lúpica e SLEDAI. Entretanto, mais estudos clínicos randomizados são necessários para avaliar a influência da vitamina D no LES, bem como estabelecer os níveis de vitamina D necessários para demonstrarmos seus efeitos imunomoduladores nesses pacientes.