versão impressa ISSN 0101-2800
J. Bras. Nefrol. vol.36 no.3 São Paulo jul./set. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20140045
A doença cardiovascular é a principal causa de morbidade e mortalidade nos pacientes portadores de falência renal crônica (FRC). Esses pacientes são mais susceptíveis às doenças cardiovasculares por apresentarem os fatores de risco tradicionais (hipertensão arterial, diabetes mellitus, dislipidemia, e tabagismo) e os chamados fatores de risco não tradicionais, aqueles decorrentes da FRC (anemia, estresse oxidativo, microalbuminúria, e hiperparatireoidismo).1 O hiperparatireoidismo secundário (HPTS) é uma complicação frequente nos pacientes com FRC e contribui para a alta taxa de morbidade encontrada nessa população.2 Três fatores inter-relacionados: a hipocalcemia, o déficit de calcitriol (metabólito ativo da vitamina D) e a hiperfosfatemia têm papel na patogênese. O aumento do fósforo ocasiona um efeito dramático no desenvolvimento do HPTS de pacientes com doença renal crônica (DRC) avançada, por interferir diretamente na fisiologia das paratireoides.3 Alterações do metabolismo da vitamina D são correlacionadas a diversas alterações orgânicas e são particularmente prevalentes na FRC.4 Em muitos pacientes, existe a combinação de uma sobrecarga de cálcio (advinda da hemodiálise ou de medicamentos) com hiperfosfatemia. Nessa situação, pode ocorrer calcificação pela deposição de fosfato de cálcio nos tecidos cardíacos e vasculares.5
O ecocardiograma e o eletrocardiograma são exames úteis na avaliação da DCV dos urêmicos.6 Já a ultrassonografia com Doppler permite estudar a estrutura e funções das artérias em humanos. Assim, aumento da espessura da camada íntima-média da artéria carótida comum está relacionada aos fatores de risco cardiovasculares tradicionais, prediz a probabilidade de eventos cardiovasculares e cerebrovasculares em certas populações, e prediz a gravidade e a extensão da doença coronariana.7
Duprez et al.8 recentemente demonstraram uma correlação significativa entre os níveis do hormônio paratireoidiano e a capacidade de distensão da artéria carótida comum em pacientes hipertensos essenciais. Entretanto, são escassos os estudos clínicos que avaliaram o papel do hiperparatireoidismo sobre as funções do sistema arterial na insuficiência renal crônica.
O presente estudo se propõe a observar possíveis correlações dos níveis elevados do PTH e de outras alterações do metabolismo mineral, e também de fatores de risco tradicionais da doença cardiovascular, sobre as propriedades da parede da artéria carótida comum, em pacientes submetidos à hemodiálise.
Esse estudo retrospectivo foi realizado na Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa de Alagoas. Foram selecionados, dentro das normas vigentes de protocolos de pesquisa (Protocolo CEP 297/2005) envolvendo seres humanos, pacientes portadores de FRC, em tratamento dialítico, de ambos os sexos, com idade entre 18 e 65 anos, distribuídos em dois grupos. Grupo 1: pacientes com PTH menor ou igual a 200 pg/ml e Grupo 2: pacientes com PTH acima de 500 pg/ml. Os dois grupos comparados foram divididos pelo nível de PTH abaixo de 200 pg/ml e acima de 500 pg/ml com base no estudo de Gu et al.9 que encontraram alterações mais significativas nos subgrupos de pacientes em hemodiálise e com hiperparatiroidismo secundário apresentando dosagens do hormônio entre aqueles limites.
O método usado para medida do PTH intacto no soro foi o de quimioluminescência, com o kit IMMULITE® 2000 Intact PTH, DPC® (normal: 7-53 pg/ml). Foram excluídos do estudo os pacientes diabéticos, com doença hepática, com infecção ativa, em uso de medicamentos ou substâncias que podem alterar o metabolismo dos ossos (alumínio, análogos de GnRH, anticonvulsivantes, cádmio, ciclosporina A, colestiramina, corticosteroides, estatinas, heparina, hormônio tiroideano, metotrexato, opiáceos ou derivados, e retinoides orais), menores de 18 anos e maiores que 65 anos de idade, e gestantes.
Para a Análise estatística foram utilizados os testes de Kolmogorov-Smirnov, t de Student, e U de Mann-Whitney, além da correlação de Pearson. Foi estabelecido o limite de p = 0,05 para a rejeição da hipótese de nulidade. Na Análise estatística, foram incluídas as variáveis clínicas, como: idade, sexo, tempo em diálise, e variáveis laboratoriais, como PTH (normal: 11 a 54 pg/ml), cálcio (normal: 8,5 a 10,5 mg/dl), fósforo UV (normal: 2,5 a 5,0 mg/dl), produto cálcio x fósforo (normal: 55 mg2/dl2), hemoglobina (normal: 11,5 a 16,0 g/dl), hematócrito (normal: 36% a 47%), e colesterol LDL (valor ideal: < 100 mg/dl).
A ultrassonografia com Doppler foi realizada utilizando o equipamento LOGIQ 7 da General Eletrics, com sondas lineares de frequência entre 8 e 12 MHz, pelo mesmo examinador. Atribuiu-se como padrão para a análise da espessura do complexo médio-intimal (EMIC) do terço médio da artéria carótida comum direita, e com valores normais de 0,9 mm para mulheres até 49 anos e de até 1,0 mm para mulheres acima de 50 anos. Para homens, o valor normal foi de até 1,0 mm, independente da idade. Os pacientes foram submetidos ao exame dos demais segmentos de ambas as artérias carótidas, onde se pode constatar a presença ou ausência de placas de alta ecogenicidade, que sugerem calcificação.
Em relação aos fatores tradicionais, não houve diferença na idade nem nos níveis de colesterol entre os dois grupos de indivíduos. Porém, ao analisar os pacientes com e sem placas detectadas na ultrassonografia, houve diferença na idade: 41 ± 4 anos, quando da ausência de placas, e 49 ± 6, com placas (p = 0,04). Quanto ao nível de colesterol, os pacientes com placas carotídeas apresentavam valor mais elevado (p = 0,03) que os do grupo sem placas (196 ± 36 e 103 ± 25 mg/dl, respectivamente). A Figura 1 mostra as diferenças de idade e LDL colesterol nos pacientes com e sem placas em artérias carótidas.
Figura 1 Idade (anos) e níveis de colesterol LDL (mg/dl) de portadores de doença renal crônica dialítica e hiperparatireoidismo secundário, com e sem placas ateromatosas na artéria carótida. *p = 0,04; **p = 0,03.
No Grupo 1 foram incluídos 7 pacientes (4 do sexo feminino e 3 do masculino). A média de idade desse grupo foi de 46 ± 5 anos. O valor médio da espessura do complexo médio-intimal foi de 0,79 ± 0,15 mm. Nesse grupo, o maior valor encontrado foi 1,0 mm. Dos 7 pacientes analisados, 3 (42,86%) apresentaram placas de ateroma com imagens de alta ecogenicidade, que são sugestivas de calcificação arterial carotídea.
O Grupo 2 foi composto por 7 pacientes, sendo 5 do sexo masculino e 2 do feminino. A média de idade dos pacientes foi 48 ± 5 anos. O valor da espessura do EMIC foi 0,89 ± 0,1 mm e o maior valor encontrado foi 1,1 mm. Dos 7 pacientes analisados, 5 (71,43%) apresentaram placas de ateroma com imagens de elevada ecogenicidade. Mesmo utilizando análise multivariada, não foi possível evidenciar correlação inequívoca entre o nível de PTH e a presença de placas arteriais. A Tabela 1 mostra as características dos dois grupos estudados. Entretanto, foi observada relação entre os níveis de PTH e a espessura da parede da artéria carótida (r = 0,31; p = 0,03), como mostra a Figura 2.
Tabela 1 Dados de pacientes com doença renal crônica em tratamento dialítico, de ambos os sexos e com idades entre 18 e 65 anos. Grupo 1: PTH menor ou igual a 200 pg/ml e grupo 2: PTH acima de 500 pg/ml
Parâmetros | Grupo 1 (n = 7) | Grupo 2 (n = 7) | p |
---|---|---|---|
Idade (anos) | 48,6 ± 10,2 | 47,8 ± 3,9 | ns |
Hematócrito (%) | 33,5 ± 4,1 | 28,4 ± 4,1 | ns |
Hemoglobina (g/dl) | 11,6 ± 2,1 | 9,3 ± 1,5 | ns |
Cálcio (mg/dl) | 9,2 ± 0,8 | 9,2 ± 0,5 | ns |
Fósforo UV (mg/dl) | 5,9 ± 1,1 | 6,6 ± 0,9 | ns |
Produto cálcio x fósforo | 46,4 ± 61,4 | 61,3 ± 10,8 | ns |
PTH (pg/ml) | 102,8 ± 60,4 | 2.210 ± 1.473 | < 0,0001 |
Espessura da carótida (mm) | 0,8 ± 0,2 | 0,9 ± 0,1 | ns |
PTH: Paratohormônio; ns: Não significativo.
De modo geral, os dados clínicos não foram diferentes nos dois grupos com os níveis de PTH avaliados. Por constituir critério de distribuição de pacientes entre os grupos, os dados laboratoriais obviamente revelaram níveis mais elevados de PTH no Grupo 1.
Realmente, as DCVs são a principal causa de morbidade e mortalidade em todos os estágios da FRC, o que se justifica em parte, pela alta prevalência de fatores de risco tradicionais nessa população. Porém, recentemente o uso de derivados da vitamina D causou impacto positivo na taxa de mortalidade desses pacientes, o que enfatiza o papel dos fatores de risco não tradicionais na patogênese de DCVs nos pacientes em diálise.10
Na uremia, o HPTS é caracterizado por hiperplasia das paratireoides e aumento na produção e secreção do PTH, fenômenos decorrentes da hipocalcemia, da hiperfosfatemia e de outros fatores.2,3,5 Em ratos com FRC, a hiperplasia é protegida pela hipofosfatemia.3 Portale et al.10 avaliaram 8 crianças com FRC em diálise e níveis reduzidos de calcitriol; foram observadas calcificações em 80% delas, e havia correlação positiva com os níveis de PTH, fato que demonstra o papel desse hormônio, de forma independente de outros fatores, nas alterações cardiovasculares. O HPTS é uma condição muito frequente na FRC e está associado com calcificações metastáticas arteriais que, de forma independente, se associam a maior morbidade e mortalidade de indivíduos em diálise.2,5,11 As calcificações carotídeas se relacionam com a ocorrência de hipertrofia ventricular esquerda, infarto do miocárdio e parada cardíaca; e afetam metade dos pacientes em diálise.2 O prognóstico está relacionado, primordialmente, com as calcificações localizadas na túnica média das artérias.2 Embora a paratireoidectomia possa reduzir o produto Ca x P e diminuir a ocorrência de calcificações metastáticas, as alterações preexistentes são irreversíveis.2 Esses achados sugerem que o tratamento do HPTS deve iniciar precocemente para prevenir eventos cardiovasculares.5 Além disso, o controle eficaz do HPTS pode evitar outras complicações, como as fraturas.12
Ações do PTH na estrutura e na função das paredes arteriais têm sido estudadas, mas permanecem não inteiramente esclarecidas, incluindo seus efeitos em outras variáveis como a pressão arterial. O PTH causa vasodilatação aguda transitória no território renal e coronariano, mediado pela bomba de Na-K e por prostaglandinas. Por outro lado, em pacientes portadores de hiperparatireoidismo primário (HPTP), o cálcio produz alterações na parede vascular e na pressão arterial. Sabe-se que a paratireoidectomia reduz os níveis pressóricos na hipertensão arterial experimental, bem como a perda óssea.13,14 Estudo ultrassonográfico das paredes arteriais de 30 pacientes com hipertensão arterial essencial não tratada revelou correlação significativa entre os níveis de PTH e os diâmetros e a distensibilidade das carótidas.8 Foi demonstrado, experimentalmente, que o endotélio vascular também expressa o receptor da proteína relacionada ao PTH (PTH/PTHrP).15
No HPTP, a avaliação ultrassonográfica também tem mostrado aumentos significativos na rigidez, na espessura média e na EMIC máxima; além de significativa redução no diâmetro da carótida.7,16 Entretanto, para alguns autores, o aumento da morbidade e da mortalidade cardiovascular no HPTP não depende apenas dos níveis elevados de cálcio e de PTH, mas se deve à coexistência dos fatores de risco tradicionais.7 Gheissari et al.17 encontraram correlação significativa entre a EMIC e os níveis de PTH em 16 indivíduos (12,76 ± 4,5 anos) com doença renal em fase terminal e, semelhante ao presente estudo, não houve diferença da EMIC entre os pacientes e o grupo controle.
Anemia e alterações nos níveis de fósforo e de cálcio têm sido relacionadas com as anormalidades cardiovasculares na uremia. Porém, é de se esperar que elas produzam distúrbios quando presentes continuamente. Como não observamos essas variáveis de forma longitudinal, não foi possível relacioná-las com anormalidades ultrassonográficas.
No presente estudo, foram encontradas diferenças significativas de alguns fatores tradicionais nos pacientes com alterações das artérias carótidas. Além disso, foi observada discreta correlação entre a espessura da parede da carótida e os níveis de PTH. Os achados não são inéditos, mas acredita-se que possam corroborar com as Conclusões de estudos como o de Nishizawa et al.18 sobre o papel da diálise e da normalidade dos níveis de PTH, cálcio e fosfato na prevenção de aterosclerose em pacientes submetidos à hemodiálise. Nosso estudo tem duas importantes limitações. Primeiro, o reduzido número pacientes analisados, fato que dificulta a verificação de diferenças estatísticas entre os grupos, a exemplo da anemia que poderia apresentar diferença significativa com uma amostra maior. Segundo - uma limitação que é inerente a estudos retrospectivos, não foi possível analisar comparativamente a pressão arterial com dados de MAPA nos dois grupos, já que diversos registros se referiam a medidas isoladas. Obtidos com Métodos de aferição diferentes, os dados indicaram homogeneidade quanto à hipertensão, mas não constam da tabela. Importante salientar que não foi encontrada diferença significativa entre os grupos com relação ao período de permanência em diálise, que pode influir na espessura das carótidas.
Fatores de risco cardiovascular tradicionais e os chamados não tradicionais estão presentes, concomitantemente, na DCV de indivíduos em diálise. Neste estudo, os índices de espessura médio-intimal da carótida tiveram correlação significativa com níveis de PTH. No entanto, consideramos que a amostra desse estudo preliminar seja insuficiente para validação dos achados atuais e pretende-se realizar estudo prospectivo com maior número de pacientes e controles pareados e com dados completos (tempo em diálise, drogas utilizadas, IMC, eletrocardiograma, ecocardiograma, pressão arterial, função renal, função hepática, PTH, TSH, T4 livre, eletrólitos, lipidograma, glicemia, ácido úrico, hemograma, e outros).