versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.9 Rio de Janeiro set. 2019 Epub 09-Set-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018249.31142017
O câncer de próstata é o segundo tipo de câncer que mais acomete a população masculina e a quinta causa de morte de homens ao redor do mundo1. No Brasil, a estimativa para o biênio 2016/2017 é de 61.200 casos novos, representando um risco estimado de 61,82 casos a cada 100 mil homens2. Sua taxa de mortalidade apresenta um caráter ascendente similar ao da sua incidência, embora sua magnitude seja menor2.
Apesar das taxas de sobrevida após o diagnóstico do câncer de próstata terem melhorado nas ultimas duas décadas, as análises de sobrevida referentes ao status socioeconômico sugerem desigualdades, indicando pior prognóstico para os indivíduos de menor renda3. Assim como, os homens negros apresentam maior risco de serem acometidos e morrerem por este tipo de câncer, o que pode estar relacionado a dificuldades no acesso aos serviços de saúde e diferenças na abordagem terapêutica4,5.
Estudo revelou que homens diagnosticados em sistemas de saúde que servem principalmente populações de baixa condição socioeconômica tendem a ter, significativamente, maior risco e estádio da doença quando comparados com aqueles atendidos em outros serviços (mesmo tendo idades comparáveis), sendo um fenômeno que não parece possível explicar unicamente por distribuições raciais6. Logo, o acesso desigual aos serviços de saúde desempenha claramente um papel determinante no atraso para o diagnóstico e tratamento7.
Em 2012, o governo brasileiro publicou a Lei 12.732 que institui o prazo de 60 dias para o início do tratamento após o diagnóstico para todos os tipos de neoplasias no Sistema Único de Saúde (SUS), com o objetivo de minimizar e eliminar as diferenças no acesso ao tratamento do câncer8. Para tanto, pressupõe-se a realização de uma abordagem universal e integral, conforme os preceitos doutrinários do SUS.
Desta forma, para verificar se o acesso ao tratamento do câncer de próstata tem sido oportunizado de forma equânime pela rede de atenção a saúde, o presente estudo tem como objetivo avaliar a associação de variáveis sociodemográficas e clínicas com os tempos para início do tratamento de homens atendidos em um hospital de referência em oncologia do Estado do Espírito Santo, Brasil.
Trata-se de um estudo de coorte longitudinal prospectivo utilizando dados secundários. A população do estudo é composta por homens com câncer de próstata atendidos no período de 2010 a 2014, excetuando o ano de 2012, no Hospital Santa Rita de Cássia - Associação Feminina de Educação e Combate ao Câncer (HSRC-AFECC), situado no município de Vitória, Espírito Santo, Brasil. O hospital é credenciado pelo SUS como Centro de Alta Complexidade em Oncologia (CACON), sendo referência no Estado do Espírito Santo.
Foram excluídos os homens que iniciaram o tratamento em outra instituição hospitalar, em vigilância ativa, com tratamento pago por planos de saúde ou particular, assim como os casos com não completude de registro das variáveis relativas ao tempo. A exclusão desses indivíduos justifica-se pelo estudo ter sido realizado em um Hospital de referência, e pelo estudo ter tido o interesse de avaliar a população em todas as etapas do tratamento custeado pelo SUS. Os casos diagnosticados no ano de 2012 não foram incluídos na pesquisa com o intuito de evitar possível efeito da adequação do serviço em cumprimento a Lei 12.732. Logo, como 2012 foi o ano de implantação optou-se por não incluí-lo.
Os dados foram extraídos das Fichas de Registro de Tumor que fornece dados para o Sistema de Informação dos Registros Hospitalares de Câncer (SISRHC) e prontuários. Para a coleta dos dados que não constavam nas Fichas de Registro de Tumor, foi feita a análise dos prontuários e utilizado um instrumento específico, elaborado pelo pesquisador, contendo as seguintes variáveis: estadiamento clínico, escore de Gleason, níveis de antígeno prostático específico (PSA), desfecho, data da ultima consulta e data do encaminhamento para o HSRC-AFECC.
Os dados foram tabulados no programa Microsoft Office Excel 2007 e posteriormente analisados por meio do Pacote Estatístico para Ciências Sociais (SPSS), versão 20.0. A análise estatística utilizou cálculos de frequência, medidas de tendência central (média e mediana) e de variabilidade (desvio-padrão). Foram aplicados testes do qui-quadrado de associação entre os tempos entre o diagnóstico e o início do tratamento e entre a primeira consulta e o início do tratamento com as variáveis sociodemográficas e clínicas do estudo. O nível de significância adotado foi de 0,05. Foram calculados os Odds ratios (razão de chances) brutos e ajustados pelo modelo de regressão logística para todas as variáveis que apresentaram p-valor < 0,10.
O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Espírito Santo e aprovado.
No período do estudo foram atendidos no HSRC-AFECC 1.940 homens com diagnóstico de câncer de próstata. Desse total, foram excluídos 304 (15,6%) por terem iniciado o tratamento fora do HSRC-AFECC, 190 (9,8%) por estarem em vigilância ativa e/ou não terem gerado valor de receita, 34 (1,7%) por terem tido o tratamento custeado por plano de saúde ou particular, e 14 (0,7%) sem informação. A população do estudo foi de 1388 homens.
A Tabela 1 apresenta os resultados das associações das variáveis sociodemográficas e os tempos de atendimento.
Tabela 1 Características sociodemográficas de homens com câncer de próstata atendidos no HSRC-AFECC, Vitória/ES - Brasil.
Variáveis | Tempo entre o diagnóstico e o início tratamento | Tempo entre a primeira consulta e o início do tratamento | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Até 60 dias | Mais de 60 dias | Até 60 dias | Mais de 60 dias | |||||||
N | % | N | % | p-valor | N | % | N | % | p-valor | |
Idade | ||||||||||
Até 70 anos | 111 | 14% | 661 | 86% | 0,062 | 310 | 40% | 462 | 60% | 0,001 |
71 anos e mais | 105 | 18% | 474 | 82% | 321 | 55% | 258 | 45% | ||
Faixa etária | ||||||||||
Até 54 anos | 13 | 15% | 76 | 85% | 0,088 | 32 | 36% | 57 | 64% | 0,001 |
55 a 59 anos | 14 | 12% | 99 | 88% | 50 | 44% | 63 | 56% | ||
60 a 64 anos | 26 | 12% | 188 | 88% | 79 | 37% | 135 | 63% | ||
65 a 69 anos | 49 | 16% | 252 | 84% | 135 | 45% | 166 | 55% | ||
70 a 74 anos | 36 | 14% | 223 | 86% | 112 | 43% | 147 | 57% | ||
75 a 79 anos | 46 | 20% | 181 | 80% | 136 | 60% | 91 | 40% | ||
80 anos e mais | 32 | 22% | 116 | 78% | 87 | 59% | 61 | 41% | ||
Raça/Cor | ||||||||||
Branco | 46 | 16% | 238 | 84% | 0,865 | 146 | 51% | 138 | 49% | 0,050 |
Não branco | 157 | 16% | 838 | 84% | 446 | 45% | 549 | 55% | ||
Anos de estudo | ||||||||||
Até 8 anos | 158 | 16% | 847 | 84% | 0,027 | 464 | 46% | 541 | 54% | 0,022 |
9 anos e mais | 32 | 23% | 106 | 77% | 78 | 57% | 60 | 43% | ||
Lei 60 dias | ||||||||||
Antes da lei | 109 | 16% | 584 | 84% | 0,789 | 345 | 50% | 348 | 50% | 0,020 |
Depois da lei | 107 | 16% | 551 | 84% | 286 | 43% | 372 | 57% | ||
Diagnóstico anterior | ||||||||||
Sem diagnóstico e sem tratamento | 58 | 32% | 125 | 68% | 0,001 | 18 | 10% | 165 | 90% | 0,001 |
Com diagnóstico e sem tratamento | 158 | 14% | 1010 | 86% | 613 | 52% | 555 | 48% | ||
Origem do encaminhamento | ||||||||||
SUS | 111 | 12% | 787 | 88% | 0,001 | 386 | 43% | 512 | 57% | 0,001 |
Não SUS | 58 | 28% | 148 | 72% | 135 | 66% | 71 | 34% |
Verificou-se que o maior percentual de homens que tiveram o tratamento iniciado em até 60 dias, contados a partir da primeira consulta no HSRC-AFECC, tinham idade igual ou superior a 71 anos (p = 0,001). No entanto, os não brancos apresentaram um intervalo de tempo superior a 60 dias entre a primeira consulta e o tratamento (p = 0,050). Quanto ao grau de instrução, os mais escolarizados em sua maioria iniciaram o tratamento em até 60 dias, tanto a partir da data do diagnóstico (p = 0,027) como da data da primeira consulta no hospital (p = 0,022). Desta forma, ter abaixo de 70 anos, ser não branco e menos de oito anos de estudo constituíram como determinantes para atraso no início do tratamento.
Em relação aos efeitos da Lei 12.732, verifica-se que não houve diferença no tempo entre o diagnóstico e o início do tratamento, contudo, ocorreu uma piora no intervalo entre a data da primeira consulta e o início do tratamento (p = 0,020).
Os indivíduos que são encaminhados ao hospital sem confirmação diagnóstica apresentaram um tempo menor para o início do tratamento, tanto a partir do diagnóstico (p = 0,001) como da primeira consulta no HSRC-AFECC (p = 0,001). O mesmo ocorreu com aqueles cuja origem do encaminhamento é de serviços não SUS, apresentando em sua maioria o intervalo de tempo de até 60 dias para iniciar o tratamento, contados a partir da primeira consulta na instituição (p = 0,001).
Na Tabela 2, que apresenta as variáveis clínicas, é possível observar que, quanto maior é o estadiamento clínico, o escore de Gleason e os níveis de PSA, maior é a probabilidade de o tratamento ter inicio em até 60 dias, tanto quando se tem como base a data do diagnóstico (p = 0,001), como a data da primeira consulta no HSRC-AFECC (p = 0,001). Os homens com doença mais avançada têm prioridade no estabelecimento e início de tratamento definitivo, enquanto que os com doença localizada tendem a esperar maior tempo para o início do tratamento.
Tabela 2 Características clínicas de homens com câncer de próstata atendidos no HSRC-AFECC, Vitória/ES - Brasil.
Variáveis | Tempo entre o diagnóstico e o início tratamento | Tempo entre a primeira consulta e o início do tratamento | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Até 60 dias | Mais de 60 dias | Até 60 dias | Mais de 60 dias | |||||||
N | % | N | % | p-valor | N | % | N | % | p-valor | |
Estadiamento | ||||||||||
1 | 7 | 9% | 68 | 91% | 0,001 | 29 | 39% | 46 | 61% | 0,001 |
2 | 28 | 10% | 244 | 90% | 118 | 43% | 154 | 57% | ||
3 | 16 | 18% | 71 | 82% | 44 | 51% | 43 | 49% | ||
4 | 57 | 40% | 87 | 60% | 92 | 64% | 52 | 36% | ||
Escore de Gleason | ||||||||||
2 a 6 | 58 | 9% | 557 | 91% | 0,001 | 246 | 40% | 369 | 60% | 0,001 |
7 | 54 | 15% | 316 | 85% | 180 | 49% | 190 | 51% | ||
8 a 10 | 97 | 28% | 253 | 72% | 190 | 54% | 160 | 46% | ||
PSA | ||||||||||
Menor que 10 | 51 | 10% | 478 | 90% | 0,001 | 198 | 37% | 331 | 63% | 0,001 |
10 a 19 | 34 | 11% | 265 | 89% | 132 | 44% | 167 | 56% | ||
20 ou mais | 116 | 29% | 282 | 71% | 246 | 62% | 152 | 38% |
A Tabela 3 apresenta os Odds brutos e ajustados pelo modelo de regressão logística das variáveis sociodemográficas e clínicas que apresentaram p<0,10, quando associadas ao tempo entre o diagnóstico e a primeira consulta no serviço especializado. O OR ajustado evidenciou maior risco de atraso no tempo entre o diagnóstico e a primeira consulta no HSRC-AFECC dos homens que chegaram à instituição com diagnóstico (OR = 3,08; IC = 1,79-5,29), que foram encaminhados pelos serviços dos SUS (OR = 2,45; IC = 1,56-3,85), que tiveram o escore de Gleason entre 2 a 6 (OR = 2,59; IC = 1,55-4,32), e com os níveis de PSA abaixo de 10 ng/dL (OR = 4,42; IC = 2,59-7,54).
Tabela 3 Frequência absoluta e percentual do total por tempo entre o diagnóstico e a primeira consulta e frequência ajustada das variáveis sociodemográficas, clínicas dos homens com câncer de próstata atendidos no HSRC-AFECC, Vitória/ES - Brasil.
Categorias | Tempo entre o diagnóstico e a primeira consulta > 60 dias | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Odds bruto | Odds ajustado | |||||||
p-valor | OR | LI 95% | LS 95% | p-valor | OR | LI 95% | LS 95% | |
Idade | ||||||||
Até 70 anos | 0,063 | 1,32 | 0,99 | 1,77 | ||||
71 anos e mais | 1,00 | |||||||
Faixa etária | ||||||||
Até 54 anos | 0,185 | 1,61 | 0,80 | 3,27 | 0,793 | 1,15 | 0,40 | 3,28 |
55 a 59 anos | 0,055 | 1,95 | 0,99 | 3,86 | 0,325 | 1,65 | 0,61 | 4,48 |
60 a 64 anos | 0,017 | 1,99 | 1,13 | 3,52 | 0,655 | 1,19 | 0,55 | 2,57 |
65 a 69 anos | 0,168 | 1,42 | 0,86 | 2,33 | 0,551 | 0,81 | 0,41 | 1,62 |
70 a 74 anos | 0,046 | 1,71 | 1,01 | 2,89 | 0,163 | 1,68 | 0,81 | 3,47 |
75 a 79 anos | 0,752 | 1,09 | 0,65 | 1,80 | 0,562 | 0,81 | 0,40 | 1,64 |
80 anos e mais | 1,00 | 1,00 | ||||||
Anos de estudo | ||||||||
Até 8 anos | 0,028 | 1,62 | 1,05 | 2,49 | 0,065 | 1,70 | 0,97 | 3,00 |
9 anos e mais | 1,00 | 1,00 | ||||||
Diagnóstico anterior | ||||||||
Sem diagnóstico e sem tratamento | 1,00 | 1,00 | ||||||
Com diagnóstico e sem tratamento | 0,001 | 2,97 | 2,08 | 4,22 | 0,001 | 3,08 | 1,79 | 5,29 |
Origem do encaminhamento | ||||||||
SUS | 0,001 | 2,78 | 1,93 | 3,99 | 0,001 | 2,45 | 1,56 | 3,85 |
Não SUS | 1,00 | 1,00 | ||||||
Escore de Gleason | ||||||||
2 a 6 | 0,001 | 3,68 | 2,57 | 5,27 | 0,001 | 2,59 | 1,55 | 4,32 |
7 | 0,001 | 2,24 | 1,55 | 3,25 | 0,098 | 1,51 | 0,93 | 2,47 |
8 a 10 | 1,00 | 1,00 | ||||||
PSA | ||||||||
Menor que 10 | 0,001 | 3,86 | 2,69 | 5,53 | 0,001 | 4,42 | 2,59 | 7,54 |
10 a 19 | 0,001 | 3,21 | 2,11 | 4,87 | 0,007 | 2,02 | 1,22 | 3,37 |
20 ou mais | 1,00 | 1,00 |
Enquanto a Tabela 4 expressa os Odds brutos e ajustados das variáveis sociodemográficas e clínicas, associadas ao tempo entre a primeira consulta e o início do tratamento no HSRC-AFECC. É possível identificar que o OR ajustado confere maior risco de atraso para o tratamento em homens com até 54 anos (OR = 2,59; IC = 1,13-5,96), não brancos (OR = 1,45; IC = 1,01-2,11), com até 8 anos de estudo (OR = 2,04; IC = 1,20-3,48), proveniente do SUS (OR = 2,26; IC = 1,49-3,44), com PSA abaixo de 10 ng/dL (OR = 2,38; IC = 1,60-3,54), e naqueles com PSA entre 10 a 19 ng/dL (OR = 2,18; IC = 1,43-3,33). Contudo, chegar ao hospital com diagnóstico e sem tratamento representou um fator protetor (OR = 0,03; IC = 0,01-0,09).
Tabela 4 Frequência absoluta e percentual do total por tempo entre a consulta e o início do tratamento e frequência ajustada das variáveis sociodemográficas, clínicas dos homens com câncer de próstata atendidos no HSRC-AFECC, Vitória/ES - Brasil.
Variáveis | Tempo entre a primeira consulta e o início do tratamento > 60 dias | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Odds bruto | Odds ajustado | |||||||
p-valor | OR | LI 95% | LS 95% | p-valor | OR | LI 95% | LS 95% | |
Idade | ||||||||
Até 70 anos | 0,001 | 1,85 | 1,49 | 2,31 | ||||
71 anos e mais | 1,00 | |||||||
Faixa etária | ||||||||
Até 54 anos | 0,001 | 2,54 | 1,48 | 4,37 | 0,025 | 2,59 | 1,13 | 5,96 |
55 a 59 anos | 0,020 | 1,80 | 1,10 | 2,95 | 0,021 | 2,40 | 1,14 | 5,05 |
60 a 64 anos | 0,001 | 2,44 | 1,59 | 3,74 | 0,014 | 2,22 | 1,18 | 4,18 |
65 a 69 anos | 0,006 | 1,75 | 1,18 | 2,61 | 0,053 | 1,81 | 0,99 | 3,32 |
70 a 74 anos | 0,003 | 1,87 | 1,24 | 2,82 | 0,086 | 1,71 | 0,93 | 3,16 |
75 a 79 anos | 0,828 | 0,95 | 0,63 | 1,45 | 0,665 | 0,87 | 0,45 | 1,66 |
80 anos e mais | 1,00 | 1,00 | ||||||
Raça/Cor | ||||||||
Branco | 1,00 | 1,00 | ||||||
Não branco | 0,050 | 1,30 | 1,00 | 1,70 | 0,052 | 1,45 | 1,00 | 2,11 |
Anos de estudo | ||||||||
Até 8 anos | 0,023 | 1,52 | 1,06 | 2,17 | 0,008 | 2,04 | 1,20 | 3,48 |
9 anos e mais | 1,00 | 1,00 | ||||||
Lei 60 dias | ||||||||
Antes da lei | 1,00 | 1,00 | ||||||
Depois da lei | 0,020 | 1,29 | 1,04 | 1,60 | 0,199 | 1,23 | 0,90 | 1,68 |
Diagnóstico anterior | ||||||||
Sem diagnóstico e sem tratamento | 1,00 | 1,00 | ||||||
Com diagnóstico e sem tratamento | 0,001 | 0,10 | 0,06 | 0,16 | 0,001 | 0,03 | 0,01 | 0,09 |
Origem do encaminhamento | ||||||||
SUS | 0,001 | 2,52 | 1,84 | 3,46 | 0,001 | 2,26 | 1,49 | 3,44 |
Não SUS | 1,00 | 1,00 | ||||||
Escore de Gleason | ||||||||
2 a 6 | 0,000 | 1,78 | 1,37 | 2,32 | 0,032 | 1,58 | 1,04 | 2,40 |
7 | 0,131 | 1,25 | 0,94 | 1,68 | 0,074 | 1,49 | 0,96 | 2,31 |
8 a 10 | 1,00 | |||||||
PSA | ||||||||
Menor que 10 | 0,001 | 2,71 | 2,07 | 3,54 | 0,001 | 2,38 | 1,60 | 3,54 |
10 a 19 | 0,001 | 2,05 | 1,51 | 2,78 | 0,001 | 2,18 | 1,43 | 3,33 |
20 ou mais | 1,00 |
Este estudo tem como pressuposto a análise dos fatores associados a atrasos no atendimento, diagnóstico e início do tratamento de homens com câncer de próstata atendidos em um hospital de referência estadual em oncologia.
Observou-se que os homens acima de 71 anos, em sua maioria, iniciaram o tratamento em até 60 dias a partir da primeira consulta na instituição, enquanto os com idade inferior a 70 anos superaram esse prazo. Estudo realizado no Canadá9 identificou que os indivíduos com mais de 70 anos apresentaram maior atraso no encaminhamento para o urologista. No entanto, aqueles abaixo de 70 anos demoraram mais para receber a primeira fração de radioterapia. Pesquisa desenvolvida em Baltimore, Estados Unidos10, revelou que a média de idade dos homens que tiveram um atraso inferior a seis meses para cirurgia foi de 59 anos, enquanto, a idade média dos que retardaram mais de seis meses para a cirurgia foi de 61 anos. No Reino Unido11, longos intervalos de tempo entre o diagnóstico e a cirurgia foram associados com o aumento da idade, os indivíduos acima de 65 anos apresentavam em média 97 dias de espera para a cirurgia. Os resultados encontrados nessa pesquisa parecem indicar que a instituição de saúde vem reduzindo obstáculos ao acesso e utilização das ações de saúde, priorizando atender às necessidades individuais da pessoa idosa.
A Raça/Cor tem sido tratada como variável que condiciona o acesso aos serviços de saúde. No presente trabalho, mais da metade (55%) dos não brancos demoraram mais de 60 dias para iniciar o tratamento a partir da primeira consulta, apontando para as inter-relações entre as desigualdades socioeconômicas e raciais que geram essas diferenças no acesso à saúde. Nos Estados Unidos12, pesquisa também identificou que os homens negros apresentaram maior probabilidade de demora em iniciar o tratamento quando comparados com os homens brancos. Outro estudo americano13 revelou que os afro-americanos possuíam os maiores intervalos entre o diagnóstico e o tratamento em todos os grupos de risco, ficando essa diferença mais acentuada no grupo de alto risco. No Brasil14, pesquisa apontou que a cor da pele influenciou o tipo de tratamento, na qual negros eram menos propensos ao procedimento cirúrgico. As disparidades raciais na atenção ao câncer de próstata têm sido documentadas em todas as etapas de gestão da neoplasia, desde a apresentação, diagnóstico, tratamento, sobrevida até a morte, com os homens negros com a maior carga em todo o processo de atenção15. Tais disparidades são complexas e envolvem determinantes de natureza biológica, socioeconômica e sociocultural15-17. Apesar do recente debate sobre preconceito e discriminação, como em outras sociedades marcadas por uma história de colonização e escravidão, existe preconceito étnico e racial no Brasil, assim como desigualdades desfavoráveis a pretos, pardos e indígenas18.
Com relação às dificuldades ou desigualdades de acesso a procedimentos diagnósticos e tratamento no Brasil, é importante ainda destacar que as pessoas que identificam sua raça ou cor da pele como parda ou preta tendem a pertencer a grupos de renda mais baixa e menor escolaridade19. A escolaridade exerceu influência tanto no tempo entre o diagnóstico e o tratamento, como no período entre a primeira consulta no HSRC-AFECC e o início do tratamento. Em ambos os tempos, os homens com até oito anos de estudo, geralmente, iniciavam o tratamento em um intervalo de tempo superior a 60 dias, em contrapartida, os mais escolarizados recebiam o primeiro tratamento em um intervalo menor. Nos dois estudos norte-americanos citados acima12,13, ambos constataram que os homens negros eram mais jovens, apresentavam menor renda, assim como menor nível de escolaridade quando comparados com os brancos. Contudo, um estudo espanhol20 não encontrou associação entre o tempo discorrido do diagnóstico ao primeiro tratamento com o nível de escolaridade. Apesar das desigualdades por nível educacional no uso de serviços de saúde estarem diminuindo de forma consistente, no Brasil19, ainda consiste em um enorme desafio. Entretanto, essas desigualdades também podem ser atribuídas a diferenças de comportamento no momento de buscar cuidados de saúde. As pessoas dos grupos de menor escolaridade talvez adiem a decisão de buscar cuidado de saúde em função das experiências negativas para obter atendimento na rede básica, ou preconceitos e medos relacionados ao toque retal problematizado pela masculinidade hegemônica21, ou ainda devido a outros fatores, como a impossibilidade de faltar ao trabalho.
Em relação à Lei 12.732, percebe-se que a mesma ainda não exerceu nenhum impacto sobre o tempo entre o diagnóstico e o tratamento na instituição hospitalar, repercutindo apenas sobre o intervalo entre a primeira consulta e o tratamento, de forma negativa. Nos anos subsequentes à Lei, aproximadamente, 60% dos homens com câncer de próstata passaram a receber a terapêutica em um período superior a 60 dias contados da primeira consulta no hospital. Pesquisas referentes ao tempo de espera para o tratamento de homens com câncer de próstata no país são incipientes, inexistindo no período posterior a publicação da Lei. Nesse contexto, um importante aspecto a ser considerado diz respeito às recomendações para a prevenção e o tratamento do câncer de próstata, que apresentam tanto uma diversidade quanto certa polêmica entre os diferentes posicionamentos21, incluindo a indicação de conduta expectante como abordagem terapêutica, especialmente para indivíduos mais velhos ou os que têm outros problemas importantes de saúde.
Observou-se que chegar ao hospital sem diagnóstico e sem tratamento pressupõe maior probabilidade de iniciar o tratamento no prazo de 60 dias, contados tanto a partir da primeira consulta na instituição como da data do diagnóstico. Este fato também pode ser identificado em um estudo que analisou o tempo entre o diagnóstico e o tratamento de mulheres idosas com câncer de mama, ao relatar que as mulheres que receberam o diagnóstico e todo o tratamento no serviço avaliado obtiveram melhores tempos22. Não obstante, pesquisa prévia realizada no HSRC-AFECC23 identificou que os homens que chegaram com diagnóstico e sem tratamento tiveram menor probabilidade de apresentar-se em estádio tardio, enquanto os que vieram sem diagnóstico e sem tratamento tenderam a apresentar estádios mais avançados. Neste caso, deve-se considerar, em especial, a fragilidade na organização da rede regionalizada de serviços, com mecanismos ainda pouco eficazes de regulação e de referência e contrarreferência, decorrentes de obstáculos estruturais, procedimentais e políticos, como: desequilíbrio de poder entre integrantes da rede, falta de responsabilização dos atores envolvidos, descontinuidades administrativas e a alta rotatividade de gestores.
Referente à origem do encaminhamento, os homens encaminhados pelos estabelecimentos do SUS apresentaram maiores intervalos de tempo entre o diagnóstico e o tratamento como da consulta ao tratamento, em comparação com os indivíduos encaminhados pelos estabelecimentos privados de saúde. Estudo norte-americano15 destacou que uma adequada cobertura do plano de saúde pode ser um importante determinante na detecção do tumor do câncer de próstata em estádio curável, viabilizando um tratamento oportuno e reduzindo disparidade. Outro estudo desenvolvido nos Estados Unidos24 encontrou associação entre ter plano de saúde público com tratamento conservador, assim como, idade avançada, negros, solteiros, PSA acima de 20 ng/dl, baixo escore de Gleason (2-4), e comorbidades. Pesquisa realizada no Estado de São Paulo14 descreveu o perfil dos homens com câncer de próstata do SUS como sendo negros, idosos, com PSA elevado, maior chance de metástase e menor probabilidade de receber tratamento definitivo, como a cirurgia. Os achados da pesquisa brasileira demonstram similaridades com a pesquisa americana supracitada, apesar de ambas terem sido realizadas em contextos de sistema de saúde diferentes, sendo um universal e o outro não.
Embora a utilização de serviços varie amplamente entre pessoas que possuem seguros de saúde e as que não os possuem, tem se verificado que a diferença entre esses dois grupos está diminuindo19. Entretanto, segundo estes autores, à medida que a participação do setor privado no mercado aumenta, as interações entre os setores publico e privado criam contradições e injusta competição, gerando resultados negativos na equidade, no acesso aos serviços de saúde e nas condições de saúde19,21. A diferença no atendimento entre os indivíduos SUS e NÃO SUS nos remete à questão da dupla porta, a qual se refere às instituições que atendem pacientes SUS e pacientes privados, como é o caso do HSRC-AFECC que é um hospital filantrópico. Isto ressalta possíveis atalhos que os indivíduos com plano de saúde ou particular adotam para cortar a fila de espera para atendimento no hospital pago pelo SUS. Nos estabelecimentos de saúde em que se verifica a dupla porta é notória a tendência em priorizar o atendimento privado em detrimento do paciente custeado pelo sistema público25-27. Críticas apontam para o fato da “dupla porta” gerar uma dupla fila de espera e de percurso no interior da instituição, portanto, segregando e/ou excluindo não apenas do lado de fora, mas também do lado de dentro do hospital26.
Em relação às variáveis clínicas, em ambos os tempos foi encontrado associação entre estádio avançado, alto escore de Gleason e PSA elevado (acima de 20 ng/dL) com menores tempos para início do tratamento. No Canadá9, pesquisa revelou que do diagnóstico ao início da radioterapia, os homens de intermediário e alto risco tiveram tempo de espera menor quando comparados com os de baixo risco. Assim como, na Espanha20, homens com PSA elevado e alto escore de Gleason obtiveram um intervalo entre o diagnóstico e o tratamento menor.
Autores destacam que para homens de intermediário e alto risco o prazo de três meses constitui-se como aceitável para a escolha do tratamento, não devendo as listas de espera desses pacientes ultrapassar esse período27. Eles ainda evidenciam que o atraso no tratamento pode favorecer a perda da janela de curabilidade em homens com alto risco, porém, o atraso pode não ter impacto sobre os resultados entre homens com tumor de menor risco27.
Foi possível verificar os determinantes que condicionam a abordagem terapêutica dos homens com câncer de próstata atendido no HSRC-AFECC, revelando iniquidades no acesso, pois são os homens de baixo nível socioeconômico (não brancos, menos escolarizados e usuários dos serviços do SUS) que mais demoram em iniciar o tratamento. As associações encontradas entre os tempos com as variáveis sociodemográficas revelam diferenças que podem ser consideradas como injustas, pois prejudicam os que mais carecem de atenção, não havendo fundamentação ou recomendação para tal abordagem. Este achado suprime o princípio da equidade que deveria fundamentar as ações dos serviços de saúde, o qual almeja a igualdade no acesso dos diferentes grupos populacionais no SUS, por meio da redução das diferenças sistemáticas que são desnecessárias e evitáveis28.
No entanto, quanto aos achados da pesquisa em relação às variáveis clínicas, vai de encontro ao que é preconizado na atenção ao câncer de próstata. Os indivíduos em estádios mais avançados têm prioridade no início do tratamento, enquanto os com estádios mais precoces tendem a esperar maior tempo para a definição da terapêutica, pois o câncer de próstata é uma neoplasia de desenvolvimento lento na grande maioria dos casos. Contudo, a Lei 12.732 se aplica a todos os tipos de neoplasia, não entrando em detalhe sobre as especificidades de cada câncer. Desta forma, o prazo de até 60 dias para início do tratamento deve ser aplicado em todas as situações.
Disparidades nos modos de atendimentos em um serviço que se propõe ser universal, integral e equânime não devem jamais prevalecer, pelo contrário, é necessário eliminá-las do processo de trabalho. Para isso, a avaliação das práticas de trabalho e organização do serviço de saúde, constitui ferramenta chave para o planejamento e promoção de adequações nos modos de atendimento. Assim, viabilizar condições mínimas de acesso à população deveria ser premissa básica de todos os serviços, uma vez que é por meio dele que se interage com o sistema de saúde. Com o crescimento populacional é essencial buscar fórmulas que permitam satisfazer as necessidades quantitativamente crescentes e, ao mesmo tempo, de maneira mais equitativa, eficiente e efetiva29.
O acesso não enfoca somente características relacionadas a questões geográficas ou de disponibilidade de um serviço em um determinado momento e/ou lugar30,31, representa a forma como as pessoas entram em contato com o sistema de saúde32. Assegurar esse direito à população requer pensar em todos os aspectos que podem afetar a institucionalização desta categoria analítica, como os fatores socioeconômico, culturais, demográficos e relacionais32-34. Assim, ter o acesso como instrumento de avaliação das ações em saúde presume uma visão maior dos processos operacionalizados pela rede SUS de atenção, como também a organização dos métodos de trabalho, dentro de uma perspectiva ética e de direito a cidadania29.
As limitações do estudo estão relacionadas a possível viés de informação e seleção, pois foi utilizada fonte de dados de base secundária, estando sujeita a variações nos registros e não preenchimento de todas as informações. Outra limitação é o possível viés de amostragem, uma vez que um número maior de casos em estádios tardios podem ter sido referenciados ao HSRC-AFECC com maior frequência, já que é uma instituição referência em oncologia23.
Portanto, para superar os desafios enfrentados pelo sistema de saúde brasileiro, será necessária uma revisão profunda das relações público-privadas e das desigualdades persistentes, a fim de assegurar acesso universal e equânime em todos os níveis de cuidado. Cabe aos gestores e profissionais analisarem os fluxos de atenção e de atendimento para promoverem adequações na organização e estrutura do processo de trabalho, para assim desenvolver uma prática humanizada, acolhedora e isenta de desigualdades.