versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.83 no.1 São Paulo jan./fev. 2017
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2016.01.008
A perda auditiva induzida pelo ruído (PAIR), uma das doenças ocupacionais mais comuns, é uma forma de comprometimento sensorioneural da audição causado pela interação entre fatores ambientais (p. ex., a prolongada exposição a altos níveis de ruído) e fatores genéticos.1 De acordo com dados estatísticos, cerca de um terço de todos os casos de perda auditiva podem ser atribuídos à exposição ao ruído2 e 10% da população mundial se encontram em risco de sofrer PAIR.3
Atualmente, pouco se sabe sobre polimorfismos de genes que podem estar envolvidos na suscetibilidade à PAIR. Ohlemiller et al. demonstraram que o ruído pode lesionar o epitélio sensitivo coclear pela indução da liberação local de radicais livres.4 Em consequência, foram examinados os genes envolvidos na regulação da liberação de radicais livres,5 foi identificada a superóxido dismutase 2 (SOD2) dependente de manganês.6
SOD2 é um homotetrâmero localizado no interior das mitocôndrias, é uma enzima envolvida na conversão de radicais superóxido para peróxido de hidrogênio.7 Entre os polimorfismos identificados no gene de SOD2, C47T é o mais amplamente estudado. C47T está localizado na posição 16 na sequência de targeting mitocondrial e resulta na substituição de uma alanina pela valina (V16A).8,9 C47T foi estudada em associação com diversas doenças (cardiopatia,10 diabetes,11 doença hepática gordurosa não alcoólica – DHGNA) acompanhadas por PAIR.12,13 Fortunato et al. já tinham demonstrado que os polimorfismos de SOD2 poderiam ser fatores predisponentes para PAIR, por exercerem papéis antioxidantes nos tecidos locais,6 enquanto Wang et al. apenas demonstraram uma fraca associação entre polimorfismos de SOD2 e PAIR.14 Individualmente, os atuais estudos proporcionam poucas informações e não chegam a conclusões convincentes. Portanto, no presente estudo, fizemos uma metanálise com uma amostra relativamente grande, para que fosse possível gerar uma conclusão mais confiável com vistas à correlação entre o polimorfismo C47T de SOD2 e PAIR.
Artigos que investigaram SOD2 e PAIR publicados nas bases de dados em PubMed e Web of Science antes de dezembro de 2014 foram incluídos nesta metanálise. Foram empregados os termos de busca a seguir: superoxide dismutase, SOD2, polymorphism, polymorphisms, variation, variations, genotype, noise induced hearing loss, noise-induced hearing loss e NIHL (superóxido dismutase, SOD2, polimorfismo, polimorfismos, variação, variações, genótipo, perda auditiva induzida pelo ruído, perda auditiva induzida por ruído e PAIR). Foram incluídos os estudos que atendessem aos seguintes critérios: 1) texto completo, estudos redigidos em inglês; 2) dados completos para casos e controles sobre a relação entre polimorfismo de SOD2 e PAIR; 3) dados suficientes para inferência dos resultados; e 4) genótipos do grupo de controle no Equilíbrio de Hardy-Weinberg (EHW). O EHW foi testado pelo teste do χ2; quando o teste do χ2 informou um valor de p > 0,05, os genótipos do grupo de controle eram consistentes com EHW.
Neste estudo, dois investigadores, de forma independente, coletaram dados de cada artigo qualificado. Os dados consistiam em primeiro autor, ano da publicação, país de origem, etnia, número de casos e número de controles. Em seguida a uma checagem entre os dois investigadores, ficou determinado um conjunto final de dados.
A qualidade do estudo foi avaliada pela Escala de Avaliação de Qualidade Newcastle-Ottawa para estudos de caso-controle.15 Com esse instrumento, foi determinada a qualidade dos estudos selecionados com base na seleção dos grupos de estudo (0–4 pontos), comparabilidade dos grupos de estudo (0–2 pontos) e constatação do desfecho de interesse (0–3 pontos).
A associação entre o polimorfismo C47T no gene de SOD2 e suscetibilidade à PAIR foi estimada com base em todos os modelos genéticos. Foram avaliados cinco modelos de comparação para o polimorfismo C47T: um modelo de alelo (Tvs.C), um codominante (TTvs.CC e CTvs.CC), um dominante (TT + CTvs.CC) e um recessivo (TTvs.CT + CC).
Para a metanálise, foram calculadas razões das chances (odds ratios [ORs]) acumuladas e intervalos de confiança (ICs) de 95%, com o uso do modelo de efeitos fixos ou do modelo de efeitos aleatórios. A escolha do modelo tomou por base os resultados de um teste de heterogeneidade, que empregou a estatística do teste I2, já descrito anteriormente.16 Se I2 > 50%, empregamos um modelo de efeitos aleatórios, de acordo com o método de DerSimonian e Laird; em caso contrário, empregamos um modelo de efeitos fixos, de acordo com o método de Mantel-Haenszel.
O viés de publicação foi testado com o uso do gráfico em funil de Begg e com o teste de Egger.17 Se o gráfico em funil fosse assimétrico e se o teste de Egger resultasse em um valor de p < 0,05, estaríamos diante de um viés de publicação.
Todas as análises foram feitas com o programa Stata, versão 12.0 (Stata Corporation, College Station, TX, EUA).
Na conclusão da busca, que ocorreu em 31 de dezembro de 2014, tinham sido recuperados 33 artigos. Em sua maioria, os artigos foram excluídos devido ao fato de que o estudo tratava de um tópico não correlato, ou os artigos não tinham sido redigidos em inglês, ou ainda o artigo era uma duplicata ou revisão, ou artigo de comentário. Como resultado, restaram quatro artigos, mas, após a eliminação de um artigo no qual o resumo tinha sido omitido, finalmente restaram três artigos. Assim, no fim, três artigos foram incluídos6,14,18 nesta metanálise, compreenderam 1.094 indivíduos, 407 dos quais eram casos de PAIR. O processo de revisão está ilustrado na figura 1 e acompanha recomendações descritivas previamente publicadas.19 Dos três estudos, dois foram feitos na República Popular da China e um era proveniente da Itália. Todas as frequências de genótipos nas populações de controle estavam em concordância com EHW (tabela 1).
Autor | Ano | País | Etnia | Tamanho da amostra (caso/controle) | Caso (CC/CT/TT) |
Controle (CC/CT/TT) | PEHW |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Fortunato et al. | 2004 | Itália | Caucasiana | 61/29 | 14/33/14 | 4/19/6 | 0,08 |
Liu et al. | 2010 | China | Chinesa | 201/202 | 8/55/138 | 3/38/161 | 0,66 |
Li et al. | 2014 | China | Chinesa | 145/456 | 3/36/106 | 6/120/330 | 0,18 |
PEHW, valor de p para o teste do Equilíbrio de Hardy-Winberg (EHW) em cada grupo de controle.
A escala de Newcastle-Ottawa (ENO) para avaliação da qualidade dos estudos de caso-controle está descrita na tabela 2. Todos os estudos foram identificados como relativamente de alta qualidade, porque o escore total foi superior a 7.
Autor | Seleção | Comparabilidade | Exposição | Sumário | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
A definição de caso é adequada? | Representatividade dos casos | Seleção dos controles | Definição de controles | Etnia | Idade | Constatação de exposição | Mesmo método de constatação para casos e controles | Percentual de não resposta | ||||
Fortunato et al. | ✵ | ✵ | ✵ | ✵ | ✵ | ✵ | ✵ | ✵ | 4.1.3 | |||
Liu et al. | ✵ | ✵ | ✵ | ✵ | ✵ | ✵ | ✵ | ✵ | ✵ | 4.2.3 | ||
Li et al. | ✵ | ✵ | ✵ | ✵ | ✵ | ✵ | ✵ | ✵ | 3.2.3 |
Fizemos a metanálise geral e a metanálise de subgrupo com base na etnia. Os resultados detalhados de nossa metanálise estão listados na tabela 3. Com respeito à metanálise geral, não observamos associação significativa em todos os modelos genéticos (modelo de alelo: Tvs. C, OR = 0,83, IC 95% = 0,63-1,09; modelo dominante: CCvs. TT + TC, OR = 0,49, IC 95% = 0,23-1,04; modelo codominante: TTvs.CC, OR = 0,49, IC 95% = 0,22-1,09; CTvs.CC, OR = 0,54, IC 95% = 0,25-1,17; modelo recessivo: TTvs. CC + CT, OR = 0,82, IC 95% = 0,50-1,32) (fig. 2). Quando a análise de subgrupo foi categorizada em etnias chinesa e caucasiana, uma associação significativa foi observada somente entre o polimorfismo C47T do gene de SOD2 e risco de PAIR no modelo recessivo (TTvs. CC + CT, OR = 0,77, IC 95% = 0,42-1,41) em indivíduos chineses (tabela 2).
Etnia | Nº de estudos | Tamanho da amostra (caso/ controle) | T vs. C | TT vs. CC | CT vs. CC | TT vs. CC + CT | TT + CT vs. CC | |||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
OR (IC 95%) | p | OR (IC 95%) | p | OR (IC 95%) | p | OR (IC 95%) | p | OR (IC 95%) | p | |||||||
Chinesa | 2 | 346/658 | 0,82 (0,61-1,10) | 0,12 | 0,43 (0,17-1,11) | 0,48 | 0,57 (0,21-1,54) | 0,92 | 0,77 (0,42-1,41)a | 0,04b | 0,46 (0,18–1,19) | 0,58 | ||||
Caucasiana | 1 | 61/29 | 0,92 (0,46-1,85) | – | 0,67 (0,15-2,89) | – | 0,50 (0,14-1,73) | – | 1,14 (0,39-3,36) | – | 0,54 (0,16–1,81) | – | ||||
Geral | 3 | 407/687 | 0,83 (0,63-1,09) | 0,28 | 0,49 (0,22-1,09) | 0,71 | 0,54 (0,25-1,17) | 0,98 | 0,82 (0,50-1,32)a | 0,12 | 0,49 (0,23–1,04) | 0,85 |
OR: odds ratio; IC: intervalo de confiança; valor de p para o teste de heterogeneidade; Se p > 0,1, ORs foram calculadas com o emprego do modelo de efeitos fixos; caso contrário, foi empregado o modelo de efeitos aleatórios.
aORs foram calculadas com o emprego do modelo de efeitos aleatórios.
bFoi observada uma associação significante.
Os resultados do gráfico em funil de Begg (fig. 3 e tabela 4) e do teste de Egger (tabela 4) não revelaram viés de publicação para o modelo de alelo (Tvs.C, p = 1,00), modelo dominante (CCvs.TT + TC, p = 0,952), modelo codominante (TTvs.CC, p = 0,306; CTvs.CC, p = 0,215) ou modelo recessivo (TTvs.CC + CT, p = 0,832).
T vs. C | TT vs. CC | CT vs. CC | TT vs. CC + CT | TT + CT vs. CC | |
---|---|---|---|---|---|
Teste de Begg | 1,00 | 0,296 | 0,296 | 1,000 | 1,000 |
Teste de Egger | 1,00 | 0,306 | 0,215 | 0.832 | 0,952 |
As espécies de oxigênio reativo (EORs) desempenham um papel essencial nos mecanismos subjacentes da indução da lesão coclear em diversas condições patológicas. O superóxido, que pode formar peroxinitrito, uma substância altamente tóxica, é rapidamente gerado na orelha interna, logo após uma superestimulação acústica.20 SOD é uma enzima envolvida na regulação dos níveis de superóxido, mediante a conversão de superóxido em peróxido de hidrogênio. Foi descrita a localização de SOD2 na cóclea e foi demonstrado que a ausência de SOD acarreta aumento na perda auditiva relacionada a trauma acústico.14,18,21,22Além disso, a disfunção auditiva decorrente da exposição a ruído fica atenuada pela aplicação de SOD2. Por outro lado, camundongos transgênicos com superexpressão de SOD2 ficaram protegidos contra a perda auditiva induzida por aminoglicosídeo, que também é mediada por EORs.23 Até o momento, vários estudos exploraram a relação entre o polimorfismo C47T do gene de SOD2 e suscetibilidade à PAIR. Exemplificando, Fortunato et al. já demonstraram previamente que os polimorfismos de SOD2 podem ser fatores predisponentes à ocorrência de PAIR, por exercerem papéis antioxidantes teciduais variáveis,6 enquanto Wang et al. apenas demonstraram uma fraca associação entre polimorfismos de SOD2 e PAIR.14 Contudo, ainda há controvérsia com relação aos efeitos protetores de SOD2.
No presente estudo, analisamos os dados de três estudos, com 407 casos de PAIR e 687 controles. Não observamos associação significante entre o polimorfismo C47T e PAIR em todos os modelos avaliados. Mas, ao analisarmos um subgrupo com base na etnia, observamos associação significativa entre o polimorfismo C47T SOD2 e PAIR em um modelo recessivo (TTvs.CC + CT, OR = 0,77, IC 95% = 0,42-1,41) na população chinesa. Não existe associação significante em qualquer outro modelo genético na população chinesa. Até onde sabemos, esta é a primeira metanálise a investigar a associação entre o polimorfismo C47T do gene de SOD2 e suscetibilidade à PAIR.
Além disso, em nossa análise dos estudos, empregamos modelos de efeitos fixos ou de efeitos aleatórios com base em um teste de heterogeneidade. Dois estudos exibem heterogeneidade substancial para a análise global. No entanto, de acordo com a análise de subgrupo para etnia, não foi observada heterogeneidade significativa. Portanto, faz-se necessária uma exploração mais aprofundada dos fatores de risco para essa condição.
Nosso estudo apresenta algumas limitações. Por exemplo, o tamanho da amostra empregado em nossa metanálise foi insuficiente, especialmente para a análise de subgrupo referente à etnia. Também faltou um ajuste dos dados de caso-controle compatível com informações individuais detalhadas, como idade, gênero e estilo de vida. A terceira limitação do estudo é que, até o momento, ainda não ficou esclarecida a exata base molecular da associação entre o polimorfismo C47T de SOD2 e risco de PAIR; esse aspecto merece uma investigação mais aprofundada.
Apesar dessas limitações, nossa metanálise sugere que o polimorfismo C47T de SOD2 é significantemente associado a maior risco de PAIR na população chinesa. Contudo, há necessidade de outros estudos de maior porte e bem concebidos que confirmem essa associação.