versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.13 no.1 São Paulo jan./mar. 2015 Epub 24-Mar-2015
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082015RW2874
O hipotireoidismo subclínico é um diagnostico laboratorial( 1 ) definido por um nível sérico excepcionalmente alto de tirotropina (TSH) associado a uma concentração plasmática normal de tiroxina livre (fT4).( 2 - 4 ) É comum entre indivíduos idosos e sua prevalência aumenta com a idade, acometendo 6% da população entre 70 e 79 anos de idade e 10% dos indivíduos acima de 80 anos.( 5 , 6 ) A prevalência de hipotireoidismo subclínico é menor em negros que em brancos, em mulheres com mais de 80 anos de idade, e em populações com deficiência de iodo.( 1 )
A disfunção subclínica da tireoide tem sido associada a vários desfechos clínicos negativos, como hipercolesterolemia, aterosclerose,( 7 ) eventos coronarianos e morte,( 2 , 7 ) capacidade funcional cognitiva,( 2 , 8 , 9 ) depressão,( 10 ) deficiência,( 2 ) baixa função física,( 11 ) e risco de progressão para franco hipotireoidismo.( 12 )
A concentração sérica de TSH aumenta discretamente em indivíduos hígidos muito idosos,( 13 ) independentemente da presença de anticorpos antitireoidianos( 5 , 14 ) e junto de um declínio dependente da idade em níveis séricos de triiodotironina livre e total (T3). Isso sugere que alguns indivíduos muito idosos possam ter um ponto de ajuste alterado no eixo hipotálamo-pituitária-tireoide.( 4 ) Apesar de um provável aumento nos níveis séricos de triiodotironina reversa (rT3) com a idade,( 11 ) as concentrações séricas livres e totais de tiroxina (T4) continuam inalteradas e complicam a interpretação dessas medidas, já que as comorbidades crônicas e o uso de medicamentos frequentemente estão presentes nessa população. É possível que a diminuição da função tireoidiana e da taxa metabólica( 11 ) seja um mecanismo adaptativo para evitar o catabolismo e reduzir o dano ao DNA por espécies reativas de oxigênio.( 13 ) Ademais, há relatos de que indivíduos centenários( 14 ) e seus descendentes têm níveis séricos de TSH mais elevados, o que caracteriza um fenótipo hereditário.( 15 - 17 )
A despeito dessas evidências, continua incerta a hipótese de que algum grau de diminuição fisiológica na atividade da tireoide, em nível tissular, possa favorecer indivíduos idosos.
Analisar estudos que avaliaram a relação entre concentrações séricas elevadas de tirotropina no hipotireoidismo leve e comorbidades em indivíduos com mais de 80 anos de idade.
Esta revisão foi conduzida na Disciplina de Geriatria e Gerontologia na Universidade Federal de São Paulo, com aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa local. Buscamos nos bancos de dados PubMed, Scientific Electronic Library Online (SciELO) e LILACS artigos publicados entre 2004 e 2012, e realizamos o último levantamento em abril de 2013. Para realizar a busca, usamos as seguintes combinações de palavras-chave: “subclinical hypothyroidism” OR “mild hypothyroidism” WITH “oldest old” OR “very old” OR “80 and over” or “centenarians” OR “longevity”. Nossa busca foi restrita a estudos envolvendo seres humanos com idade de 65 anos ou mais, escritos em inglês, espanhol ou português.
Foram selecionados estudos que avaliaram a associação entre níveis séricos elevados de TSH em idosos com hipotireoidismo subclínico, já que, em parte, incluíam a subpopulação de indivíduos com 80 anos de idade ou mais. Excluímos estudos em que faltava essa informação e estudos sobre doenças não tireoidianas ou síndrome de T3 baixo. Alguns desses estudos não excluíam pacientes com franco hipotireoidismo. Não fizemos nenhuma restrição quanto a desenho do estudo ou tamanho de amostra.
Nossa pesquisa identificou 192 estudos (Figura 1).
Foram excluídos 28 estudos irrelevantes por não cobrirem a associação entre hipotireoidismo subclínico e longevos (n=21) ou por não considerarem claramente a população mais idosa (n=9). Treze estudos foram selecionados e classificados segundo o método Oxford Centre for Evidence-Based Medicine Levels of Evidence.( 18 ) Três estudos foram realizados na Holanda,( 2 , 11 , 16 ) um no Reino Unido,( 9 ) um na Itália,( 17 ) quatro nos Estados Unidos( 5 , 14 , 15 , 19 ) e três no Brasil.( 20 - 22 ) Um dos estudos incluiu subpopulações de vários países( 7 ) (Quadro 1). O número total de sujeitos incluídos nos estudos variou de 109( 22 ) a 55.287 indivíduos.( 7 ) Em estudos que consideraram a duração do seguimento, o tempo médio variou de 2( 9 ) a 20 anos.( 7 ) Foram adotados diferentes valores de referência de TSH, com a referência mínima variando de 0,27 a 0,5mUI/L, e a máxima, entre 4,0 e 5,6 mUI/L.
Quadro 1 Estudos que avaliam a associação entre hipotireoidismo subclínico e os longevos
Autor | Ano | Desenho do estudo | n | Idade | TSH (limite superior) (mUI/L) | Seguimento | Endpoints | Critérios de exclusão | Desfechos/resultados |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Gussekloo et al.( 2 ) | 2004 | Prospectivo com coorte | 704 | 80-84 | 4,8 | 4 anos | Condição da tireoide, deficiência, cognição e sobrevida | N/A | Níveis excepcionalmente altos de TSH podem prolongar o tempo de vida |
Surks et al.( 5 ) | 2007 | RS da coorte | 16.533 | 12-80+ | 4,5 | N/A | Prevalência de HSC | Relato de doença da tireoide, bócio ou uso de medicações relacionadas à tireoide | O HSC é superestimado, a não ser que seja usada uma faixa de variação de TSH específica para a idade |
Rodondi et al.( 7 ) | 2010 | RS da coorte prospectiva | 55.287 | 18-100 | 4,5 | Variável | DAC e mortalidade por DAC | Principalmente indivíduos sintomáticos e/ou hipotireoidismo acentuado | HSC associado ao risco de DAC e mortalidade por DAC em indivíduos com TSH >10 mUI/L |
Hogervorst et al.( 9 ) | 2008 | Coorte prospectiva | 1.047 | 64-94 | 4,8 | 2 anos | Cognição | Fragilidade física ou comprometimento cognitivo grave | Altos níveis log TSH associados a menores escores de MEEM |
Van den Beld et al.( 11 ) | 2005 | Transversal | 403 | 73-94 | 4,3 | 4 anos | Hormônios tireoidianos, função física e mortalidade | Mulheres, indivíduos que não vivem de forma independente, graves problemas de mobilidade, doença sistêmica grave, incapacidade física ou mental para visitar o centro do estudo | Níveis séricos baixos de fT4 associados a melhor sobrevida em 4 anos, refletindo um mecanismo de adaptação para evitar catabolismo excessivo |
Atzmon et al.( 14 ) | 2009 | Caso-controle | 232 | 97+ | 4,0 | N/A | Longevidade e TSH | N/A | TSH mais elevado em indivíduos centenários e pode contribuir para longevidade |
Atzmon et al.( 15 ) | 2009 | Caso-controle | 598 | 69-85+ | 4,0 | N/A | Genética de TSH elevado e longevidade | N/A | SNPs no TSHR contribuem para função diminuída da tireoide e longevidade |
Rozing et al.( 16 ) | 2010 | Transversal | 859 | 89+ | 4,8 | N/A | Longevidade e função da tireoide | N/A | Baixa atividade da tireoide constitui um fenótipo hereditário e contribui para longevidade familiar |
Corsonello et al.( 17 ) | 2010 | Transversal | 604 | 60-85+ | 4,2 | N/A | Longevidade e função da tireoide | N/A | Função diminuída da tireoide em relação à longevidade |
Spencer et al.( 19 ) | 2008 | RS da coorte | 16.088 | 12-80+ | 4,5 | NA | TSH e aTPO | Relato de doença da tireoide ou uso de medicações relacionadas à tireoide | Limites superiores de TSH podem ser alterados por indivíduos aTPO-negativo com disfunção autoimune oculta da tireoide |
Duarte et al.( 20 ) | 2009 | Caso-controle | 399 | 60-92 | 4,0 | NA | Prevalência de disfunção da tireoide nos idosos | Relato de doença da tireoide ou fígado, cirurgia da tireoide, terapia com iodo radioativo, exames radiológicos com meio de contraste ou uso de medicações relacionadas à tireoide | Os idosos têm prevalência mais alta de hipotireoidismo e nódulos da tireoide; um terço tem excreção urinária de iodo e tireoidite autoimune |
Benseñor et al.( 21 ) | 2011 | Transversal | 1.373 | 65-80+ | 5,0 | NA | Prevalência de disfunção da tireoide em idosos | NA | Prevalência de doença da tireoide em homens, e a taxa de hipotireoidismo não diagnosticado é mais alta |
Tonial et al.( 22 ) | 2007 | Transversal | 109 | 60-80 | 5,6 | N/A | Prevalência de hipotireoidismo nos idosos | N/A | Alta prevalência de hipotireoidismo |
TSH: hormônio estimulante da tireoide; N/A: não se aplica; RS: revisão sistemática; HSC: hipotireoidismo subclínico; DAC: doença coronariana; MEEM: Miniexame do Estado Mental; fT4: tiroxina livre; TSHR: receptor do hormônio estimulante da tireoide; aTPO: anticorpo antitireoperoxidase; SNPs: polimorfismos de nucleotídeo único.
Dois estudos selecionados foram multicêntricos. Um consistia em estudo epidemiológico longitudinal( 9 ) em seis centros da Inglaterra e do País de Gales, para avaliar a associação entre declínio cognitivo, analisado pelo Miniexame do Estado Mental (MEEM), e altos níveis de TSH em indivíduos idosos. O outro estudo incluiu 11 coortes prospectivas de diferentes países (Estados Unidos, Austrália, Europa, Brasil e Japão) e demonstrou um maior risco de doença coronariana e mortalidade por coronariopatia em indivíduos com concentrações de TSH de 10mUI/L ou mais.( 7 ) Entretanto, quando a análise incluía apenas indivíduos com 80 anos de idade ou mais, nenhum aumento significante no risco de eventos cardiovasculares, doença coronariana ou mortalidade total foi observado.( 7 )
Alguns dos estudos transversais e longitudinais populacionais reconheceram que os limites superiores de níveis de TSH poderiam ter sido alterados por indivíduos com disfunção autoimune oculta da tireoide e pelos resultados negativos para os títulos séricos de anticorpo antitireoperoxidase (aTPO),( 14 ) enquanto outros consideraram que os resultados superestimaram a hipofunção tireoidiana, já que nenhuma faixa de TSH específica para a idade foi adotada, e, assim, havia a possibilidade de identificação de indivíduos sadios como tendo doença tireóidea subclínica.( 5 ) Apesar desses fatos, a maioria dos estudos confirmou que o TSH sérico estava elevado nessa população, que aumenta com a idade,( 21 ) e que esse achado é muito comum na população acima de 80 anos de idade.( 14 ) Níveis mais altos de TSH foram associados à longevidade, especialmente nos mais idosos,( 2 , 14 , 19 ) o que se estendia a familiares,( 16 , 17 ) e podia ser correlacionado a uma melhor sobrevida.( 8 ) Os resultados de estudos clínicos transversais mostraram uma maior prevalência de hipotireoidismo subclínico e franco nos sujeitos mais idosos.( 21 - 23 )
Diferentes estudos sugeriram que a glândula tireoide sofre alterações anatômicas e fisiológicas com o tempo, fornecendo evidências de que sua função diminui com a idade.
Uma metanálise demonstrou que eventos cardiovasculares e mortalidade em pacientes com hipotireoidismo subclínico ficaram restritos àqueles com menos de 65 anos de idade.( 24 , 25 ) Em contraste, mostrou não haver associação entre um risco maior de eventos coronarianos ou mortalidade e níveis elevados de TSH para indivíduos idosos com 80 anos ou mais.( 7 ) Uma possível explicação para essa discrepância pode ser que os participantes com hipotireoidismo subclínico incluídos nesses estudos já tinham fatores de comorbidade preexistentes (como dislipidemia e disfunção endotelial), ou até doença cardiovascular, e a exposição a desfechos mais graves ou fatais antes da idade de 80 anos aumentava seus riscos de eventos cardiovasculares.( 26 ) Assim, aqueles que sobreviviam teriam uma chance maior de envelhecer. Não está claro por que um nível excepcionalmente alto teria associação com mortalidade( 2 ) menor e longevidade. É possível que uma taxa metabólica mais baixa e uma concentração flutuante do TSH sérico possam ser representadas por sinais precoces de hipoecogenicidade da tireoide ao exame ultrassonográfico,( 27 , 28 ) com diminuição de fT4, aumento de rT3, e alteração do ponto de ajuste pituitário,( 14 , 23 ) como já foi documentado em indivíduos centenários, e poderia denotar processos metabólicos de adaptação, para evitar catabolismo excessivo.( 11 , 23 ) De fato, parentes dos longevos apresentaram tendência de repetir esse achado laboratorial( 16 , 17 ) mostrando regulação negativa de hormônios da tireoide em função de predisposição genética( 15 ) e se beneficiando de um tempo de vida mais longo.( 2 , 11 , 15 , 17 )
Pacientes idosos com doença subclínica da tireoide apresentaram os piores resultados gerais no MEEM. A associação entre franco hipotireoidismo e disfunção cognitiva está bem estabelecida, e há casos descritos de demência secundária por causa de disfunção da tireoide.( 9 ) Em contrapartida, alguns estudos controversos relataram uma relação inversa entre TSH elevado e função da memória( 9 ) ou até ausência de associação, considerando idosos acima de 85 anos.( 2 ) Uma observação semelhante já foi feita quanto à depressão. Enquanto alguns estudos relatam a piora do humor com o hipotireoidismo subclínico,( 10 ) outros não confirmaram essa associação.( 29 , 30 )
Os estudos não mostraram nenhuma evidência de que a função reduzida da tireoide tenha uma associação positiva com capacidade funcional( 2 ) ou função física reduzida.( 11 )
Na literatura, falta informação sobre os riscos de níveis de TSH discretamente aumentados, tanto na população em geral e quanto nos indivíduos mais idosos. Concentrações anormais de TSH frequentemente são encontradas nesses indivíduos idosos e associadas a uma expectativa de vida mais longa, embora o mecanismo exato para isso continue desconhecido.
Talvez o uso de valores de referência específicos para idade possa oferecer uma distribuição de TSH mais confiável, mais representativa da população idosa. Essa seria uma oportunidade de redefinir o limite superior de normalidade para o TSH sérico, pelo menos para a população muito idosa.( 31 )
As metas para os níveis de TSH durante a terapia de reposição com levotiroxina tendem a ser individualizada e devem ser ajustadas para cerca de 6mUI/L em indivíduos com mais de 70 anos.( 6 ) Embora pareça improvável que a reposição da levotiroxina seja benéfica e possa ser até prejudicial,( 12 , 13 ) o tratamento deve ser administrado a pacientes considerados de alto risco para doença cardiovascular (diabetes mellitus, disfunção diastólica ou hipertensão, aterosclerose e fumantes) com TSH >10mUI/L e para aqueles com anticorpos antitireoidianos e/ou achados positivos na ultrassonografia, que possam progredir para o franco hipotireoidismo.( 6 , 12 , 32 )
As implicações clínicas e recomendações de tratamento atuais para os indivíduos mais idosos com hipotireoidismo subclínico ainda não são claras. Com a expansão gradual do grupo de indivíduos muito idosos, mais estudos randomizados controlados são necessários para melhor definir os benefícios da reposição de hormônio tireoidiano nessa população.