versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.17 no.1 São Paulo 2019 Epub 31-Jan-2019
http://dx.doi.org/10.31744/einstein_journal/2019ao4337
O envelhecimento promove alterações pulmonares estruturais e fisiológicas associadas à redução de função e capacidade respiratórias. Assim, pequenos esforços impõem maior demanda ventilatória em idosos, levando à dispneia e à fadiga. Além disso, o comprometimento respiratório é a fase final de diversas doenças pulmonares e cardiovasculares, do câncer e de muitas outras doenças.(1,2)
As relações entre função respiratória e distúrbios cognitivos em idosos foram demonstradas em estudos clínicos e populacionais.(3-5)Acredita-se que tais associações se devam aos efeitos da hipóxia sobre a síntese de neurotransmissores, como acetilcolina, levando à confusão mental e ao comprometimento da memória.(6)Considerando os efeitos diretos da perda cognitiva sobre a qualidade de vida em idosos,(7,8)distúrbios psicoemocionais, como baixa autoestima e depressão, podem decorrer do comprometimento da função respiratória.
Em que pesem as evidências de perda de desempenho cognitivo e qualidade de vida em idosos com comprometimento da função respiratória,(6)falta esclarecer se essa relação depende do sexo. Sabe-se que o número de comorbidades, a velocidade de declínio da função respiratória e a prevalência de incapacidade são maiores em idosos do sexo feminino do que naqueles do sexo masculino.(9)Segundo estudo recente, o pico de fluxo expiratório (PFE) guarda relação com variáveis funcionais, como força de preensão palmar e desempenho no teste Timed Up and Go (TUG) em mulheres, mas não em homens.(10)
Neste estudo, o desempenho cognitivo e a qualidade de vida de idosos dos sexos feminino e masculino, com PFE preservado ou reduzido, foram comparados para investigar possíveis diferenças em relação ao sexo.
Investigar se idosos do sexo feminino com comprometimento do pico de fluxo expiratório apresentam pior função cognitiva e qualidade de vida do que os do sexo masculino.
A amostra estudada incluiu 386 idosos (232 mulheres) recrutados em um hospital geriátrico em São Paulo (SP). Esta unidade é especializada em cuidados de idosos institucionalizados e membros da comunidade com mais de 60 anos de idade. Nessa unidade, uma equipe multidisciplinar (médicos, fisioterapeutas, psicólogos, enfermeiras, nutricionistas e especialistas em cinesiologia) oferece cuidado e apoio social de alta qualidade a idosos.
Os seguintes critérios de inclusão foram adotados: idade ≥65 anos, ausência de doença pulmonar obstrutiva crônica e ausência de incapacidade ou sinais de demência com base no histórico clínico ou no Miniexame do Estado Mental (MEEM; ponto de corte ajustado para escolaridade). Idosos com idade inferior a 65 anos, histórico de doença pulmonar obstrutiva crônica (bronquite ou enfisema), dificuldade respiratória induzida por exercícios moderados, incapacidade funcional (acamado ou incapaz de se deslocar no ambulatório) ou demência diagnostica pela equipe médica com base na história clínica ou resultados do MEEM (ponto de corte ajustado para escolaridade) foram excluídos.
Os procedimentos foram realizados em conformidade com os padrões éticos do Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Humanos do Hospital Israelita Albert Einstein, e da Declaração de Helsinki (versão de 1975; revisão de 1983), sob o parecer 05/275, CAAE: 0051.0.028.000-05.
Dados referentes às características clínicas, como presença de enfermidades crônicas e tabagismo (fumante ou ex-fumante), foram extraídos dos registros de anamneses e exames físicos. O tabagismo foi calculado multiplicando-se o número de maços de cigarros fumados por dia pelo número de anos de vigência do hábito. Os indivíduos que tinham fumado um mínimo 100 cigarros ao longo da vida, mas que já não fumavam na época da entrevista, foram considerados ex-fumantes. O consumo de álcool foi mensurado com base no número de unidades de álcool consumidas (10mL) por semana. Volumes superiores a 14 unidades por semana foram considerados excessivos. Outros dados sociodemográficos coletados foram sexo, idade, escolaridade, estado civil e ocupação.
O grau de depressão foi determinado com base na Escala de Depressão Geriátrica com 15 itens (EDG-15) em sua versão brasileira,(11)empregando-se o ponto de corte de 3. O teste do desenho do relógio(12)foi empregado para avaliação do estado cognitivo. As atividades instrumentais e básicas da vida diária foram avaliadas por meio dos questionários de Lawton-Brody e Katz, respectivamente.(13,14)A capacidade funcional foi analisada com base na força de preensão palmar(15)e no teste TUG.(16)
O PFE foi mensurado com o paciente em pé, após fornecimento das instruções de uso do medidor de PFE (Assess®Peak Flow Meter, Philips, Holanda). Com o bocal acoplado e o pescoço em posição neutra (ou seja, sem flexão ou extensão), os pacientes foram instruídos a inspirar o mais profundamente possível, até a insuflação pulmonar completa e, em seguida, a realizar a expiração máxima no aparelho. O procedimento foi realizado duas vezes, e o valor mais elevado (L/min) foi empregado na análise. Os limites superiores e inferiores de referência foram ajustados para idade e sexo, empregando-se a equação de predição de Neder et al.,(17)O PFE guarda relação direta com a força da musculatura respiratória e não permite o diagnóstico de doença obstrutiva ou restritiva.
A qualidade de vida relacionada à saúde foi avaliada com base na versão brasileira do instrumento World Health Organization Quality of Life (WHOQOL).(18)Trata-se de um questionário que contém perguntas distribuídas em seis domínios: saúde física, psicológico, grau de dependência, relações sociais, ambiente e espiritualidade/religião/crenças pessoais. O escore é estabelecido com base em uma escala de zero a 100 (pior e melhor qualidade de vida possível, respectivamente). Os participantes responderam o questionário por conta própria. Quando solicitado, o auxílio prestado pelos pesquisadores se limitou à releitura das perguntas em velocidade menor.
A função cognitiva foi avaliada por meio do MEEM, que inclui respostas verbais (orientação temporal e espacial, memória imediata, memória evocativa e processual, atenção e linguagem) e não verbais (coordenação perceptual-motora e compreensão de instruções). Os escores variam de zero a 30, sendo os escores mais altos indicativos de função cognitiva superior. O ponto de corte foi ajustado para escolaridade, conforme descrito.(19)
A normalidade dos dados foi verificada por meio do teste de Shapiro-Wilk. Os procedimentos estatísticos empregados foram média, desvio padrão, análise de covariância (ANCOVA) para investigação das relações entre qualidade de vida, PFE e saúde mental, com ajuste para variáveis de confusão e teste t para comparações entre homens e mulheres. A frequência de doenças crônicas e fatores de risco foi analisada empregando-se o modelo χ 2 . O nível de significância adotado nas análises inferenciais foi de 0,05 (p<0,05). As análises estatísticas foram realizadas por meio do programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 20.
As características da amostra encontram-se dispostas na tabela 1 . Os parâmetros antropométricos e clínicos não diferiram entre idosos com fluxo expiratório preservado ou reduzido, exceto pela maior prevalência de hipertensão em homens com fluxo expiratório reduzido. Conforme mostra a tabela 2 , observaram-se maiores consumo de álcool (p=0,013) e incidência de derrame (p=0,023) em mulheres com fluxo expiratório reduzido.
Tabela 1 Características clínicas da amostra
Característica | Homens | Mulheres | ||||
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Fluxo expiratório preservado (n=86) | Fluxo expiratório reduzido (n=69) | Valor de p | Fluxo expiratório preservado (n=115) | Fluxo expiratório reduzido (n=119) | Valor de p | |
Idade, anos | 73,6±7,6 | 79,1±8,1 | 0,051 | 74,2±8,2 | 79,0±8,9 | 0,070 |
Peso, kg | 70,1±12,4 | 65,7±16,2 | 0,065 | 79,1±18,5 | 70,3±15,1 | 0,066 |
Altura, m | 1,54±0,7 | 1,53±0,6 | 0,097 | 1,65±0,9 | 1,57±0,1 | 0,119 |
Índice de massa corporal, kg/m2 | 29,4±4,9 | 28,1±6,3 | 0,053 | 29,2±5,9 | 28,9±5,2 | 0,106 |
PA sistólica, mmHg | 144,9±26,3 | 146,6±25,4 | 0,133 | 147,5±24,0 | 142,6±24,9 | 0,165 |
PA diastólica (mmHg) | 90,7±14,2 | 89,1±16,0 | 0,170 | 90,4±15,4 | 86,3±15,3 | 0,151 |
Frequência cardíaca, bpm/min | 70,7±8,9 | 73,5±10,2 | 0,071 | 72,1±10,4 | 70,4±9,0 | 0,068 |
Tabagismo | 33,8 | 29,3 | 0,606 | 52,3 | 41,1 | 0,107 |
Diabetes | 25,0 | 19,7 | 0,450 | 25,0 | 17,7 | 0,199 |
Hipertensão | 57,5 | 71,1 | <0,01 | 49,2 | 37,5 | 0,08 |
Coronariopatia | 5,0 | 3,9 | 1,00 | 18,9 | 11,5 | 0,144 |
Doença arterial periférica | 2,5 | 5,3 | 0,434 | 4,5 | 3,1 | 0,737 |
Resultados expressos como percentual ou média±desvio padrão. PA: pressão arterial.
Tabela 2 Distribuição de grupos por doenças relacionadas à idade
Doenças relacionadas a idade | Homens (n=155) | Mulheres (n=233) | ||||
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Fluxo expiratório preservado (n=86) | Fluxo expiratório reduzido (n=69) | Valor de p | Fluxo expiratório preservado (n=115) | Fluxo expiratório reduzido (n=119) | Valor de p | |
Tabagismo | 34,9 | 30,4 | 0,602 | 50,4 | 42,0 | 0,218 |
Alcoolismo | 20,9 | 18,8 | 0,781 | 41,7 | 26,1 | 0,013* |
AVC | 0 | 0 | 0,100 | 2,6 | 3,4 | 0,023* |
AVC isquêmico | 3,5 | 2,9 | 0,837 | 0,9 | 2,5 | 0,736 |
Demência | 2,3 | 0 | 0,204 | 3,5 | 5,9 | 0,331 |
Depressão | 36,0 | 40,6 | 0,565 | 28,7 | 24,4 | 0,386 |
Diabetes | 23,3 | 20,3 | 0,658 | 21,7 | 22,7 | 0,454 |
Coronariopatia | 5,8 | 2,9 | 0,187 | 20,0 | 12,6 | 0,128 |
Doença arterial periférica | 2,3 | 4,3 | 0,480 | 5,2 | 2,5 | 0,126 |
Hipertensão | 55,8 | 29,0 | 0,001 | 45,2 | 42,9 | 0,285 |
Insuficiência cardíaca | 7,0 | 5,8 | 0,167 | 9,6 | 6,7 | 0,227 |
* p<0,05. Resultados expressos como frequência. AVC: acidente vascular cerebral.
As figuras 1 e 2 ilustram a comparação entro o desempenho no MEEM e a qualidade de vida relacionada à saúde em homens e mulheres com fluxo expiratório preservado ou reduzido. Mulheres com fluxo expiratório reduzido apresentaram desempenho inferior no MEEM (p=0,048) e pior qualidade de vida relacionada à saúde (p=0,040), diferenças estas não observadas em homens (p>0,05).
* p<0,05. MMEE: Miniexame do Estado Mental.
Figura 1 Miniexame do Estado Mental por fluxo expiratório
Neste estudo, mulheres idosas com PFE reduzido apresentaram função cognitiva e qualidade de vida relacionada à saúde inferiores em relação àquelas com PFE preservado. Curiosamente, tais diferenças não foram observadas em idosos do sexo masculino.
O comprometimento cognitivo e a dependência física foram associados a desfechos desfavoráveis de saúde, incluindo baixa qualidade de vida e distúrbios psicológicos.(20,21)Assim, a compreensão dos possíveis fatores envolvidos nas perdas relacionadas a esses aspectos pode contribuir para o desenvolvimento de práticas e terapias eficazes voltadas para a melhoria da qualidade de vida relacionada à saúde, e para a promoção da independência funcional em idosos. Os resultados deste estudo indicam que a função cognitiva é pior em mulheres com PFE reduzido. Resultados semelhantes foram obtidos por Yaffe et al.,(22)em um estudo envolvendo 298 mulheres com problemas respiratórios. No estudo em questão, os distúrbios respiratórios se revelaram preditores robustos de perda cognitiva leve e demência. Uma possível explicação seria a perda progressiva de força muscular respiratória e massa muscular esquelética em mulheres, sobretudo após a menopausa, levando a perdas cognitivas decorrentes da hipóxia.(23-25)Dentre os possíveis mecanismos subjacentes, destaca-se a queda dos níveis circulantes de hormônios, como a testosterona, que ocorre de forma acentuada em mulheres entre 20 e 45 anos de idade.(26,27)A testosterona é um hormônio anabólico responsável pela síntese proteica no músculo esquelético, que age também na regeneração muscular.(28)
A presença de comorbidades associadas ao envelhecimento, como obesidade, diabetes mellitus , hipertensão arterial sistêmica e a fragilidade, dificulta a investigação dos mecanismos responsáveis pelos efeitos da hipoxemia sobre a função cognitiva feminina, com base em amostras como a utilizada neste estudo.(29)Entretanto, o envolvimento de alterações no córtex pré-frontal foi sugerido por Beebe et al.(30)Acredita-se que o estresse oxidativo resulte em desequilíbrio homeostático e alterações neuronais em regiões específicas, especialmente no córtex pré-frontal, levando à desregulação do sistema executivo e ao consequente declínio das habilidades cognitivas primárias.(29)
Na amostra analisada, a qualidade de vida relacionada à saúde também foi pior em mulheres idosas com PFE reduzido do que naquelas com PFE preservado. A relação entre a qualidade de vida relacionada à saúde e a função respiratória foi investigada em um estudo realizado por Renwick et al.,(31)que revelou escores mais elevados em mulheres com função respiratória preservada. Tais achados podem ser explicados pela relação entre qualidade de vida relacionada à saúde e capacidade física, uma vez que a fraqueza da musculatura respiratória se traduz em dispneia e fadiga no desempenho das atividades da vida diária.
Curiosamente, este estudo não indicou diferenças de qualidade de vida relacionada à saúde e função cognitiva entre homens com PFE reduzido e preservado. Tais diferenças relacionadas ao sexo carecem de esclarecimento. Sabe-se que a perda de massa muscular se acelera em mulheres após a menopausa.(32)Além disso, mulheres apresentam mais indicadores de fragilidade e maior prevalência de fragilidade do que homens.(33)Os fatores mencionados contribuem para os efeitos negativos da perda de força muscular respiratória sobre o fluxo expiratório.
Este estudo tem algumas limitações. O desenho transversal impede inferências de causalidade. Além disso, a amostra analisada engloba diversos fatores de risco e faltam informações sobre o uso de medicações, o que impossibilita análises futuras dessas variáveis. Finalmente, o PFE é uma medida de força respiratória e não permite a determinação de volume e capacidade pulmonares.
Mulheres idosas com pico de fluxo expiratório reduzido apresentaram qualidade de vida relacionada à saúde e função cognitiva inferiores em relação àquelas com pico de fluxo expiratório preservado. Tais diferenças não foram observadas em idosos do sexo masculino.
São necessárias novas pesquisas para esclarecer os achados deste estudo, incluindo a avaliação mais precisa de possíveis variáveis de interferência, como uso de medicações e hábitos de vida.