Compartilhar

Associação entre enxaqueca, constipação intestinal e intolerância à lactose em adultos

Associação entre enxaqueca, constipação intestinal e intolerância à lactose em adultos

Autores:

Lorraine Lacerda Brasil Souza,
Luana de Oliveira Leite,
Carina Marcia Magalhães Nepomuceno

ARTIGO ORIGINAL

BrJP

versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192

BrJP, ahead of print Epub 18-Maio-2020

http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20200020

INTRODUÇÃO

A enxaqueca, ou migrânea, é uma forma de cefaleia primária e neurovascular. Quando uma crise dura mais de 72h, diz-se que o paciente está em estado enxaquecoso ou migranoso1. Apesar de a prevalência de enxaqueca em todo o mundo ser aproximadamente 11,5%, e no Brasil de 15%, sua fisiopatologia não é completamente compreendida e ela possui diversos fatores etiológicos, como estresse, alimentos com potencial alergênico, desequilíbrios neuroendócrinos e deficiências nutricionais2.

O trato gastrointestinal (TGI) tem sido sugerido como principal sistema responsável pelo controle metabólico do organismo, maior fornecedor de nutrientes e possível controlador metabólico de órgãos mais distantes. Durante a gestação, as células do cérebro e do intestino se desenvolvem quase ao mesmo tempo no sistema nervoso central e no sistema nervoso entérico e permanecem conectadas ao longo da vida via nervo vago por comunicação bidirecional, eixo intestino-cérebro, e por meio de diferentes mecanismos neurológicos, imunológicos e endócrinos. Assim como o cérebro pode modular o funcionamento do intestino, o inverso também ocorre. A partir do que é ingerido, o intestino pode influenciar no funcionamento cerebral3.

Quando em equilíbrio, a microbiota intestinal impede que micro-organismos potencialmente patogênicos nela presentes exerçam seus efeitos. Por outro lado, sob certas circunstâncias, quando há disbiose intestinal pode ocorrer a proliferação de patógenos, com consequente infecção bacteriana, inflamação e doença crônica, sugerindo então que muitas doenças humanas têm sua origem na composição da microbiota intestinal desequilibrada4. Portanto, alguns distúrbios do TGI relacionados ao desequilíbrio da microbiota do intestino, como a constipação intestinal e a intolerância à lactose, têm ganhado destaque na associação com a enxaqueca5,6.

A disbiose intestinal parece estar envolvida na patogênese da constipação intestinal crônica. A constipação intestinal, por sua vez, está relacionada com o estresse, desidratação, ingestão hídrica reduzida e diminuição do apetite. Além dessas condições, o esforço para evacuar pode causar cefaleia. Portanto, todos esses fatores contribuem para exacerbar as crises de migrânea7. Da mesma forma, o desequilíbrio da microbiota intestinal pode levar à intolerância à lactose. Assim, indivíduos intolerantes à lactose, como consequência da absorção das toxinas produzidas pela não digestão da lactose que geram inflamação na mucosa intestinal, podem apresentar outros sintomas não intestinais como dores musculares e articulares, alergias, cefaleia, entre outros, identificando-se estreita relação com a enxaqueca8.

Existem poucos estudos que descrevem a presença simultânea de cefaleias e constipação intestinal ou cefaleias e intolerância à lactose.

Dessa maneira, o presente estudo teve como objetivo avaliar a associação entre enxaqueca, intolerância à lactose e constipação intestinal em indivíduos com diagnóstico clínico de enxaqueca.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo de delineamento transversal, de natureza quantitativa, com abordagem analítico-descritiva, retrospectivo e de base de dados secundária, desenvolvido numa clínica escola de Farmácia, pertencente ao Departamento de Ciências da Vida (DCV), da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus I, Salvador, Bahia.

A coleta de dados foi realizada em agosto de 2019 por meio de prontuários de pacientes atendidos na primeira consulta, durante o período de abril de 2018 a agosto de 2019. Foram incluídos pacientes com idade igual ou superior a 20 anos e diagnóstico clínico de enxaqueca. Crianças, adolescentes, gestantes e nutrizes não foram incluídas.

Estagiários e nutricionistas treinados coletaram peso, altura e circunferência da cintura (CC) segundo as técnicas preconizadas na literatura9. Foi calculado o índice de massa corporal, (IMC=peso/altura2)10 dos pacientes de acordo com os critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS)11. A medida da CC foi analisada a partir dos pontos de corte sugeridos pela OMS12. O IMC e a CC foram utilizados para determinar o estado antropométrico. Foram coletadas informações referentes ao diagnóstico de intolerância à lactose, realizado por meio de teste sanguíneo. Quanto à enxaqueca, o diagnóstico clínico foi feito por neurologista como base nas diretrizes da International Headache Society13. Foi coletado o tempo de diagnóstico da doença em anos. O impacto da dor foi avaliado por meio dos questionários validados Migraine Disability Assessment (MIDAS) e Headache Impact Test-6 (HIT-6). O MIDAS quantifica, em número de dias perdidos durante um período de três meses, a incapacidade gerada pela cefaleia nas atividades sociais, produtivas e trabalhistas.

O escore é subdividido em graus; o grau I (zero a 5) significa nenhuma ou pouca incapacidade; o grau II (6 a 10), leve incapacidade; o grau III (11 a 20), moderada incapacidade; e o grau IV (≥21), intensa incapacidade14. O Headache Impact Test-6 (HIT-6) é composto por seis questões que avaliam a intensidade da dor, perdas de trabalho e atividades sociais, alterações cognitivas e de humor. O escore é subdividido em intervalos de pontuação: <50 pontos - pouco ou nenhum impacto; 50 a 55 pontos - algum impacto; 56 a 59 pontos -impacto substancial; ≥60 pontos - impacto muito intenso15.

A intensidade da dor foi avaliada pela escala analógica visual (EAV), também validada, na qual o paciente analisa a intensidade de seus sintomas em uma escala de zero a 10, sendo de zero a 2 dor leve; 3 a 7 dor moderada; 8 a 10 dor intensa16.

Foram considerados constipados, de acordo com os Critérios de Roma III17, os indivíduos que nos últimos três meses possuíam dois ou mais dos seguintes indicadores: 1- Esforço para evacuar em pelo menos 25% das vezes; 2- Fezes duras ou irregulares em pelo menos 25% das defecações; 3- Sensação de evacuação incompleta em pelo menos 25% das vezes; 4- Sensação de obstrução anorretal em pelo menos 25% das defecações; 5- Manobras manuais para facilitar a defecação em pelo menos 25% das vezes; 6- ≤3 defecações por semana.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo seres humanos da UNEB sob parecer número 3.255.056, em 10 de abril de 2019.

Análise estatística

Os dados foram inseridos em planilha do programa da Microsoft Office EXCEL versão 2013. Para as variáveis categóricas foram utilizadas as frequências absolutas (n) e as frequências relativas (%). Para as variáveis quantitativas, os resultados foram apresentados em médias e desvios padrão, considerando-se a distribuição normal dos dados. O teste Qui-quadrado de Pearson para variáveis categóricas e o Teste T de diferença de médias para as variáveis contínuas foram utilizados para detectar diferenças estatisticamente significativas com valor de p≤0,05. Foi utilizado o software estatístico SPSS Statistics versão 20.0.0 para a análise dos dados.

RESULTADOS

As características demográficas, antropométricas e de estilo de vida da população estudada são apresentadas na tabela 1. A maioria dos pacientes era do sexo feminino (88,7%) e sedentária (76,3%). A idade média para ambos os sexos foi de 40±12,32 anos, com variação entre 20 e 65 anos. De acordo com o IMC, 56,8% dos indivíduos tinham excesso de peso, 40% peso adequado, e 3,2% estavam abaixo do peso. A quantidade de pacientes que apresentou CC inadequada foi de 67%. A maior parte, 76,3% dos pacientes, era sedentária.

Tabela 1 Caracterização dos pacientes 

Variáveis nn %
Sexo
Feminino 86 88,7
Masculino 11 11,3
IMC
Abaixo do peso 3 3,2
Peso adequado 38 40,0
Excesso de peso 54 56,8
CC
Adequada 31 33,0
Inadequada 63 67,0
Atividade física
Sim 23 23,7
Não 74 76,3

IMC = índice de massa corporal; CC = circunferência da cintura.

Conforme a tabela 2, a despeito dos distúrbios do TGI, identificou-se prevalência de 32 e 23,7% de pacientes constipados e intolerantes à lactose, respectivamente. Segundo o IMC e a CC, os pacientes constipados apresentaram maior prevalência de excesso de peso (58,1%) e CC inadequada (70,0%), respectivamente. Segundo os mesmos critérios, os pacientes intolerantes à lactose também apresentaram maior prevalência de excesso de peso (65,2%) e de CC inadequada (68,2%). Valores de p não indicaram significância estatística.

Tabela 2 Prevalência total e segundo variáveis antropométricas de constipação intestinal e intolerância à lactose 

Total IMC Valor de p* CC Valor de p*
Sem excesso de peso Com excesso de peso Adequada Inadequada
% (n) % (n) % (n) % (n) % (n)
Constipação intestinal 32,0 (31) 41,9 (13) 58,1 (18) 0,86 30,0 (09) 70,0 (21) 0,67
Intolerância à lactose 23,7 (23) 34,8 (08) 65,2 (15) 0,35 31,8 (07) 68,2 (15) 0,89

IMC = índice de massa corporal; CC = circunferência da cintura;

*teste Qui-quadrado de Pearson.

O impacto, a partir dos questionários HIT-6 e MIDAS, a intensidade (EAV) e o tempo de diagnóstico de enxaqueca de acordo com a presença ou não de constipação intestinal ou intolerância à lactose são apresentados na tabela 3.

Tabela 3 Associação entre impacto, intensidade e tempo de diagnóstico de enxaqueca e os distúrbios gastrointestinais de constipação e intolerância à lactose 

Variáveis Total Constipação Valor de p* Intolerância à lactose Valor de p**
Sim Não Sim Não
HIT-6 (pontos) (n=82) 65,7±6,7 67,6±5,3 64,9±7,1 0,06 65,5±5,9 65,8±7,0 0,84
MIDAS (dias) (n=41) 31,5±25,1 36,7±26,3 29,5±24,9 0,44 28,0±22,5 32,2±25,9 0,67
EAV (n=79) 8,6±1,6 8,9±1,3 8,4±1,7 0,14 8,4±1,7 8.6±1,7 0,63
Tempo de enxaqueca (anos) (n=41) 14,9±10,9 14,2±10,5 15,4±11,4 0,71 19,9±14,2 13,9±10,0 0,32

Valores em média±desvio padrão; HIT-6 = Headache Impact Test-6; MIDAS = Migraine Disability Assessment; EAV = escala analógica visual;

*valor de p comparou valores de médias entre grupos de constipados e não constipados usando o teste t para amostras independentes;

**valor de p comparou valores de médias entre grupos de intolerantes à lactose e tolerantes à lactose usando o teste t para amostras independentes.

Nos pacientes em estado enxaquecoso, a média de impacto de ≥60 pontos no questionário HIT-6 e ≥21 dias de duração da crise no questionário MIDAS, assim como a média de intensidade da dor, 8,6±1,6, foram altos. O tempo de duração da enxaqueca, 14,9±10,9 anos, também foi alto. Não houve diferença estatisticamente significativa entre indivíduos constipados e não constipados quanto à intensidade da dor, impacto da dor e tempo de diagnóstico de enxaqueca, porém as médias de pontuação dos questionários de impacto (HIT-6, MIDAS) e intensidade da enxaqueca foram maiores nos indivíduos constipados quando comparados aos sem constipação intestinal. Destaca-se uma tendência no questionário HIT-6 em identificar associação entre o impacto da dor em pacientes constipados quando comparados aos sem constipação intestinal (p=0,06). Também não houve diferença estatisticamente significativa entre indivíduos intolerantes e tolerantes à lactose quanto aos fatores analisados relacionados à enxaqueca, embora o tempo de diagnóstico da migrânea tenha sido maior (19,9±14,2 anos) nos pacientes com intolerância à lactose em comparação aos tolerantes (13,9±10,0 anos).

DISCUSSÃO

A amostra foi composta em sua maioria por mulheres, o que pode ser explicado pelo fato de que a enxaqueca é mais presente no sexo feminino, pois as mulheres são 2,5 a 4 vezes mais afetadas do que os homens2,18. Além disso, 40 a 50% das mulheres têm ataques de enxaqueca antes, durante ou logo após a menstruação19. Num estudo populacional, 20-60% das mulheres referiram existir associação entre enxaqueca e menstruação20.

Os resultados demonstraram predomínio nos adultos, de modo similar a outros estudos sobre incidência e prevalência da enxaqueca18,21,22. Pacientes com enxaqueca possuem significativas limitações na qualidade de vida em relação à população saudável, quando comparada a outras condições crônicas, devido ao prejuízo no desempenho das atividades diárias pela dor. Segundo o Global Burden of Disease (GBD) 2015, a enxaqueca foi classificada como a terceira maior causa específica de incapacidade em todo o mundo em ambos os sexos e nos indivíduos com menos de 50 anos23. Quanto maior o número de dias com cefaleia, maior a diminuição substancial na qualidade de vida e aumento da depressão e ansiedade, pois é gerado um impacto significativo sobre a saúde mental e física24, o que pode ter ligação com o grande número de sedentários na amostra estudada.

O excesso de peso e a CC inadequada foram encontrados em mais da metade da amostra. A obesidade foi relatada como fator de risco para cefaleias em geral, assim como para a enxaqueca crônica especificamente25. O aumento do tecido adiposo corporal produz diretamente a indução de adipocinas e de diversas citocinas pró-inflamatórias, tais como IL-1, IL-6 e fator de necrose tumoral (TNF)α. Autores investigaram os níveis plasmáticos elevados de citocinas pró-inflamatórias em pacientes com enxaqueca. Assim, encontrou-se uma relação significativa entre a migrânea e diversas doenças inflamatórias, incluindo obesidade26. No primeiro estudo da população em geral que avaliou a associação entre enxaqueca e obesidade utilizando o IMC, avaliou-se 7601 participantes do National Health and Nutrition Examination Survey (NHANES), com idade variando entre 20 e 85 anos, identificando-se que aqueles com obesidade tiveram um aumento de 37% de chances de ter enxaqueca em comparação com aqueles com peso normal27. Até o momento, nenhum estudo longitudinal avaliou o efeito do ganho de peso na frequência da enxaqueca. No entanto, em estudo transversal demonstrou-se que o risco de enxaqueca em mulheres em idade reprodutiva aumentou substancialmente com o aumento da gravidade da obesidade28.

O presente estudo estimou a prevalência de duas doenças de origem gastrointestinal, a constipação intestinal e intolerância à lactose em pacientes com enxaqueca, encontrando prevalências de 32% de pacientes constipados e 23,7% de pacientes com intolerância à lactose. Distúrbios gastrointestinais parecem ser mais frequentes em pacientes com migrânea do que na população geral5. O ataque de enxaqueca é caracterizado por uma série complexa de sintomas que incluem efeitos adversos gastrointestinais, tais como náuseas, vômitos, constipação intestinal e dores abdominais29.

Além disso, indivíduos diagnosticados com constipação intestinal e intolerância à lactose apresentaram prevalências consideráveis de excesso de peso e obesidade abdominal, embora não tenha havido correlação estatística. Essas prevalências foram maiores nos pacientes intolerantes à lactose e constipados quando comparadas às prevalências do estado antropométrico na amostra geral. Dessa forma, é possível que o excesso de peso e a obesidade abdominal, além de serem fatores de risco para a migrânea25, também tornem os indivíduos mais predispostos a distúrbios gastrointestinais devido aos mecanismos inflamatórios gerados pelo excesso de tecido adiposo26.

A disbiose intestinal é um aspecto comum presente nas três doenças estudadas: enxaqueca, constipação intestinal e intolerância à lactose. O TGI é colonizado por trilhões de micro-organismos coletivamente denominados de microbiota intestinal. Sua composição é essencial para a manutenção de funções importantes como a homeostase intestinal, o peristaltismo, a integridade da mucosa intestinal, a proteção contra agentes patogênicos e ativação de respostas imunes30,31. O desequilíbrio da microbiota intestinal pode gerar intolerâncias e constipação intestinal, além de enxaqueca. Por outro lado, tanto a enxaqueca quanto as doenças gastrointestinais aumentam a permeabilidade do intestino, e, portanto, aumentam a atividade inflamatória sistêmica, criando um ciclo vicioso32.

Um estudo demonstrou que em 29 pacientes o número de dias de enxaqueca e sintomas associados - analisados por meio da aplicação de dois questionários, MIDAS e Henry Ford Hospital Headache Disability Inventory (HDI) - foram significativamente reduzidos após tratamento de 12 semanas com o uso de probiótico especialmente desenvolvido para a pesquisa33. Em outro estudo, 1.020 pacientes com migrânea foram tratados por um período de 8 semanas com o probiótico. Durante o período, o número de dias de dor reduziu de 2 a 1,4 dias por semana, enquanto a intensidade da enxaqueca diminuiu de 5,1 para 2,1 pontos (zero=sem dor a 6=dor muito intensa)21. Portanto, é plausível que a melhora da disbiose resulta em menor atividade inflamatória e, possivelmente, na redução da ativação do sistema trigeminovascular3.

Constatou-se que a média de impacto da enxaqueca foi elevada, independente do questionário utilizado, assim como a média de intensidade da dor. O tempo de diagnóstico da enxaqueca também foi alto. Um estudo evidenciou que a maioria dos pacientes sofria com enxaqueca por um período considerável: 64% por ≥10 anos, 20% por 5 a 10 anos e 16% por <5 anos22, semelhante à média de anos observada neste estudo. Quanto ao impacto da dor, outro estudo demonstrou intensa incapacidade com a aplicação do questionário MIDAS (≥21 pontos) para 40,4% da amostra34. Já em outro trabalho, a média de pontos encontrada na aplicação do HIT-6 foi de 53,4±8,7, identificando-se moderada incapacidade35, diferentemente do encontrado neste trabalho. No entanto, de forma similar a esta pesquisa, em estudo do Reino Unido o escore HIT-6 foi de 64,9 (intervalo de 48 a 78 pontos), correspondendo a um impacto grave22. A média de 7,1±1,9 foi evidenciada com a EAV numa população de 51 pacientes com enxaqueca, identificando média inferior à encontrada na amostra deste estudo36.

Foram identificadas maiores médias para todos os parâmetros da enxaqueca avaliados, exceto tempo de diagnóstico da doença, nos indivíduos constipados em relação àqueles que não têm constipação intestinal, embora os resultados não tenham sido estatisticamente significativos. Houve também maior tendência do questionário HIT-6 em identificar uma associação entre impacto da dor e constipação intestinal. Um estudo transversal avaliou a associação entre distúrbios gastrointestinais, enxaqueca e cefaleias tensionais. A amostra foi composta por indivíduos com excesso de peso e obesos com idade entre 18 e 60 anos. Do total da amostra, 11,5% foram diagnosticados com enxaqueca e destes, 11% foram classificados como constipados de acordo com os critérios de Roma III. A regressão logística multivariável aplicada no estudo demonstrou uma associação significativa entre constipação intestinal e enxaqueca37.

Um estudo envolvendo 96 crianças e adolescentes com enxaqueca evidenciou que 25% também apresentavam constipação intestinal e que todos esses pacientes constipados, após receberem tratamento para constipação intestinal com lactulose, hidróxido de magnésio ou macrogol, apresentaram melhora no estado migranoso, avaliado por meio de questionário7, sugerindo que a constipação intestinal pode desencadear enxaqueca ou que as duas doenças compartilham mecanismo fisiopatológico comum38.

Quanto à relação entre os parâmetros de enxaqueca avaliados e a intolerância à lactose, este trabalho não apresentou resultados consistentes, observando apenas a tendência a maior tempo de diagnóstico da enxaqueca nos pacientes intolerantes quando comparados aos tolerantes à lactose. Um estudo prospectivo investigou se pacientes com enxaqueca tinham evidências de intolerâncias alimentares - identificadas pelo teste de IgG, e se após a retirada dos alimentos causadores de intolerância, havia melhora da enxaqueca. Sessenta e um pacientes participaram do estudo e destes, 39 completaram os 2 meses da investigação. Da amostra, 85,2% era intolerante à lactose e quase todos os pacientes apresentaram múltiplas intolerâncias alimentares. Foi demonstrado que os ataques de enxaqueca podem estar relacionados a intolerâncias alimentares mediadas via IgG e que mudar a dieta, eliminando alimentos específicos, pode ser um tratamento potencialmente eficaz para a enxaqueca22. Sabe-se que as partículas de alimentos não digeridos e metabólitos bacterianos podem entrar na corrente sanguínea, como resultado do aumento da permeabilidade intestinal, e essas endotoxinas bacterianas podem atuar sobre o sistema trigeminovascular para desencadear, consequentemente, os ataques de enxaqueca39.

Neste estudo, a amostra de pacientes com enxaqueca foi constituída, em sua maioria, por indivíduos do sexo feminino, sedentários, com excesso de peso e obesidade abdominal. Foram encontradas prevalências consideráveis de constipação intestinal e intolerância à lactose, além de prevalências importantes de excesso de peso e obesidade abdominal nos indivíduos diagnosticados com esses dois distúrbios gastrointestinais, destacando-se que o excesso de tecido adiposo, além de ser um fator de risco para a migrânea, também torna os indivíduos mais predispostos a distúrbios do TGI. Houve prevalência de impacto incapacitante, independentemente do indicador utilizado, dor intensa e tempo de diagnóstico elevado da enxaqueca.

Embora tenham sido identificadas maiores médias para intensidade e impacto da dor da enxaqueca nos indivíduos constipados em relação àqueles que não têm constipação intestinal, além de tempo de diagnóstico maior nos indivíduos com intolerância à lactose quando comparados àqueles tolerantes, não houve associação estatística entre a enxaqueca, a constipação intestinal e a intolerância à lactose.

Este é um estudo transversal, desse modo há limitações quanto à identificação das relações de causa e efeito, devendo-se também considerar que se a amostra fosse maior, seria possível a realização de análises inferenciais de associação estatística. Além disso, há escassez de estudos para comparar a associação da enxaqueca com os distúrbios do TGI analisados. Contudo, essas limitações não comprometem a qualidade deste estudo e nem as observações encontradas. Faz-se necessária a elaboração de mais estudos que elucidem as relações entre enxaqueca e distúrbios do TGI, contribuindo com novas formas terapêuticas para a migrânea, além de auxiliar na sua prevenção.

REFERÊNCIAS

1 Machado J, Barros J, Palmeira M. Enxaqueca: fisiopatogenia, clínica e tratamento. Rev Port Clin Geral. 2006;22:461-70.
2 Queiroz LP, Silva Junior AA. The prevalence and impact of headache in Brazil. Headache. 2015;55(Suppl 1):32-8.
3 Hindiyeh N, Aurora SK. What the gut can teach us about migraine. Curr Pain Headache Rep. 2015;19(7):33.
4 Dinan TG, Cryan JF. The microbiome-gut-brain axis in health and disease. Gastroenterol Clin North Am. 2017;46(1):77-89.
5 van Hemert S, Breedveld AC, Rovers JM, Vermeinden JP, Witteman BJ, Smits MG, et al. Migraine associated with gastrointestinal disorders: review of the literature and clinical implications. Front Neurol. 2014;5:241.
6 Aamodt AH, Stovner LJ, Hagen K, Zwart JA. Comorbidity of headache and gastrointestinal complaints. The head-HUNT Study. Cephalalgia. 2008;28(2):144-51.
7 Park MN, Choi MG, You SJ. The relationship between primary headache and constipation in children and adolescents. Korean J Pediatr. 2015;58(2):60-3.
8 Mattar R, Mazo DF. Intolerância à lactose: mudança de paradigmas com a biologia molecular.. Rev Assoc Med Bras. 2010;56(2):230-6.
9 Ministério da Saúde. Antropometria: como pesar e medir. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.
10 Cronk CE, Roche AF. Race- and sex-specific reference data for triceps and subscapular skinfolds and weight/stature. Am J Clin Nutr. 1982;35(2):347-57.
11 Organização Mundial da Saúde. Life in the 21st century a vision for all. Geneva: WHO; 1998. 61-111p.
12 Organização Mundial da Saúde. Obesity: preventing and managing the global epidemic. Geneva: WHO; 1997.
13 Society HCCotIH. Headache Classification Committee of the International Headache Society (IHS) the international classification of headache disorders, 3rd ed. Cephalalgia. 2018;38(1):1-211.
14 Stewart WF, Lipton RB, Kolodner KB, Sawyer J, Lee C, Liberman JN. Validity of the Migraine Disability Assessment (MIDAS) score in comparison to a diary-based measure in a population sample of migraine sufferers. Pain. 2000;88(1):41-52.
15 Kosinski M, Bayliss MS, Bjorner JB, Ware JE Jr, Garber WH, Batenhorst A, et al. A six-item short-form survey for measuring headache impact: the HIT-6. Qual Life Res. 2003;12(8):963-74.
16 Jensen MP, Karoly P, Braver S. The measurement of clinical pain intensity: a comparison of six methods. Pain. 1986;27(1):117-26.
17 Wong RK, Palsson OS, Turner MJ, Levy RL, Feld AD, von Korff M, et al. Inability of the Rome III criteria to distinguish functional constipation from constipation-subtype irritable bowel syndrome. Am J Gastroenterol. 2010;105(10):2228-34.
18 Merikangas KR. Contributions of epidemiology to our understanding of migraine. Headache. 2013;53(2):230-46.
19 Pinkerman B, Holroyd K. Menstrual and nonmenstrual migraines differ in women with menstrually-related migraine. Cephalalgia. 2010;30(10):1187-94.
20 Martin VT, Lipton RB. Epidemiology and biology of menstrual migraine. Headache. 2008;48(Suppl 3):S124-30.
21 Straube A, Müller H, Stiegelbauer V, Frauwallner A. [Migraine prophylaxis with a probiotic. Results of an uncontrolled observational study with 1,020 patients]. MMW-Fortschr Med. 2018;160(Suppl 5):16-21. German.
22 Rees T, Watson D, Lipscombe S, Speight H, Cousins P, Hardman G, et al. A prospective audit of food intolerance among migraine patients in primary care clinical practice. Headache Care. 2005;2(1):11-4.
23 Global, regional, and national incidence, prevalence, and years lived with disability for 328 diseases and injuries for 195 countries, 1990-2016: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2016. Lancet. 2016;390(10100):1211-59.
24 Ruscheweyh R, Müller M, Blum B, Straube A. Correlation of headache frequency and psychosocial impairment in migraine: a cross-sectional study. Headache. 2014;54(5):861-71.
25 Chai NC, Scher AI, Moghekar A, Bond DS, Peterlin BL. Obesity and headache: part I--a systematic review of the epidemiology of obesity and headache. Headache. 2014;54(2):219-34.
26 Peterlin BL, Rapoport AM, Kurth T. Migraine and obesity: epidemiology, mechanisms, and implications. Headache. 2010;50(4):631-48.
27 Ford ES, Li C, Pearson WS, Zhao G, Strine TW, Mokdad AH. Body mass index and headaches: findings from a national sample of US adults. Cephalalgia. 2008;28(12):1270-6.
28 Vo M, Ainalem A, Qiu C, Peterlin BL, Aurora SK, Williams MA. Body mass index and adult weight gain among reproductive age women with migraine. Headache. 2011;51(4):559-69.
29 Blau JN. Migraine: theories of pathogenesis. Lancet. 1992;339(8803):1202-7.
30 Marchesi J, Shanahan F. The normal intestinal microbiota. Curr Opin Infect Dis. 2007;20(5):508-13.
31 Li D, Wang P, Wang P, Hu X, Chen F. The gut microbiota: a treasure for human health. Biotechnol Adv. 2016;34(7):1210-24.
32 Spahis S, Delvin E, Borys JM, Levy E. Oxidative stress as a critical factor in nonalcoholic fatty liver disease pathogenesis. Antioxid Redox Signal. 2017;26(10):519-41.
33 de Roos NM, Giezenaar CG, Rovers JM, Witteman BJ, Smits MG, van Hemert S. The effects of the multispecies probiotic mixture Ecologic Barrier on migraine: results of an open-label pilot study. Benef Microbes. 2015;6(5):641-6.
34 D'Amico D, Mosconi P, Genco S, Usai S, Prudenzano AM, Grazzi L, et al. The Migraine Disability Assessment (MIDAS) questionnaire: translation and reliability of the Italian version. Cephalalgia. 2001;21(10):947-52.
35 Shin HE, Park JW, Kim YI, Lee KS. Headache Impact Test-6 (HIT-6) scores for migraine patients: their relation to disability as measured from a headache diary. J Clin Neurol. 2008;4(4):158-63.
36 Constantinides V, Anagnostou E, Bougea A, Paraskevas G, Kapaki E, Evdokimidis I, et al. Migraine and tension-type headache triggers in a Greek population. Arq Neuropsiquiatr. 2015;73(8):665-9.
37 Martami F, Ghorbani Z, Abolhasani M, Togha M, Meysamie A, Sharifi A, et al. Comorbidity of gastrointestinal disorders, migraine, and tension-type headache: a cross-sectional study in Iran. Neurol Sci. 2018;39(1):63-70.
38 Cámara-Lemarroy CR, Rodriguez-Gutierrez R, Monreal-Robles R, Marfil-Rivera A. Gastrointestinal disorders associated with migraine: a comprehensive review. World J Gastroenterol. 2016;22(36):8149-60.
39 Aydinlar EI, Dikmen PY, Tiftikci A, Saruc M, Aksu M, Gunsoy HG, et al. IgG-based elimination diet in migraine plus irritable bowel syndrome. Headache. 2013;53(3):514-25.