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Associação entre maus-tratos familiares e excesso de peso e de gordura em escolares do município do Rio de Janeiro/RJ, Brasil

Associação entre maus-tratos familiares e excesso de peso e de gordura em escolares do município do Rio de Janeiro/RJ, Brasil

Autores:

Ana Maria Vieira Lourenço da Silva,
Maria Helena Hasselmann

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.12 Rio de Janeiro dez. 2018

http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320182312.28032016

Abstract

This study sought to investigate the relationship between domestic maltreatment and excess weight, body fat and abdominal fat among adolescents from the public schools in the city of Rio de Janeiro – Brazil. It involved a cross-sectional study using data from the Risk Factor Surveillance System and Protection of Health of Adolescents, held in 2007 by the municipality of Rio de Janeiro. The sample consisted of 1628 students aged 13 to 19 years, of both sexes, in the 9th year of school. Excess weight, body fat and abdominal fat (outcome variables) and domestic maltreatment (physical and verbal aggression) were evaluated. The association between domestic maltreatment and outcome variables was conducted via logistic regression models. Domestic maltreatment showed an inverse relationship to excess weight and fat for girls, but only physical aggression was significantly associated with excess weight (OR = 0.499, CI = 0.212 to 0.951). As for the boys, the results pointed to excess weight and fat but without statistical significance. Health policies must consider the differences between the genders in coping with experiences of violence that may influence the health and well-being of adolescents.

Key words: Domestic violence; Adolescent; Obesity; Abdominal fat; Adiposity

Introdução

O excesso de peso na infância e na adolescência é um problema de saúde pública que vem crescendo na maioria dos países do mundo1. No Brasil, inquéritos populacionais também têm detectado esse aumento em adolescentes2,3, o que causa grande preocupação uma vez que o excesso de peso predispõe às doenças cardiovasculares como hipertensão4, dislipidemia5, alterações no metabolismo de glicose6, bem como a ocorrência de síndrome metabólica7 que muitas vezes se inicia na infância e na adolescência8.

Em paralelo a isso, a violência familiar vem se tornando uma questão social relevante9 e as crianças e os adolescentes são apontados como vítimas que apresentam grande dificuldade de revelar os abusos sofridos10. São inúmeras as consequências da violência familiar na saúde dos adolescentes, entre elas, podem-se citar as psicológicas (depressão e ansiedade), as comportamentais, as relativas ao processo de aprendizagem, aquelas relacionadas aos resultados negativos de saúde física11, assim como as ligadas ao abuso de substâncias ilícitas e ao risco de doenças sexualmente transmissíveis12.

Investigar a violência familiar como um possível fator associado ao excesso de peso (sobrepeso e obesidade) em adolescentes é algo recente e pouco explorado13. A maioria da literatura sobre o tema se refere a estudos realizados em outros países, no Brasil somente duas investigações foram identificadas14,15. Ressalta-se que grande parte das pesquisas utiliza o índice de massa corporal (IMC) como o método de classificação do sobrepeso e da obesidade16. Apesar do IMC ser considerado como uma medida importante para se detectar a ocorrência de sobrepeso e obesidade, não distingue os diferentes tipos de tecidos (gordura, osso ou músculo) em relação aos seus excessos ou à sua distribuição corpórea4. Nesse sentido, pesquisas que utilizam outras técnicas para identificação do excesso de peso e de gordura como a estimativa de gordura corporal por meio das dobras cutâneas para classificar o excesso de gordura corporal17 e a razão cintura/altura (RCA) para a gordura abdominal18 são bem-vindas. Os estudos existentes sobre o assunto apontam para uma associação entre os maus-tratos na infância e a ocorrência de excesso de peso em adultos, mas quando se avalia adolescentes esta relação parece não acontecer. Ressalta-se ainda que a literatura mostra resultados contraditórios – associação10 e não associação16 – entre os maus-tratos e o excesso de peso.

Portanto, explorar a associação entre violência na família e a ocorrência do excesso de peso e de gordura é de suma importância para a construção de um novo olhar dos profissionais de saúde, de educação e do público em geral para o problema4. O objetivo deste estudo foi investigar a associação entre os maus-tratos familiares e o excesso de peso, de gordura corporal e de gordura abdominal em adolescentes.

Métodos

Fonte de dados

Trata-se de um estudo transversal com dados secundários extraídos do inquérito – Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção à Saúde de Adolescentes – realizado em 2007 com escolares que cursavam o 9˚ ano do ensino fundamental de escolas públicas do município do Rio de Janeiro. Este sistema de vigilância foi inspirado no sistema de vigilância europeu, Health Behaviour in School-aged Children (HBSC), e no sistema americano, Youth Risk Behavior Surveillance System (YRBSS) do Center for Disease Control and Prevention (CDC). Mais informações sobre conceito e implementação do sistema de vigilância encontram-se disponíveis em outra publicação19.

No ano de 2007, a rede pública possuía 1082 escolas e 743.416 alunos distribuídos por 10 Coordenadorias Regionais de Educação (CRE). Deste total, 365 escolas possuíam 43.099 alunos matriculados no último ano do ensino fundamental, representando cerca de 6% do total de matrículas. Para a realização deste inquérito foi adotado um desenho amostral complexo, que teve por objetivo selecionar dados representativos correspondentes aos alunos matriculados no nono ano do ensino fundamental das escolas públicas municipais do Rio de Janeiro. Como no ano de 2007, os inquéritos municipais investigavam cerca de 1000 a 1800 estudantes, e considerando os recursos disponíveis, optou-se por selecionar 1700 estudantes, de 170 turmas e de 136 escolas. As escolas foram divididas em 10 estratos de acordo com as regiões (CRE) e, como havia duas unidades de amostragem (turmas e alunos), foram realizados sorteios em dois estágios: 1) dentro de cada estrato natural (CRE), foi feito o sorteio das turmas com probabilidade proporcional ao tamanho delas, conforme o número de alunos contidos em cada turma, e 2) os alunos elegíveis de cada turma selecionada foram sorteados por meio de amostra aleatória simples, com tamanho pré-definido de 10 alunos por turma. Os alunos elegíveis que concordaram em participar do inquérito, tinham que apresentar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) assinado pelos responsáveis, que estar presentes no dia da coleta de dados na escola e responder ao questionário e participar da avaliação antropométrica. Destes alunos, 52 não foram avaliados por não estarem presentes no dia agendado para coleta de dados ou por não apresentarem o TCLE assinado pelos responsáveis, totalizando 1648 escolares20. Foram excluídos 16 adolescentes por não informarem o sexo e a idade20 e 4 alunos por apresentarem idade superior a 19 anos, uma vez que este estudo aborda escolares na fase da adolescência21. Assim, a amostra final compreendeu 1628 adolescentes.

Empregou-se um questionário autoaplicável e anônimo com os alunos do inquérito. Para a realização deste estudo foram utilizadas do questionário as questões/informações relativas às características sociodemográficas; à atividade física; aos hábitos sedentários; ao consumo de cigarros, álcool e outras drogas; à segurança; à imagem corporal; e às relações com a família, amigos e escola.

O estudo foi aprovado e autorizado pelo Comitê de ética da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro.

Variáveis do estudo

Desfechos – excesso de peso, excesso de gordura corporal e excesso de gordura abdominal

As medidas antropométricas foram utilizadas na aferição do excesso de peso, do excesso de gordura corporal e do excesso de gordura abdominal. Os pesquisadores (antropometristas) foram treinados e suas medidas foram padronizadas segundo as técnicas de Lohman22 e Habitch23. Foram utilizados os seguintes equipamentos para a mensuração das medidas: 1) balança solar portátil (TANITA®) com capacidade de 150 kg e precisão de 0,2 kg para o peso corporal; 2) estadiômetro portátil (AlturExata®) com escala principal em centímetros e precisão de 0,1 cm para a altura; 3) adipômetro Cescorf com precisão de 0,1 cm para as dobras cutâneas tricipital e subescapular; e 4) fita métrica elástica com precisão de 0,1mm para o perímetro abdominal (circunferência de cintura).

A classificação do excesso de peso foi realizada por meio do IMC – peso/altura2(kg/m2) – a partir de critérios de percentis segundo sexo e faixa etária estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS)24 para sobrepeso e obesidade. Foram considerados com excesso de peso os adolescentes com IMC > percentil 85.

Para se obter o excesso de gordura corporal, primeiramente foi calculado o percentual de gordura corporal por meio da fórmula proposta por Slaughter et al.25 para dobras cutâneas tricipital e subescapular segundo o sexo, a maturação sexual e raça. Posteriormente, a estimativa de gordura corporal foi classificada pelos critérios de Lohman26 em para excesso de gordura corporal nas meninas que apresentassem % de gordura corporal > 25 e nos meninos > 20.

A gordura abdominal foi avaliada pela razão cintura/altura (RCA). Este índice foi calculado como a proporção entre o perímetro abdominal (cm) e a altura (cm). Os adolescentes que apresentavam RCA > 0,5 foram classificados como tendo excesso de gordura abdominal4.

Exposições – agressão física e verbal

No presente estudo considerou-se como maus-tratos familiares a agressão física e verbal. A agressão verbal foi avaliada por meio da questão: “Nos últimos 30 dias, com que frequência sua família te esculachou (tratou muito mal)?” e apresentava cinco opções de respostas, tendo como referência os últimos 30 dias a saber: (a) nenhuma vez; (b) raramente; (c) às vezes; (d) na maior parte das vezes; e (e) sempre. A agressão física foi avaliada pela questão “Nos últimos 30 dias, quantas vezes você foi agredido fisicamente por um adulto da família?” e as respostas variavam conforme o número de vezes com referência aos últimos 30 dias: (a) Nenhuma vez, (b) 1 (uma) vez, (c) 2 ou 3 vezes, (d) 4 ou 5 vezes, (e) 6 ou 7 vezes, (f) 8 ou 9 vezes, (g) 10 ou 11 vezes, e (h) 12 vezes ou mais. Para análise estatística, a agressão verbal foi categorizada como: presente (raramente a sempre) e ausente (nenhuma vez) e a agressão física também foi classificada como: presente (uma vez ou mais) e ausente (nenhuma vez).

Foi realizado estudo de confiabilidade com 208 estudantes (12,4% do total estudado), pertencentes a 25 turmas de todas CREs. O questionário foi reaplicado 7 a 15 dias após a primeira visita à escola, e a confiabilidade avaliada por meio de estimativa de kappa (k), k ajustada para a prevalência (quando a prevalência foi superior a 80% e inferior a 20%) e k com ponderação quadrática (para variáveis ordinais). As perguntas relativas à agressão física e à verbal estão compreendidas nos módulos pertinentes à segurança e à relação com a família, amigos e escola e apresentaram nível de confiabilidade, respectivamente, de 0,72 (bom) e de 0,54 (razoável)20.

Covariáveis

Foram usadas informações socioeconômicas e características dos adolescentes como idade em anos, sexo, raça/cor – negra e não negra –, escolaridade do chefe de família – classificada em ensino fundamental incompleto, fundamental completo e médio completo – e escores de bens – construído pelo somatório simples de itens presentes em domicílio (telefone fixo, aparelho DVD, forno de micro-ondas, computador, carro, moto, empregada doméstica em pelo menos cinco dias da semana), classificados por pesos que variaram de 0 (nenhum bem ou serviço) a 7 (todos os bens e serviço previsto) e posteriormente agrupados por terços da distribuição observada na amostra em alto (possui 5 a 7 bens), médio (possui 3 a 4 bens) e baixo (possui nenhum até 2 bens).

As atividades sedentárias foram avaliadas em função do tempo gasto assistindo TV ou jogando videogame ou usando o computador em um dia de semana comum. Elas foram categorizadas de acordo com a recomendação da American Academy of Pediatrics27 em: ≤ 2 horas/dia (não sedentários) e > 2 horas/dia (sedentários);

A Atividade física foi analisada com base nas informações referentes à prática de atividades de lazer (orientada ou livre), aos deslocamentos ativos para a escola (caminhada e uso da bicicleta) e as atividades realizadas na escola (com e sem o professor) nos sete dias que antecederam o estudo, somados o tempo em minutos. Os escolares foram classificados em ativos (> 300 minutos/semana) e insuficientemente ativos (≤ 300 minutos/semana)28;

As covariáveis construídas com base nas perguntas relativas à percepção do escolar sobre a relação com a família e com a escola; sobre o consumo de cigarros, álcool e outras drogas e sobre a imagem corporal foram: 1) Família ciente do tempo livre – “Nos últimos 30 dias, com que frequência seus pais ou responsáveis sabiam realmente o que você estava fazendo em seu tempo livre?” – não (nenhuma) e sim (raramente a sempre); 2) Pais cientes de faltar aula – “Nos últimos 30 dias, em quantos dias você faltou às aulas ou à escola sem permissão dos seus pais ou responsáveis?” – não (nenhuma) e sim (uma ou mais vezes); 3) Elogiado pela família – “Nos últimos 30 dias, com que frequência sua família te elogiou?” – não (nenhuma vez) e sim (raramente a sempre); 4) Pais se importam com o uso de fumo/álcool/droga – bebida alcóolica (“Se você chegasse em casa bêbedo, qual seria a reação da família se ela ficasse sabendo?”), fumo (“Se você fumasse cigarros, qual seria a reação da família se ela ficasse sabendo?”) e maconha (“Se você fumasse maconha, qual seria a reação da família se ela ficasse sabendo?”) – não se importam e se importam; 5) Diálogo com o professor – “Nos últimos 30 dias, com que frequência você conversou com seus professores sobre assuntos que não tinham relação com a aula? – não (nenhuma vez) e sim (raramente a sempre); 6) Boa relação com colega – Nos últimos 30 dias, com que frequência os colegas de escola trataram você bem e/ou foram legais com você?” – não (Nenhuma vez) e sim (raramente a sempre); 7) Descrição do peso – “Como você descreve seu corpo?” – abaixo, peso certo ou acima; 8) Realização de algum procedimento em relação ao peso – “O que você está fazendo em relação ao seu peso?” – não (não estou fazendo nada) e sim (estou tentando perder, ganhar ou manter o mesmo peso); 9) Satisfação com o peso – “Nos últimos 30 dias, com que frequência você se sentiu feliz com seu corpo” – satisfeito (às vezes até sempre) e insatisfeito (nenhuma vez ou raramente); 10) Realização de algum procedimento em relação ao peso – “Nos últimos 30 dias, você vomitou ou tomou laxantes para perder peso ou evitar ganhar peso?” – não e sim; e 11) Realização de práticas extremas para controle do peso – “Nos últimos 30 dias, você tomou algum comprimido, líquido ou pó para perder ou manter peso sem acompanhamento médico?” – não e sim.

Análises estatísticas

Em primeiro lugar, foram realizadas análises univariadas, determinando frequências (prevalências) para variáveis categóricas, e medida-sumário (média e erro padrão) para variáveis numéricas. Desde que os achados anteriores sugeriram possíveis diferenças de sexo na associação entre maus-tratos e o excesso de peso29, todas as análises foram elaboradas para sexo masculino e sexo feminino separadamente. Para as variáveis categóricas utilizou-se o teste Chi-quadrado e para as variáveis numéricas, o teste t de Student não pareado.

Foram realizadas análises de regressão logística univariada (bruta) entre os desfechos, as variáveis de exposição e as covariáveis de interesse. Para se verificar a associação entre os maus-tratos e os desfechos, foram criados modelos logísticos multivariados (ajustados) entre cada variável de exposição (maus-tratos familiares) e os desfechos (excesso de peso, excesso de gordura corporal e excesso de gordura abdominal) ajustados pelas covariáveis que apresentassem p-valor < 0,20 nas análises brutas. Considerou-se o p-valor < 0,05 como critério de significância estatística para permanência de variáveis nos modelos logísticos multivariados. Estes modelos foram diagnosticados pelo teste de Hosmer-Lemeshow que concebeu como modelo bem ajustado aquele que apresentasse p-valor > 0,05. Os odds ratios (OR) de cada variável de exposição nos modelos logísticos multivariados foram apresentados, além dos respectivos intervalos de 95% de confiança e p-valores.

Como o desenho da amostra era do tipo complexo, todos os dados de prevalência, OR, e intervalos de confiança de 95% foram ponderados. Os tamanhos das amostras foram relatados em sua forma não ponderada.

As análises estatísticas foram realizadas com o auxílio dos Programas SPSS, versão 21.0 e Stata 13.1 para Mac.

Resultados

A amostra do estudo compreendeu 1628 adolescentes, sendo 730 (44,2%) meninos e 898 (55,8%) meninas, com idade média de 14,93 anos (EP = 0,05). A Tabela 1 descreve as características da população estudada. Entre elas, destaca-se que aproximadamente 27% deles eram insatisfeitos com o seu peso, sendo esta insatisfação quase duas vezes maior para as meninas (p-valor < 0,001); que entre os adolescentes estudados mais de 50% deles estavam realizando algum procedimento para modificar o seu peso, sendo mais presente para o sexo feminino (p-valor = 0,030); e que as meninas também eram duas vezes mais propensas a realizar práticas extremas para controle de peso (p-valor = 0,003). Foi notado que cerca de 18% deles apresentavam excesso de peso, 8% gordura abdominal aumentada e 36,5% excesso de gordura corporal. A gordura corporal foi a única medida a apresentar distinção entre os sexos – maior percentual de gordura para as meninas (p-valor = 0,002). Com relação aos maus-tratos familiares, 36% dos estudantes apresentaram agressão verbal e 8,5% com a física. Ao se fazer a distinção por sexo no que tange aos maus-tratos, observou-se uma maior prevalência de agressão física (10,2% versus 6,4%, p-valor < 0,001) e verbal (40,6% versus 29,7%, p-valor = 0,005) para as meninas.

Tabela 1 Características, informações ambientais, demográficas e sociais, segundo população total e sexo. Rede Pública Municipal do Rio de Janeiro, 2007. 

Variáveis categóricas População total Sexo masculino Sexo feminino

N % N % N %
Cor/raça 1612 100 721 44,1 891 55,9
Negra 240 14,7 121 16,3 119 13,4
Não negra 1372 85,3 600 83,7 772 86,6
Escores de bens* 1601 100 721 44,4 880 55,6
Baixo poder aquisitivo 545 33,8 224 30,3 321 36,6
Médio poder aquisitivo 747 46,7 339 47,1 408 46,4
Alto poder aquisitivo 309 19,5 158 22,6 151 16,9
Escolaridade do chefe da família 1490 100 672 44,4 818 55,6
Fundamental incompleto 690 46 292 42,9 398 48,5
Fundamental completo 490 33,1 226 34 264 36,3
Médio completo 310 20,9 154 23,1 156 19,2
Elogiado pela família 1598 100 713 44 885 56
Não 246 15,6 115 16,3 131 15
Sim 1352 84,4 593 83,7 754 85
Família ciente do tempo livre* 1596 100 708 43,7 888 56,3
Não 389 24,6 195 27,9 194 22
Sim 1207 75,4 513 72,1 694 78
Pais ciente de faltar aula 1599 100 711 43,8 888 56,2
Não 1157 72,6 519 73,3 638 72
Sim 442 27,4 192 26,7 250 28
Pais se importam com uso de fumo/álcool/droga 1624 100 728 44,2 896 55,8
Não se importam 117 7,4 56 7,8 61 7,2
Se importam 1507 92,6 672 92,2 835 92,8
Boa relação com colega* 1596 100 711 43,9 885 56,1
Não 91 5,7 58 8,3 33 3,7
Sim 1505 94,3 653 91,7 852 96,3
Diálogo com o professor 1613 100 720 44 893 56
Não 921 57,3 408 57 513 57,5
Sim 692 42,7 312 43 380 42,4
Satisfação com o peso* 1596 100 711 43,9 885 56,1
Satisfeito 1162 72,7 560 78,2 602 68,5
Insatisfeito 434 27,3 151 21,8 283 31,5
Descrição do peso* 1608 100 718 44 890 56
Peso certo 704 43,8 353 49,3 351 39,5
Abaixo do peso 375 23,2 223 30,9 152 17,2
Acima do peso 529 33 142 19,8 387 43,3
Realização de algum procedimento em relação ao peso* 1615 100 721 44 894 56
Não 642 39,5 309 42,5 333 37,2
Sim 973 60,5 412 57,5 561 62,8
Realização de práticas extremas para controle do peso* 1606 100 716 43,9 890 56,1
Não 1512 94 688 96,1 824 92,4
Sim 94 6 28 3,94 66 7,6
Atividade física* 1578 100 697 43,6 881 56,4
Ativo 508 31,7 323 46,3 185 20,5
Insuficientemente ativo 1070 68,3 374 56,7 696 79,5
Atividades Sedentárias 1610 100 717 43,9 893 56,1
Não sedentário 163 10,1 67 9,1 96 10,9
Sedentário 1447 89,9 650 90,9 797 89,1
Excesso de gordura abdominal 1628 100 730 44,2 898 55,8
Sem excesso 1496 91,9 681 93,2 815 90,9
Com excesso 132 8,1 49 6,8 83 9,1
Excesso de peso 1594 100 709 43,8 885 56,2
Sem excesso 1314 82,3 593 83,5 721 81,4
Com excesso 280 17,7 116 16,5 164 18,6
Excesso de gordura corporal* 1619 100 721 43,9 898 56,1
Sem excesso 1025 63,5 491 68 534 60
Com excesso 594 36,5 230 32 364 40
Agressão física* 1621 100 776 44,2 895 55,8
Não 1485 91,5 679 93,6 806 89,8
Sim 136 8,5 47 6,4 89 10,2
Agressão verbal* 1600 100 713 43,9 887 56,1
Não 1029 64,2 500 70,3 529 59,4
Sim 571 35,8 213 29,7 358 40,6

Teste qui-quadrado de yale. *p-valor < 0,05

A Tabela 2 apresenta as análises entre as variáveis e os diferentes desfechos para o sexo feminino. Houve diferença estatisticamente significativa para escolaridade do chefe de família (p-valor = 0,034) e escores de bens (p-valor = 0,035) com relação ao excesso de peso. As meninas apresentavam cerca de 0,6 menos chances de ter excesso de peso quando tinham baixo poder aquisitivo e chefe de família com baixa escolaridade. Já o excesso de gordura corporal e o excesso de gordura abdominal não apresentaram valores estatisticamente significativos entre as variáveis estudadas para o sexo feminino. Para os meninos (Tabela 3), as variáveis escores de bens (p-valor = 0,003) e ser elogiado pela família (p-valor = 0,013) apresentaram valores estatisticamente significativos para o excesso de gordura corporal. Os meninos de médio poder aquisitivo e que não eram elogiados pela família apresentavam aproximadamente 0,50 menos chance de ter excesso de gordura corporal. Com relação ao excesso de peso e à gordura abdominal não houveram valores estatisticamente significativos para os meninos.

Tabela 2 Regressão logística univariada entre os desfechos e as variáveis. Adolescentes do sexo feminino. Rede Pública Municipal do Rio de Janeiro, 2007. 

Variáveis EP EG EGA

OR IC OR IC OR IC
Idade 0,930 0,793-1,090 1,034 0,913-1,171 0,942 0,760-1,166
Cor/raça
Negra 0,916 0,522-1,609 0,790 0,519-1,204 0,969 0,464-2,021
Não negra 1 1 1
Escolaridade do chefe de família
Fundamental incompleto 0,598*** 0,369-0,970 0,777* 0,531-1,137 0,590** 0,328-1,061
Fundamental completo e médio incompleto 0,918 0,576-1,465 1,081 0,732-1,597 0,624* 0,336-1.161
Médio incompleto 1 1 1
Escores de bens
Baixo poder aquisitivo 0,582*** 0,346-0,980 1,098 0,728-1,566 1,053 0,488-2,272
Médio poder aquisitivo 0,632** 0,385-1,038 1,108 0,771-1,592 1,324 0,620-2,829
Alto poder aquisitivo 1 1 1
Elogiado pela família
Não 0,932 0,590-1,470 0,856 0,587-1,257 0,746 0,379-1,470
Sim 1 1 1
Família ciente do tempo livre
Não 1,159 0,807-1,665 0,730** 0,511-1,044 0,968 0,588-1,594
Sim 1 1 1
Pais cientes de faltar aula
Não 1,174 0,827-1,668 1,209* 0,908-1,608 1,117 0,681-1,831
Sim 1 1 1
Pais se importam com uso de álcool/fumo/drogas
Não se importam 0,909 0,461-1,791 0,962 0,592-1,563 0,910 0,349-2,369
Se importam 1 1 1
Boa relação com colega
Não 0,785 0,303-2,037 0,721 0,352-1,478 0,253* 0,033-1,917
Sim 1 1 1
Diálogo com o professor
Não 0,983 0,693-1,396 1,082 0,818-1,432 1,101 0,641-1,606
Sim 1 1 1
Satisfação com o peso
Insatisfeito 0,977 0,642-1,486 0,981 0,725-1,329 1,034 0,632-1,692
Satisfeito 1 1 1
Descrição do peso
Abaixo do peso 1,493* 0,985-2,264 1,193 0,813-1,752 1,208 0,605-2,413
Peso certo 1 1 1
Acima do peso 1,035 0,677-1,583 1,274* 0,922-1,761 1,115 0,664-1,872
Realização de alguma procedimento em relação ao peso
Sim 0,912 0,652-1,278 0,926 0,693-1,236 1,257 0,773-2,040
Não 1 1 1
Realização de práticas extremas para controle do peso
Sim 0,864 0,406-1,840 1,034 0,578-1,850 0,599 0,208-1,723
Não 1 1 1
Atividade física
Insuficientemente ativo 1,218 0,775-1,914 1,113 0,783-1,581 1,096 0,577-2,083
Ativo 1 1 1
Atividades sedentárias
Sedentário 0,926 0,556-1,542 1,038 0,664-1,623 0,969 0,455-2,065
Não sedentário 1 1 1
Agressão Física
Sim 0,415*** 0,196-0,875 0,690* 0,443-1,075 0,450* 0,158-1,279
Não 1 1 1
Agressão verbal
Sim 0,851 0,566-1,280 0,833 0,621-1,116 0,731 0,447-1,196
Não 1 1 1

* p-valor < 0,20, ** p-valor < 0,10, *** p-valor < 0,05. OR – Odds Ratios; IC –Intervalo de confiança; EP – Excesso de peso; EG – Excesso de gordura corporal; EGA – Excesso de gordura abdominal.

Tabela 3 Regressão logística univariada entre os desfechos e as variáveis. Adolescentes do sexo masculino. Rede Pública Municipal do Rio de Janeiro, 2007. 

Variáveis EP EG EGA

OR IC OR IC OR IC
Idade 1,012 0,859-1,193 0,968 0,837-1,119 0,948 0,736-1,222
Cor/raça
Negra 0,987 0,585-1,668 0,850 0,548-1,317 1,050 0,493-2,235
Não negra 1 1 1
Escolaridade do chefe de família
Fundamental incompleto 0,914 0,494-1,692 0,708* 0,451-1,111 1,160 0,449-2,653
Fundamental completo e médio incompleto 1,364 0,736-2,528 1,026 0,667-1,579 1,500 0,583-3,861
Médio incompleto 1 1 1
Escores de bens
Baixo poder aquisitivo 1,124 0,659-1,920 0,727* 0,486-1,087 0,757 0,356-1,610
Médio poder aquisitivo 0,935 0,563-1,554 0,550*** 0,369-0,819 0,610* 0,304-1,225
Alto poder aquisitivo 1 1 1
Elogiado pela família
Não 1,141 0,672-1,938 0,498*** 0,288-0,859 0,336** 0,099-1,134
Sim 1 1 1
Família ciente do tempo livre
Não 1,161 0,716-1,882 0,713** 0,485-1,049 0,878 0,446-1,728
Sim 1 1 1
Pais cientes de faltar aula
Não 0,828 0,550-1,245 0,984 0,682-1,419 0,936 0,496-1,767
Sim 1 1 1
Pais se importam com uso de álcool/fumo/drogas
Não se importam 0,836 0,382-1,832 0,846 0,480-1,492 1,368 0,520-3,598
Se importam 1 1 1
Boa relação com colega
Não 1,094 0,510-2,346 0,602* 0,322-1,123 0,511 0,114-2,296
Sim 1 1 1
Diálogo com o professor
Não 0,827 0,543-1,258 1,032 0,740-1,440 0,652* 0,351-1,211
Sim 1 1 1
Satisfação com o peso
Insatisfeito 1,150 0,723-1,830 1,152 0,765-1,737 1,133 0,576-2,228
Satisfeito 1 1 1
Descrição do peso
Abaixo do peso 0,956 0,605-1,512 0,927 0,648-1,326 0,927 0,453-1,896
Peso certo 1 1 1
Acima do peso 1,333 0,818-2,171 1,404* 0,915-2,152 1,824* 0,874-3,812
Realização de algum procedimento em relação ao peso
Sim 0,716* 0,461-1,114 1,125 0,803-1,575 1,240 0,642-2,393
Não 1 1 1
Realização de práticas extremas para controle do peso
Sim 0,543 0,168-1,756 0,534* 0,215-1,325 0,515 0,066-4,009
Não 1 1 1
Atividade física
Insuficientemente ativo 0,808 0,515-1,268 0,794* 0,576-1,095 0,716 0,383-1,339
Ativo 1 1 1
Atividades sedentárias
Sedentário 1,547 0,676-3,541 1,290 0,726-2,294 0,928 0,316-2,726
Não sedentário 1 1 1
Agressão Física
Sim 1,150 0,532-2,485 1,243 0,700-2,206 1,079 0,320-3,637
Não 1 1 1
Agressão verbal
Sim 1,234 0,813-1,873 1,174 0,794-1,736 1,146 0,598-2,194
Não 1 1 1

*p-valor < 0,20, ** p-valor < 0,10, *** p-valor < 0,05. OR – Odds Ratio; IC –Intervalo de confiança; EP – Excesso de peso; EG – Excesso de gordura corporal; EGA – Excesso de gordura abdominal.

A Tabela 4 mostra os resultados da análise de regressão logística multivariados para o sexo masculino entre os maus-tratos na família e os desfechos (excesso de peso, excesso de gordura corporal e excesso de gordura abdominal). Independentemente das diferentes variáveis que poderiam influenciar a relação entre os maus-tratos e os diferentes desfechos, verificou-se que, para os meninos, não houve associação significativa entre os dois tipos de maus-tratos e os desfechos, mas foi observado que, na presença deles, existe uma tendência de maior ocorrência de alteração na composição corporal convergindo para o excesso, apesar de tais associações não serem estatisticamente significativas.

Tabela 4 Modelos de regressão logística ajustada entre os maus-tratos familiares e os desfechos segundo o sexo. Rede Pública Municipal do Rio de Janeiro, 2007. 

Maus-tratos familiares EP EG EGA

OR IC OR IC OR IC
Sexo Feminino
Agressão Física 0,465*** 0,220-0,983 0,672* 0,416-1,086 0,506* 0,178-1,437
Agressão verbal 0,940 0,606-1,458 0,827 0,598-1,144 0,716 0,428-1,200
Sexo Masculino
Agressão Física 1,149 0,523-2,526 1,488 0,789-2,808 1,168 0,347-3,932
Agressão verbal 1,227 0,808-1,864 1,209 0,775-1,886 1,280 0,650-2,520

*p-valor < 0,20, ** p-valor < 0,10, *** p-valor < 0,05. OR – Odds Ratio; IC –Intervalo de confiança; EP – Excesso de peso; EG – Excesso de gordura corporal; EGA – Excesso de gordura abdominal.

Para o EP, os modelos foram ajustados pelas variáveis: 1) escores de bens, escolaridade do chefe de família e descrição do peso – sexo feminino, e 2) Realização de algum procedimento em relação ao peso – sexo masculino. Para o EG, os modelos foram ajustados pelas variáveis: 1) escolaridade do chefe de família, descrição do peso, pais cientes do tempo livre e pais cientes de faltar aula – sexo feminino, e 2) escolaridade do chefe de família, escores de bens, pais cientes do tempo livre, elogiado pela família, relação com o colega, descrição do peso, atividade física e realização de práticas extremas para controle de peso – sexo masculino.Para o EGA, os modelos foram ajustados pelas variáveis: 1) escolaridade do chefe de família e relação com o colega – sexo feminino, e 2) escores de bens, diálogo com o professor, elogiado pela família e descrição do peso – sexo masculino.

Em contrapartida, as meninas diferiram dos meninos. Foi observado que tanto nas análises brutas (Tabela 2) quanto nas ajustadas para escolaridade do chefe de família, escores de bens e descrição de peso (Tabela 4), a agressão física se apresentava como um fator associado à ocorrência do excesso de peso, mas de forma inversa. Na presença de agressão física, as meninas apresentaram cerca de 50% menos chance de ter excesso de peso (OR = 0,465; IC = 0,220-0,983). Esses valores também seguiram o mesmo padrão para o excesso de gordura corporal (OR = 0,7) e o excesso de gordura abdominal (OR = 0,5), apesar desta associação não ser significativa estatisticamente. Para a agressão verbal, os resultados apontam na mesma direção apesar de as associações não serem estatisticamente significativas.

Discussão

Os resultados do presente estudo mostraram que os maus-tratos familiares não se associaram de forma positiva ao excesso de peso, ao excesso de gordura corporal e abdominal. Entretanto, as meninas que sofreram agressão física tinham menos chances de apresentar excesso de peso. Ressalta-se que, essas análises foram ajustadas para as variáveis: relação com a família e com a escola, nível de atividade física e sedentarismo, condição de peso, satisfação corporal e práticas extremas para controle de peso que, segundo a literatura, são variáveis associadas ao excesso de peso29,30.

Esse achado difere dos expostos em outros estudos. Danese e Tan16, por exemplo, em revisão sistemática e metanálise sobre o assunto, verificaram que para o grupo de crianças e adolescentes a associação entre os maus-tratos familiares e o excesso de peso não foi verificada (OR = 1,3; IC = 0,92-1,39). Vale ressaltar que os autores não procederam às análises segundo sexo, questão importante a ser considerada em pesquisas com adolescentes. Nesse período de vida, os mecanismos de defesa ao trauma (distorção do comportamento alimentar) ou do aumento de peso são diferentes entre o sexo feminino e o masculino31– existe um maior ganho de massa muscular para os meninos e de tecido de gordura para as meninas32. Faz-se necessário destacar que, na referida revisão, os autores apresentam estudos que usaram índices/indicadores antropométricos diferentes dos utilizados no presente estudo, o que dificulta a comparabilidade entre resultados.

Em relação aos estudos com adolescentes que apresentaram seus resultados de acordo com o sexo e abordam os maus-tratos físico e mental/emocional/verbal e o excesso de peso, notou-se que, da mesma forma que ocorreu no presente estudo, outras pesquisas sobre o assunto apresentam resultados distintos entre os sexos. Neste trabalho, não houve associação entre os maus-tratos familiares e o excesso de peso para os meninos, já para as meninas vítimas de agressão física, sim. Na esfera internacional, Stensland et al.30 observaram que a exposição a vários tipos de violência (física, verbal, sexual) gerava mais altos IMC em adolescentes noruegueses de 12 a 19 anos, mas esses valores apresentavam-se menos evidentes no sexo masculino. Entretanto, para Jun et al.33 em uma coorte com adolescentes americanos de 12 a 20 anos, os meninos expostos a violência doméstica (física, emocional ou sexual) exibiam associação com o desenvolvimento e a manutenção da obesidade, enquanto as meninas não. De acordo com Veldwijk et al.31, em um estudo com escolares holandeses de 13 a 16 anos, tanto os meninos quanto as meninas eram mais propensos ao sobrepeso e à obesidade na presença do abuso mental, enquanto a ocorrência de abuso físico e sexual era associada à obesidade somente para os meninos.

Também se observa diferença quanto à direção das associações. Schneiderman et al.34, em um estudo sobre a violência física, emocional, sexual e a negligência com crianças e adolescentes de Los Angeles de 9 a 12 anos, verificaram uma associação inversa entre a violência e o excesso de peso (IMC ≥ percentil 85). As meninas vítimas de abuso físico possuíam menores chances de apresentar excesso de peso quando comparadas àquelas que não sofreram abuso físico (OR = 0,29; IC95% = 0,10-0,87). Vale ressaltar que tanto este estudo como o de Schneiderman et al.34, os quais são de corte transversal, utilizaram categorias de IMC para avaliar o excesso de peso em adolescentes e verificaram a existência de associação negativa entre a violência física e a categoria de IMC que engloba o sobrepeso e a obesidade somente para o sexo feminino.

Já no âmbito nacional, Silva et al.15 estudando adolescentes de 10 a 19 anos de uma unidade de saúde do município do Rio de Janeiro observaram uma relação entre a violência familiar e o IMC somente para as meninas. As adolescentes vítimas de agressão verbal pelos pais apresentavam aumentos significativos de IMC. De forma distinta ao presente estudo, os autores relataram uma relação positiva entre maus-tratos e o IMC para o sexo feminino. Por outro lado, Gagliano14, ao pesquisar escolares do 1˚ ano do ensino médio de escolas públicas e privadas do estado do Rio de Janeiro, verificou que não existia uma relação positiva entre os maus-tratos (negligência, abuso físico e abuso emocional) para ambos os sexos, mas notou uma redução de IMC para os meninos vítimas de negligência física (β = -0,196; IC95% = -0,346-0,045).

Assim, nem sempre as vítimas de maus-tratos apresentam excesso de peso. Uma parte das pesquisas mostra que a associação tende para uma direção inversa, ou seja, a violência estaria atrelada à redução ou valores mais baixos de IMC14,34, conforme o observado neste estudo.

No que tange às diferenças entre os sexos encontradas neste estudo e na literatura, é importante destacar que existem diferenças de resposta entre os indivíduos com relação às adversidades e ao potencial de resiliência que muitas vítimas podem apresentar35. Compreender as diferenças entre os gêneros34 talvez seja um caminho a ser explorado para tentar explicar o resultado encontrado no presente estudo. Seguindo esse raciocínio, nas mulheres o trauma pode ser contrabalanceado por influências sociais para ser magra e isso pode ser mais evidente durante o período da adolescência. É observado neste estudo que 31,5% das meninas apresentavam insatisfação corporal, o que pode gerar comportamentos compensatórios para se atingir o ideal corporal imaginado por elas. Assim, as adolescentes sob influência do ideal de magreza postulado pela sociedade e pela mídia não desenvolveriam excesso de peso mesmo na presença de maus-tratos, como também elas seriam mais vulneráveis a algum distúrbio alimentar ou mesmo teriam medo de comer para não perder o controle29. Talvez essa seja uma possível explicação para a ocorrência da associação inversa encontrada no presente estudo. Ao analisarmos essa perspectiva, foi observado que os maus-tratos estavam associados à insatisfação com o peso no grupo das meninas (OR = 1,69; IC = 1,24-2,31), como também se associavam ao uso de práticas extremas de controle de peso (OR = 1,83; IC = 1,03-3,25) (dados não apresentados). Pode-se supor que as meninas vítimas de maus-tratos apresentavam maiores chances de relatar uma insatisfação corporal e algum mecanismo extremo para controle de peso e isso possivelmente poderia refletir em menores chances de se ter excesso de peso.

Com relação à mensuração dos maus-tratos familiares, observa-se na literatura o uso de diferentes índices/indicadores/medidas/instrumentos para aferi-los14,15,31,34,36. Isso pode dificultar a comparabilidade dos resultados encontrados entre os estudos, porém, de forma similar ao presente estudo, Hussey et al. e Veldwijk et al. investigaram um determinado tipo de maus-tratos por meio de uma única pergunta. Hussey et al.36avaliaram a agressão física com respostas relacionadas à frequência que este abuso acontecia, e posteriormente as respostas foram categorizadas em nunca (quando ausente) e uma ou mais vezes (quando presente). Veldwijk et al.31, além da agressão física, aferiram também o abuso emocional. E de maneira similar, utilizaram somente uma questão para caracterizar cada um dos abusos/agressões explorados. Cabe ainda mencionar que, assim como no presente estudo, os autores verificaram a associação entre os maus-tratos e o estado de peso/IMC por meio de um estudo de corte transversal, desenhado originalmente para monitorar a saúde, bem-estar e estilo de vida dos adolescentes.

Assim como os resultados de outras pesquisas14,34, os achados deste estudo mostraram que existe associação negativa entre os maus-tratos e o excesso de peso (IMC > percentil 8529,34,36). Vale ressaltar que, embora o IMC não faça distinção entre o tecido livre de gordura e a massa livre de gordura corporal37, ele é um índice recomendado para definir o excesso de peso em estudos epiodemiológicos38, pois é um importante indicador de prognóstico de saúde, sendo capaz de identificar adolescentes em situação de risco de diabetes e doenças cardíacas39. Adicionalmente, pode-se pôr em evidência que neste artigo buscou-se conhecer um pouco mais a relação da violência com a composição corporal, explorando-se também a associação entre maus-tratos familiares e a RCA e o percentual de gordura – padrão de distribuição de gordura. Destaca-se que investigações mostraram que indivíduos com gordura abdominal apresentam maior risco para problemas de saúde do que aqueles com depósito de gordura distribuídos perifericamente8,39. Conforme pode ser observado na Tabela 4, as associações entre os maus-tratos familiares e o excesso de peso e de gordura apontam para uma direção positiva no sexo masculino e para uma negativa no sexo feminino, independente do índice antropométrico utilizado. Embora não sejam significativos os achados relativos à RCA e ao percentual de gordura, assemelham-se ao encontrado com IMC, o que indica que mais estudos com intuito de esclarecer a dinâmica destas associações merecem ser implementados.

Uma limitação deste estudo foi o uso de uma única pergunta para se medir, definir e classificar os dois tipos de maus-tratos (agressão física e verbal), mas como já observado na literatura outros autores também o fizeram por esse modo31. Com relação à pergunta maus-tratos (agressão verbal/abuso emocional), Tricket et al.40 relataram que o abuso emocional apresenta categorias com relação ao comportamento dos pais que descrevem esse tipo de abuso por meio do rejeitar, aterrorizar, isolar, explorar/corromper. Vários comportamentos podem ser relatados para cada uma dessas categorias, mas nem todos os autores utilizam todas elas para avaliar o abuso emocional31,40. Isso também ocorreu neste estudo, já que os dados analisados foram de um inquérito realizado com os escolares do município do Rio, o qual somente contemplou a agressão verbal por meio da pergunta: “Nos últimos 30 dias, com que frequência sua família te esculachou (tratou muito mal)?”.

A pergunta pertinente a agressão física “...quantas vezes foi agredido fisicamente por um adulto da família?”, não esclarece especificamente o que seria ser agredido fisicamente. Diferente das perguntas usadas por Goodwin e Wamdoldt: “Sua mãe ou pai ... chutou ou bateu em você com o punho, bateu ou tentou bater com alguma coisa, bateu em você, sufocou, queimou ou escaldou você...”41, que detalharam os atos considerados por eles como agressão física. Nessa perspectiva, é possível que por não terem sido mencionados os atos da agressão física, o presente estudo somente tenha registrado os casos mais graves que de acordo com a literatura são os mais lembrados42 e, o que pode, portanto, ter subestimado os resultados das exposições investigadas.

Uma outra limitação seria a natureza do desenho do estudo – transversal. Uma única observação em um determinado período de tempo pode não refletir a ocorrência do excesso de peso e de gordura que porventura possa acometer os indivíduos no decorrer do seu crescimento e desenvolvimento. Dessa forma, este tipo de estudo é incapaz de fazer inferência causal11.

O ponto forte deste estudo foi a utilização de medidas antropométricas de peso, altura, perímetro abdominal e dobras cutâneas para avaliar o estado nutricional por meio de três índices antropométricos. Essas medidas foram realizadas por uma equipe treinada fornecendo, portanto, estimativas confiáveis e válidas sobre a composição corporal dos indivíduos. Isso possibilitou classificar os adolescentes para excesso de peso, de gordura corporal e de gordura abdominal, tornando este estudo pioneiro nessa abordagem. O presente estudo apresentou uma abordagem diferenciada quando também investigou a relação entre os maus-tratos familiares e o excesso de gordura corporal e de gordura abdominal, aspecto importante para os adolescentes, uma vez que durante o crescimento mudanças na composição corporal podem se refletir tanto em ganho de gordura corporal quanto em massa livre de gordura32.

Em suma, os resultados do presente estudo mostraram que nenhum dos dois tipos de maus-tratos investigados se associou de maneira estatisticamente significativa ao excesso de peso, de gordura corporal e de gordura abdominal nos meninos. Já em relação às meninas foi observado que aquelas que sofreram agressão física eram menos propensas a apresentar IMC > percentil 85 (RC = 0,499; IC = 0,212-0,951).

Apesar das limitações, este estudo possibilitou a exploração de um tema pouco investigado na adolescência, principalmente no que se refere ao excesso de gordura. Os achados desta investigação podem servir de alerta para a comunidade científica e para as redes de saúde e de educação do nosso país. O conhecimento da existência da relação violência-excesso de peso e de gordura durante a adolescência, particularmente no sexo feminino, permite que novas estratégicas de ação sejam implementadas. Interessante seria ainda o exercício de uma reflexão acerca dos potenciais mecanismos que podem levar ao aumento ou à redução do peso e de gordura em resposta aos maus-tratos, onde as diferenças entre os gêneros estejam presentes.

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