versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.8 no.4 São Paulo out./dez. 2010
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082010ao1751
O carcinoma urotelial é a nono tipo de câncer mais frequente no mundo e, em geral, é diagnosticado como uma doença superficial(1). Entretanto, o tumor superficial de bexiga apresenta grande tendência de recidiva e progride em um subgrupo significativo de pacientes(1). Alguns fatores prognósticos bem conhecidos estão relacionados à progressão da doença e à sobrevida específica do câncer. Diversos fatores de risco estão envolvidos, sendo que o tabagismo é o mais importante(2–5). A interrupção do consumo de tabaco após o diagnóstico de câncer vesical é uma recomendação amplamente aceita. Entretanto, uma revisão sistemática demonstrou que pouco se sabe se interromper o tabagismo diminui o risco de recorrência ou progressão da doença(6). Poucos estudos avaliaram esta questão e não chegaram a resultados conclusivos, ainda que cessar o tabagismo pareça estar relacionado a melhores desfechos(6–11).
Avaliar a associação entre hábito de fumar e desfecho de pacientes com câncer superficial de bexiga.
Realizou-se um estudo caso-controle, retrospectivo, para avaliar 99 pacientes (67,0 ± 13,2 anos, variação de 31,4 a 93,4 anos) tratados em nossa instituição com câncer de bexiga não músculo-invasivo, entre 1994 e 2000, com seguimento médio de 49,3 meses (variação de 4,0 a 177,9 meses). Todos os pacientes sem registro completo foram excluídos do estudo. Outras alterações vesicais descritas foram: infecção recorrente do trato urinário (20%) e uso crônico de sonda vesical de demora (6%).
O seguimento oncológico foi realizado conforme protocolo institucional para câncer superficial de bexiga: após ressecção transuretral do tumor, foi realizada nova ressecção um mês depois para tumores de alto grau; cistoscopia, citologia, radiografia de tórax e ultrassonografia abdominal foram realizadas a cada três meses no primeiro ano, e a cada seis meses nos primeiros três anos, e depois anualmente caso não apresentasse recidiva.
Foram realizados tratamentos adjuvantes, quando indicados: BCG intravesical (80 mcg/semana por seis semanas como indução e, após esse período, 80mcg/semana durante três semanas a cada seis meses como manutenção). Mitomicina C intravesical foi aplicada após a primeira recidiva após um curso de BCG, ou quando havia contraindicação ao uso de BCG.
Os pacientes foram divididos de acordo com progressão da doença (progressão versus não-progressão para doença invasiva muscular) e tabagismo. Análise adicional de coorte foi feita ao dividir os pacientes conforme exposição anterior ao tabaco: tabagistas e não-tabagistas. Os tabagistas foram ainda classificados como ex-tabagistas, interruptores precoces, interruptores tardios e tabagistas persistentes. Foram considerados ex-tabagistas todos os pacientes que pararam de fumar pelo menos um ano antes do diagnóstico de câncer. Os interruptores precoces eram pacientes que pararam de fumar no primeiro ano após o diagnóstico de câncer, e os interruptores tardios cessaram o hábito mais de um ano após o diagnóstico inicial. Os desfechos medidos incluíam sobrevida livre de recidiva, progressão para doença muscular invasiva e mortalidade específica para câncer.
Foram realizadas análises estatísticas com o programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS for Mac OS X, SPSS, Inc., Chicago, Illinois). Os grupos foram comparados através do teste do χ2 de Pearson e teste t de Student. A plotagem de sobrevida específica da doença e progressão para doença muscular invasiva foi feita pelo método de Kaplan-Meyer. As taxas de sobrevida foram analisadas para significância com o teste “log rank”. A significância estatística foi determinada como p < 0,05.
Do total de 99 pacientes, 72,7% eram do sexo masculino e 27,3% do feminino. Tabagismo foi relatado por 62,7% dos pacientes com câncer de bexiga, e foi muito mais frequente entre homens do que mulheres (p = 0,03, Tabela 1). O câncer ocorreu em uma idade mais precoce para os tabagistas (70,8 versus 64,8 anos, p = 0,03, Tabela 1). O tempo médio de tabagismo foi 37,5 ± 13,3 anos (Tabela 2). Dos 62 tabagistas, 16 foram classificados como ex-fumantes, 19 como interruptores precoces, 7 como interruptores tardios e 20 como tabagistas persistentes. Quando os pacientes foram divididos de acordo com a progressão para a camada muscular, não houve diferenças estatisticamente significativas entre tabagistas e não-tabagistas ou entre os subgrupos de tabagistas. Dos 20 pacientes tabagistas persistentes, 40,0% evoluíram para doença músculo-invasiva, em comparação com 28,6% dos ex-fumantes e interruptores precoces (p = 0,160, Figura 1). Quando distribuídos conforme a exposição ao tabaco, houve uma taxa de progressão significativamente maior do que a da doença muscular invasiva em pacientes com mais de 60 maços/ano de exposição (52,9 versus 26,2%, p = 0,037, Tabela 3). Tais pacientes tiveram um tempo médio de progressão de 59,3 ± 16,4 meses, ao passo que os pacientes que fumaram menos de 60 maços/ano progrediram após um tempo médio de 131,8 ± 14,2 meses (p = 0,041, Figura 2).
Dados demográficos dos pacientes | Não tabagistas (n = 37) | Tabagistas (n = 62) | Valor p |
---|---|---|---|
Mean ± SD | Mean ± SD | ||
Idade (anos) | 70,8 ± 14,5 | 64,8 ± 12,2 | 0,030* |
Seguimento (meses) | 43,3 ± 14,2 | 52,1 ± 48,1 | 0,473 |
Tamanho do tumor (cm) | 1,8 ± 1,8 | 2,6 ± 1,5 | 0,622 |
Número de tumores | 1,6 ± 1,0 | 1,6 ± 1,1 | 0,817 |
Homens/mulheres | 48,6%/51,4% | 90,3%/9,7% | 0,001* |
% (n) | % (n) | ||
Alto grau | 54,1 (20) | 56,5 (35) | 0,184 |
Invasão da lamina propria | 24,3 (9) | 38,7 (24) | 0,061 |
Invasão da muscularis mucosa | 18,9 (7) | 32,3 (20) | 0,068 |
Tratamento adjuvante | 29,7 (11) | 41,9 (26) | 0,083 |
*p < 0,05.
História de tabagismo | Média ± DP | Variação |
---|---|---|
Tempo de tabagismo (anos) | 37,5 ± 13,3 | (10 – 61) |
Maços/dia | 1,0 ± 0,5 | (0,1 – 3,0) |
Maços/ano | 39,7± 25,5 | (4,0 – 100,0) |
Dados | <60 maços/ano | >60 maços/ano | Valor p |
---|---|---|---|
% (n) | % (n) | ||
Número de pacientes | (42) | (17) | |
Invasão muscular | 26,2 (11) | 52,9 (9) | 0,037* |
Cistectomia | 23,8 (10) | 41,2 (7) | 0,103 |
Óbito relacionado ao câncer | 9,5 (4) | 17,6 (3) | 0,223 |
*p < 0,05.
O tabagismo é um dos principais fatores de risco para câncer de bexiga, e diversos aspectos deste hábito foram caracterizados de modo analítico(9,11). Após o diagnóstico de câncer de bexiga, parece lógico que a interrupção do tabagismo possa trazer benefícios. No entanto, até o momento não há estudos conclusivos que avaliem esta questão(6). Este estudo tem alguns achados importantes.
Fatores prognósticos ao diagnóstico: um estudo recente observou piores fatores prognósticos ao diagnóstico inicial de câncer de bexiga entre tabagistas, mas os padrões de recidiva são semelhantes ao comparar com não-fumantes(12). este achado difere de nossa observação. Neste estudo, houve fatores prognósticos semelhantes após a ressecção transuretral inicial, ao comparar tabagistas e não-tabagistas, como já observado por outros autores(7). Talvez a amostra relativamente pequena possa explicar estes resultados, já que não pudemos reproduzir nossos achados. Contudo, após um tempo médio de 37,5 ± 13,3 anos de tabagismo, nossos pacientes tiveram diagnóstico de câncer em idade precoce. Como o diagnóstico de câncer de bexiga inicial tem sido mais frequente com check-up de rotina, os pacientes diagnosticados tardiamente podem apresentar piores fatores prognósticos. Além disso, a cistectomia foi progressivamente mais necessária para tabagistas persistentes do que interruptores ou não-tabagistas.
Condição de tabagista: o papel do tabagismo sobre o prognóstico após um diagnóstico inicial de câncer de bexiga ainda não está bem esclarecido. Um estudo recente sugeriu que a interrupção do tabagismo parece ser um fator de risco independente para progressão da doença(7). Outros estudos não conseguiram provar essa relação(12). Em uma revisão sistemática, Aveyard et al. encontraram apenas um estudo de alta qualidade que avaliava esta questão, e concluíram que a evidência ainda é fraca, pois muitos estudos não eram estatisticamente significativos(6). Apesar de observarmos uma tendência a maiores taxas de progressão entre os tabagistas persistentes, nossa investigação não demonstrou uma diferença estatisticamente significativa em padrões de recidiva ao compararmos ex-fumantes, interruptores e tabagistas persistentes. Verificou-se uma idade mais precoce para início do câncer ao analisar tabagistas e não-tabagistas, semelhante ao que já havia sido descrito(10). Vale a pena mencionar que nossa amostra relativamente pequena torna-se ainda menor ao estratificar estes subgrupos de pacientes. Mas a quantidade de consumo de cigarros estava associada à taxa maior e mais precoce de progressão. Investigações anteriores já haviam enfatizado a associação entre quantidade de cigarros e diagnóstico de câncer(13). Embora tais estudos tenham demonstrado uma associação direta entre quantidade de cigarros consumidos e maior risco de desenvolver câncer de bexiga(9), a associação com progressão da doença ainda não havia sido descrita.
Neste estudo, uma taxa de progressão significativamente maior foi observada em pacientes expostos a mais de 60 maços/ano. Esse grupo de pacientes também apresentou progressão mais rápida para doença muscular invasiva.
Acreditamos que nosso estudo possa trazer informações bastante úteis para pacientes com câncer de bexiga e seus clínicos. Pode ser animador para os pacientes com diagnóstico de um câncer altamente recidivante saber que há algo que possa ser feito para reduzir o risco de progressão da doença. Os pacientes devem ser encorajados a diminuir o número de cigarros e/ou a parar de fumar. Outras medidas que podem diminuir a exposição do urotélio da bexiga aos carcinogênios devem também ser estimuladas. Em um estudo com quase 8 mil homens, os pesquisadores verificaram que aqueles que bebiam grandes quantidades de água tinham uma incidência significativamente menor de câncer de bexiga. E homens que bebiam mais de cinco xícaras de café por dia também tinham um risco aumentado de desenvolver câncer de bexiga(14). Como sugerido pelos autores, o câncer de bexiga pode ser parcialmente causado por contato com carcinogênios excretados na urina. Portanto, os pacientes com diagnóstico prévio de câncer de bexiga devem ser estimulados não apenas a cessarem o fumo, mas também a não tomarem café e a beberem grandes quantidades de água. Um seguimento próximo desses pacientes é também essencial para permitir um diagnóstico precoce e evitar metástases. O presente estudo tem muitas limitações. Outros fatores parecem estar associados ao câncer de bexiga relacionado a tabaco, como o tipo de tabaco consumido(11) ou ingestão concomitante de café(15), e estes fatores não foram avaliados neste estudo. O tamanho da amostra é relativamente pequeno, o que limita o poder de análise estatística. Mas o estudo atual contribui com vários “insights” relevantes para clínicos e pacientes.
Observou-se uma associação direta entre a quantidade de cigarros consumidos e progressão da doença em pacientes com câncer de bexiga neste estudo. O tabagismo tem associação direta com progressão de câncer superficial de bexiga para doença invasiva, além de diminuir o tempo para afetar a camada muscular. Esta informação pode ajudar os clínicos a convencerem seus pacientes com câncer bexiga de que interromper o tabagismo pode melhorar o prognóstico. São necessários maiores estudos prospectivos para chegar a conclusões mais definitivas sobre a reprodução de nossos dados e para melhor compreender como cessar o fumo interfere na progressão do câncer superficial de bexiga.