versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.26 no.3 São Paulo maio/jun. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/201420140476
A presença de disfagia orofaríngea no acidente vascular encefálico (AVE) é estudada desde a década de 1970, sendo que a ocorrência descrita nesses estudos apresenta variações de 19 a 90% e estão provavelmente relacionadas com a presença de amostras heterogêneas e com métodos distintos de investigação( 1 - 3 ).
A identificação de penetração laríngea e aspiração laringotraqueal é uma constante preocupação dos instrumentos de rastreamento e avaliação para disfagia orofaríngea, principalmente nos indivíduos após AVE( 4 - 6 ). Embora para alguns autores a aspiração laringotraqueal seja um dos mais importantes alvos da avaliação da disfagia nessa população, é de fundamental relevância que nos preocupemos com todos os achados da deglutição, uma vez que, para a reabilitação desses indivíduos, seja importante compreender o motivo da aspiração( 7 ). Somente assim será possível identificar quais aspectos da dinâmica da deglutição estão provocando esses sinais e, assim, planejar adequadamente a terapia em disfagia orofaríngea no AVE.
A aspiração laringotraqueal é detectada em aproximadamente 40% dos pacientes em fase aguda do AVE( 8 ), com alta incidência de aspiração silente, variando entre 28 e 52%( 9 ). A presença ou ausência de penetração laríngea e aspiração laringotraqueal não deve ser o único parâmetro a nortear condutas frente à liberação de via oral parcial ou total. Mesmo assim, a maioria dos estudos que analisaram a frequência desses sinais não promoveu associações ou correlações entre estes e as demais alterações da dinâmica da deglutição( 10 - 13 ).
O impacto da presença dos resíduos faríngeos e do escape oral posterior de alimento para a deglutição orofaríngea tem sido estudado com distintos objetivos, o que pode contribuir para a reflexão das diferentes condutas em disfagia orofaríngea. A relação entre esses achados e a aspiração laringotraqueal pode auxiliar na compreensão sobre a segurança da alimentação( 14 , 15 ). Portanto, este estudo teve por objetivo verificar a associação entre escape oral posterior e a presença de resíduos faríngeos com a ocorrência de penetração laríngea e/ou aspiração laringotraqueal no AVE.
O material analisado neste estudo consistiu de imagens videofluoroscópicas de deglutição do banco de dados dos centros participantes, sendo incluídos 63 indivíduos após acidente vascular encefálico isquêmico hemisférico (AVEi), agudo ou crônico, sendo 20 do gênero feminino e 43 do gênero masculino, e faixa etária variando entre 40 e 90 anos. Foram incluídos somente os indivíduos que tiveram AVEi, com diagnóstico neurológico comprovado por exame de neuroimagem (tomografia computadorizada ou ressonância de crânio). De acordo com a avaliação das imagens, o material foi dividido em dois grupos. O Grupo I (GI) foi composto por exames de 35 indivíduos que apresentaram penetração laríngea e/ou aspiração laringotraqueal e o Grupo II (GII), por exames de 28 indivíduos sem ocorrência de penetração laríngea e/ou aspiração laringotraqueal coletados da videofluoroscopia de deglutição.
O presente estudo teve delineamento clínico transversal retrospectivo multicêntrico, realizado com banco de dados de projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição, sob o parecer de número 226/2008. Todos os indivíduos, ou seus representantes legais, incluídos no protocolo de estudo tiveram ciência e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Ressalta-se que foram cumpridos os princípios éticos, conforme versa a resolução 196/96.
O banco de dados foi construído por meio da análise de exames videofluoroscópicos da deglutição da população pós-AVE disfágica de três centros de referência em disfagia orofaríngea, realizados no período de 2008 a 2010. Para este estudo, foram considerados presença ou ausência de escape oral posterior, resíduos faríngeos, penetração e aspiração laringotraqueal.
A avaliação videofluoroscópica da deglutição (VFD) foi realizada em centro especializado no atendimento de disfagia orofaríngea, sendo que, para este estudo, os exames foram analisados por duas fonoaudiólogas, com média de oito anos de experiência no exame e treinadas pelo mesmo centro, havendo consenso entre ambas sobre os achados videofluoroscópicos.
A análise dos parâmetros analisados na VFD estão descritos a seguir e foram selecionados os achados na consistência tanto tipo néctar quanto líquida, com oferta de 5 mL de alimento na colher.
A ocorrência de escape prematuro do alimento para a hipofaringe, ultrapassando a região em que deveria ocorrer a resposta faríngea( 16 ), foi considerada como presença de escape oral posterior.
Foi analisada a permanência de material contrastado na região de valécula e recessos piriformes após a segunda deglutição( 17 ).
Durante a deglutição, registrou-se como penetração laríngea todo material localizado acima da prega vocal e como aspiração laringotraqueal, a ocorrência de passagem de material abaixo do nível da prega vocal( 18 ).
Considerando-se que as variáveis são nominais e qualitativas, utilizou-se o teste do χ2. Além disso, como os dados são não paramétricos, utilizou-se para associação o teste do φ2.
A Tabela 1 apresenta a avaliação da associação entre os grupos e o escape oral posterior, sendo que sua análise permite concluir que não houve associação entre a presença de escape oral posterior e a ocorrência de penetração e/ou aspiração laringotraqueal.
Tabela 1 Análise da associação entre os grupos com e sem penetração e/ou aspiração e a presença da ocorrência de escape oral posterior
Grupos | Ausência de escape oral posterior | Presença de escape oral posterior | Análise Estatística |
---|---|---|---|
I (penetração e/ou aspiração – n=35) |
2 (5,71%) | 33 (94,29%) | χ2=1,65; p=0,30 φ2=0,02 |
II (sem penetração e/ou aspiração – n=28) |
0 (0%) | 28 (100%) | |
Total (n=63) | 2 | 61 |
A análise dos resultados apresentados na Tabela 2 mostrou diferença estatística que confirmou a associação entre a presença de resíduos faríngeos e a ocorrência de penetração e/ou aspiração laringotraqueal.
Tabela 2 Análise da associação entre os grupos com e sem penetração e/ou aspiração e a presença de resíduos faríngeos
Grupos | Ausência de resíduos faríngeos | Presença de resíduos faríngeos | Análise estatística |
---|---|---|---|
I (penetração e/ou aspiração – n=35) |
8 (22,86%) | 27 (77,14%) | χ2=12,86; p=0,003 φ2=0,20 |
II (sem penetração e/ou aspiração – n=28) |
19 (67,86%) | 9 (32,14%) | |
Total (n=63) | 27 | 36 |
Inúmeros estudos avaliaram as alterações na biomecânica da deglutição no indivíduo pós-AVE disfágico, porém a associação dessas alterações e a ocorrência de penetração e/ou aspiração foram pouco estudadas. A referência à presença de escape oral posterior e resíduos faríngeos é frequentemente encontrada nos estudos com essa população( 14 , 15 , 19 , 20 ). A grande questão, no entanto, está concentrada em compreender quais desses achados estão associados à ocorrência de penetração e/ou aspiração laringotraqueal, visando identificar quais seriam os parâmetros mais preditivos de risco para a aspiração laringotraqueal e, assim, determinar condutas adequadas.
Neste estudo, verificou-se na Tabela 1 que, mesmo sendo uma manifestação frequente nessa população disfágica, não houve associação entre a presença de escape oral posterior e os grupos. Distintos estudos têm mostrado que a incoordenação oral e a diminuição da resposta faríngea são os dois mais importantes fatores na ocorrência do escape oral posterior e, embora possam provocar penetração laríngea e/ou aspiração, essa questão depende do grau da incoordenação e do tempo de resposta faríngea( 21 , 22 ), parâmetros não analisados no presente trabalho.
Outro aspecto constado neste estudo e apresentado na Tabela 2, no entanto, mostrou que houve associação estatisticamente significante entre a presença de resíduos na faringe e os grupos( 19 , 23 - 25 ). Considera-se que a presença de resíduos faríngeos nos indivíduos pós-AVE estaria relacionada a distintos fatores, como tempo de trânsito oral e faríngeo aumentados, diminuição da sensibilidade faringolaríngea, diminuição da resposta faríngea e diminuição na elevação da laringe e/ou redução do peristaltismo faríngeo. Os resultados deste estudo corroboram as evidências científicas que encontraram associação entre os resíduos faríngeos e penetração e/ou aspiração no indivíduo pós-AVE com o tempo de resposta faríngea( 26 , 27 ).
Os estudos vêm buscando entender se há associação entre resíduos faríngeos com o risco de aspiração laringotraqueal( 27 , 28 ). Estudo recente encontrou que o resíduo em valécula está significativamente associado com a segurança da deglutição, sendo considerado risco relativo de penetração e/ou aspiração laringotraqueal após deglutições subsequentes( 13 ).
Uma das limitações deste estudo foi não ter analisado a presença das variáveis em relação às consistências dos alimentos, dificultando o uso desse achado como preditor de risco ou para generalizações na conduta. É possível, em estudo futuro, promover esse delineamento. A literatura apresenta estudos em relação às consistências e resíduos faríngeos em indivíduos saudáveis, evidenciando que não há um aumento significativo nos resíduos faríngeos após a ingestão das consistências (líquido ralo, líquido engrossado e pastoso grosso)( 28 ).
Diante dos achados neste estudo e de outras evidências científicas( 26 - 28 ), sugere-se que os profissionais da equipe interdisciplinar no gerenciamento da disfagia orofaríngea devam considerar a presença de resíduos faríngeos como um marcador de risco para aspiração laringotraqueal, a fim de contribuir para a definição de conduta relacionada à segurança pulmonar do indivíduo disfágico.
Diante dos resultados obtidos, concluiu-se que há associação entre a presença de resíduos faríngeos e a ocorrência de penetração com aspiração laringotraqueal em indivíduos pós-AVE.