versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.81 no.5 São Paulo set./out. 2015
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2015.07.011
Fenda labial e/ou palatina não sindrômica (FL/PNS, MIM #119530) representa a malformação congênita mais frequente na região da cabeça e pescoço, com uma prevalência variando entre 1:500 e 1:2500 nascidos vivos.1 Sua prevalência varia com a etnia (africanos 0,3:1.000; europeus 1,3:1.000; asiáticos 2,1:1.000; indígenas americanos 3,6:1.000) e nível socioeconômico.2 No Brasil, a prevalência de FL/PNS varia entre 0,36 e 1,54:1.000 nascidos vivos.3 4
FL/PNS consiste em uma interrupção imediatamente identificável da estrutura facial normal. Embora não seja causa importante de mortalidade em países desenvolvidos, FL/PNS efetivamente causa morbidade considerável nas crianças afetadas e representa uma carga financeira substancial, sobretudo para as famílias de baixa situação socioeconômica.5 Indivíduos com FL/PNS podem apresentar problemas com a alimentação, a fala, a audição, a integração social e o câncer.1 6
A etiologia de FL/PNS, que envolve tanto fatores genéticos como ambientais, é altamente complexa, e sua base molecular permanece em grande parte desconhecida.2 7 A identificação de fatores de risco modificáveis para FL/ PNS é o primeiro passo em direção à prevenção primária. Já foram previamente identificados fatores de risco como exposição materna à fumaça do tabaco, álcool, desnutrição, gênero, idade materna, infecção viral, medicamentos e teratógenos no local de trabalho ou no domicílio no início da gravidez.1 8 11
A associação entre tabagismo materno e FL/PNS já foi avaliada em muitos estudos, e uma meta-análise desses estudos sugere uma associação positiva.12 13 Diversos trabalhos já foram publicados em todo o mundo com o objetivo de avaliar a distribuição de FL/PNS, frequentemente resultando em percentuais de prevalência variáveis.14 15 Em um estudo com população brasileira, demonstramos predominância de fenda labiopalatina (52,6%), seguida por fenda labial (33,12%) e fenda palatina (14,28%).16 A incidência de fenda labial e de fenda labiopalatina é maior no gênero masculino, enquanto a fenda palatina isoladamente demonstra prevalência mais significativa no gênero feminino.16 17
São pouquíssimos os estudos que avaliaram a influência de fatores ambientais na população brasileira com FL/PNS. O objetivo do presente estudo foi avaliar a relação entre tabagismo materno, gênero e FL/PNS em uma população brasileira.
Esse é um estudo epidemiológico do tipo caso-controle, realizado em uma só instituição. Todos os participantes foram recrutados na mesma instituição (Centro de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais e Clínica Dental, Minas Gerais, Brasil) entre fevereiro de 2009 e agosto de 2012, numa tentativa de selecionar casos e indivíduos para controle com base étnica e situação sociocultural semelhantes.
Entrevistamos 1.519 mães, que foram divididas em dois grupos: casos - mães de crianças com FL/PNS (n = 843); e controles: mães de crianças sem FL/PNS (n = 676). Todas as mães foram ainda classificadas como fumantes ou não fumantes durante o primeiro trimestre de gestação. Todas as crianças com anomalias ou síndromes associadas ou com história familiar de doença genética foram excluídas do estudo. As mães de crianças com FL/PNS foram avaliadas no Centro de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais, enquanto as mães de crianças sem FL/PNS foram avaliadas na Clínica Odontológica.
As fendas foram categorizadas em três grupos, tendo como referência o forame incisivo: 1) Fenda labial (FL): abrangendo fendas pré-forame completas ou incompletas, uni ou bilaterais; 2) Fenda labiopalatina (FL/P): incluindo fendas trans-forame uni ou bilaterais e fendas pré ou pós-forame; 3) Fenda palatina (FP): incluindo todas as fendas pós-forame, completas ou incompletas.18 Para fins de análise, FL e FL/P (fenda labial com ou sem fenda palatina) foram reunidas em um mesmo grupo, com FP no outro grupo.11 19 As crianças foram avaliadas por profissionais com experiência no campo das fendas orais.
As informações coletadas foram lançadas em um banco de dados e analisadas com o uso de um programa estatístico, SPSS(r) versão 18.0 (Statistical Package for Social Sciences for Windows, Inc., EUA). A análise foi realizada em duas etapas. Inicialmente, a análise estatística tomou por base a apresentação de dados descritivos e a distribuição de variáveis categóricas. Foram utilizados odds ratio (OR) e intervalos de confiança de 95% (IC 95%) para prevalência, com o objetivo de determinar associações entre tabagismo materno, gênero e ocorrência de FL/PNS. A associação entre tabagismo materno e fendas foi testada em separado para cada gênero. Em seguida, também foi testada em separado a associação entre gênero e ocorrência de FL/PNS, entre as crianças cujas mães fumavam e entre aquelas cujas mães não fumavam. Finalmente, foi aplicado um modelo de regressão logística para identificar variáveis que foram independentemente associadas à ocorrência de FL/PNS.
Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da Universidade (#259-2010). Antes da sua realização, foi obtido consentimento informado das participantes, ou de seus responsáveis.
No total, 1.519 mulheres foram entrevistadas: 680 mães de bebês com FL/P não sindrômica, 163 mães de bebês com FP sindrômica e 676 mães de bebês sem defeitos congênitos importantes (controles). Das 1.519 crianças incluídas na análise, havia predominância de meninas (57%). Dessas crianças, 843 apresentavam fendas: 680 nasceram com FL/P e 163 com FP isolada. Das 1.519 mães, 307 (20%) eram fumantes: 212/843 (25%) no grupo de casos e 95/676 (14%) no grupo de controle. Houve associação entre tabagismo materno e fendas (OR = 2,02; IC 95% 1,54-2,63). Tabagismo materno também estava associado com FL/P (OR = 2,08; IC 95% 1,58-2,75) e com FP (OR = 1,92; IC 95% 1,26-2,92) (tabela 1). A maioria dos bebês com FL/P era do gênero masculino (61%), e as meninas predominaram entre as crianças com FP isolada (63,8%). Também foi observada uma robusta associação entre gênero masculino e presença de fendas (OR = 3,51; IC 95% 2,83-4,37). Essa associação foi consistente entre os diferentes tipos de fenda (FL/P; OR = 4,28; IC 95% 3,40-5,39; FP; OR = 1,55; IC 95% 1,08-2,23) (tabela 1).
Tabela 1 Análise univariada da distribuição de fenda labial com ou sem fenda palatina (FL/P), fenda palatina (CP) e todas as fendas/fendas, de acordo com a situação de tabagismo materno e gênero do bebê
A associação entre tabagismo materno e fendas, em cada gênero, foi avaliada em separado. Embora o tabagismo materno tenha aumentado o risco de fendas nos dois gêneros, esse aumento foi significativo apenas para as meninas (OR = 2,48; IC 95% 1,73-3,54) (tabela 2). Em contraste, foi observada uma associação entre gênero masculino e fendas entre crianças cujas mães eram fumantes vs. não fumantes. Foi também observado que a ocorrência de fenda foi significativamente mais elevada em meninos, tanto entre aqueles com mães fumantes, como naqueles com mães não fumantes (mãe fumante: OR = 2,10; IC 95% 1,28-3,45 e mãe não fumante: OR = 3,89; IC 95% 3,05-4,97).
Por meio de uma análise de regressão logística binária, ficou demonstrado que ambas as variáveis (gênero e tabagismo materno) estavam independentemente associadas com fendas. Nessa análise multivariada, "gênero masculino" demonstrou uma probabilidade 2,5 vezes maior de fendas (OR = 2,39; IC 95% 2,0-2,87; p < 0,001) e "tabagismo materno" teve uma probabilidade 1,5 vezes maior (OR = 1,49; IC 95% 1,15-1,93; p = 0,002). Vale ressaltar a ocorrência de aumento daodds ratio na comparação entre subgrupos estratificados por gênero das crianças e situação materna em relação ao tabagismo: gênero feminino/mãe não fumante (OR = 0,63; 95% IC 0,54-0,73), gênero feminino/mãe fumante (OR = 1,56; 95% IC 1,13-2,16), gênero masculino/mãe não fumante (OR = 2,43; 95% IC 2,01-2,95), e gênero masculino/mãe fumante (OR = 3,37; 95% IC 2,31-4,91) (χ2 = 153,5; p < 0,001). A figura 1 ilustra a diferença entre os efeitos simultâneos das duas variáveis estratificadas ao longo desses quatro subgrupos.
Os pacientes descritos no presente estudo foram recrutados no Centro de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais, Minas Gerais, Brasil. Este serviço é considerado um dos maiores centros de reparo de fendas do país, realizando todos os procedimentos de reabilitação que são encaminhados ao Sistema Unificado de Saúde brasileiro.9 11 Com uma população superior a 190 milhões de habitantes e nascimento de 3 milhões de bebês por ano, FL/PNS é um importante problema de saúde pública no país, com aproximadamente 4 mil novos casos de FL/PNS a cada ano.11
Embora os fatores de risco ambientais e genéticos associados com FL/PNS permaneçam ainda obscuros, nota-se progresso no entendimento dos mecanismos envolvidos nessa malformação.1 2 Por repetidas vezes, o tabagismo materno tem sido associado a maior risco de FL/PNS, e uma meta-análise corrobora uma OR global para ocorrência de fendas de aproximadamente 1,3 entre a prole de mães fumantes.12 20 21 Nossos achados confirmam os dados na literatura. Em nossa análise, a probabilidade de ocorrência de fenda em crianças cuja mãe era fumante equivale ao dobro, em comparação com filhos de mães não fumantes. Little et al (2004)12realizaram uma meta-análise para associação entre tabagismo materno durante a gestação e fendas orais com o uso de dados provenientes de 24 estudos de casocontrole e de coorte. Seus autores observaram um risco relativo de 1,34 (IC 95% 1,25-1,34) entre tabagismo materno e FL/P, e de 1,22 (IC 95% 1,10-1,35) entre tabagismo materno e FP. Nessa mesma linha, Honei et al. (2007)13 demonstraram que o tabagismo periconcepcional estava associado com FL/P (OR = 1,3; IC 95% 1,0-1,6), e ainda mais fortemente associado com FL/P bilateral (OR = 1,7; 1,2-2,6), tendo sido observada uma associação mais fraca para FP.
Figura 1 Associação entre a situação de tabagismo materno e gênero do neonato com a presença de deformidades de fenda facial (nf = não fumante). Os retângulos representam os intervalos de confiança de 95%.
A fumaça do cigarro contém nicotina, hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, alcatrão, partículas de carbono e monóxido de carbono. A exposição dos tecidos embrionários depende do número de cigarros fumados, da frequência das tragadas, da profundidade da inalação e da transferência materno-embrionária e do metabolismo do embrião. Ainda não foram devidamente elucidados os mecanismos que fazem com que a fumaça do cigarro afete prejudicialmente o resultado da gestação.22 Os maiores riscos decorrentes da exposição ao fumo materno durante o período periconcepcional levantam a possibilidade de que genes em determinadas vias metabólicas possam desempenhar algum papel no desenvolvimento de FL/PNS. Especificamente, marcadores nos genes GSTT1 (glutátion S-transferase teta) ou NOS3 (óxido nítrico sintase 3) parecem influenciar o risco de FL/PNS em presença de tabagismo materno.20 21 23 Os marcadores em GSTT1 são variantes de deleção gênica; isso sugere que deficiências nas vias de destoxificação podem estar na base de parte da suscetibilidade. Recentemente, o fumo também foi associado com variantes do gene IRF6.17
Com relação à distribuição das fendas nos dois grupos (FL/P e FP), foi possível constatar que, dos 843 casos de FL/PNS, 680 (80,7%) eram FL/P e 163 (19,3%) eram FP isoladas. Na maioria dos estudos publicados, o percentual de indivíduos com FL/P tem sido mais alto, em comparação com o percentual exclusivo para FP, inclusive em estudos brasileiros.24 25 Em outro estudo, nosso grupo chegou a resultados semelhantes na distribuição de FL/PNS (FL/P = 81,61% e FP = 18,37%).11 Entre as 843 crianças com fenda avaliadas, 474 (56,2%) eram meninos e 369 (43,8%) eram meninas. Em outro estudo, demonstramos que FP era mais frequente em meninas (28,7%vs. 13,6%; 1,77:1); enquanto FL/P (59,8%vs. 45,5%; 1,56:1) e FL (25,7% vs. 26,6%; 1,23:1) predominavam em meninos (p = 0,001).17 Também foi possível determinar por regressão logística multinomial que a probabilidade de ocorrência de FL em meninos foi de 2,19, em comparação com FP em meninas, enquanto o risco de ocorrência de FL/P em meninos foi equivalente a 2,78 vezes o risco de FP em meninas.16 Em populações de raça branca, essa maioria de indivíduos do gênero masculino com FL/P se tornou mais evidente com o aumento da gravidade da fenda, e menos evidente quando mais de um irmão na família estava afetado.26
Recentemente, Lei et al. (2013),27 em um estudo epidemiológico de base populacional em Formosa (Taiwan), demonstraram prevalências mais elevadas de FL/P ou FP em mulheres multíparas, de FL/P para "ser do gênero masculino", de FP para "ser do gênero feminino", idade gestacional ≤ 37 semanas e baixo peso ao nascer (< 1,5 kg). De acordo com os achados desses autores, "neonato do gênero masculino" e "neonato do gênero feminino" estavam fortemente associados com FL/P e FP, respectivamente (ambos, p < 0,0001). Em nossa análise, o tabagismo materno aumentou a probabilidade de ocorrência de fendas nos dois gêneros; contudo, esse aumento foi significativo apenas para as meninas (OR = 2,48; IC 95% 1,73-3,54). Possivelmente, esse achado está relacionado ao fato de que houve uma associação entre gênero masculino e fendas entre aquelas crianças cujas mães fumavam, e entre aquelas cujas mães não fumavam. Na análise de nossa amostra estratificada para situação de tabagismo materno e gênero da criança, tem particular interesse a observação de um consistente aumento na odds ratio ao longo dos grupos, desde o par "mãe não fumante/gênero feminino" até o par "mãe fumante/gênero masculino".
Com relação às limitações do presente estudo, não fizemos uma avaliação quantitativa da exposição materna ao tabagismo passivo, nem quantificação do número de cigarros consumidos pela mãe e duração do hábito de fumar. Além disso, o banco de dados não proporcionou informações sobre as condições maternas e características perinatais (p. ex., peso ao nascer e idade gestacional), que, evidentemente, podem desempenhar um papel no desenvolvimento de deformidades de fenda facial. Queremos destacar as limitações que ainda existem em relação aos pareamentos realizados entre os grupos de caso e de controle, ainda que conduzidos na mesma instituição.
Resumidamente, nossos achados são consistentes com uma associação positiva entre tabagismo materno durante a gestação e FL/PNS no neonato. Também constatamos que crianças do gênero masculino têm uma probabilidade 3,5 vezes maior de nascer com fendas, em comparação com crianças do gênero feminino. A identificação de fatores de risco modificáveis para FL/PNS, como o tabagismo materno, é o primeiro passo na direção da prevenção primária. A consistência dos achados para FL/PNS e para tabagismo materno sugerem uma oportunidade para a prevenção desses graves defeitos. Os resultados aqui apresentados apoiam a importância da prevenção do fumo e da implementação de programas de cessação do tabagismo entre todas as mulheres em idade fértil.