versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.3 São Paulo jul./set. 2018 Epub 07-Maio-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-3864
A ingestão elevada de sódio é um dos principais fatores de risco para o desenvolvimento de doenças vasculares, hipertrofia ventricular esquerda, doença renal crônica (DRC) e hipertensão.1 Por sua vez, a hipertensão é uma das principais causas de DRC. A ingestão elevada de sal pode ter efeitos deletérios sobre a hemodinâmica glomerular, induzindo hiperfiltração e aumentando a fração de filtração e a pressão glomerular. Isso pode ser particularmente importante em certos grupos tais como pacientes idosos, obesos, diabéticos ou negros, que apresentam alta prevalência de sensibilidade ao sal.2 A restrição de sódio também já foi associada à significativa redução da proteinúria, independentemente das alterações na PA.3
A excreção de sódio em amostra de urina de 24 horas é considerada o padrão-ouro para a avaliação da ingestão de sódio. No entanto, as dificuldades associadas à precisão no processo de coleta de urina podem interferir nos resultados, especialmente em estudos populacionais. Assim, a estimativa da ingestão de sódio a partir de amostra de urina isolada, em nível populacional, tem sido cada vez mais utilizada por ser uma alternativa conveniente e acessível. Várias fórmulas já foram propostas para utilizar a amostra de urina isolada em substituição à urina de 24 horas, usando valores de creatininúria para ajustar a concentração urinária.4
Kawasaki et al.5 e Tanaka et al.6 propuseram fórmulas com base em amostras de urina isolada da população japonesa. As estimativas da excreção urinária de sódio usando tais fórmulas foram próximas dos valores reais da excreção de 24 horas. Os autores concluíram que a a coleta de urina em amostra isolada é uma alternativa adequada a coleta de 24h em pesquisas populacionais.
Estudos na América Latina para avaliar os efeitos do aumento da excreção de sódio na função renal em grupos de minorias étnicas, incluindo afrodescendentes, são escassos. Assim, o objetivo do presente estudo foi avaliar a associação entre taxa de filtração glomerular estimada (TFGe) e excreção de sódio em amostra isolada de urina de brasileiros com ascendência afriacana que vivem em uma cidade do Nordeste do Brasil.
O estudo transversal de base populacional que incluiu brasileiros de ascendência africana que vivem na cidade de Alcântara, no estado do Maranhão. Os dados utilizados no estudo fazem parte da pesquisa de Prevalência de Doença Renal Crônica nas Comunidades Quilombolas de Alcântara (PREVRENAL). O objetivo da pesquisa realizada entre julho de 2012 a abril de 2013, foi determinar a prevalência de Doença Renal Crônica no grupo populacional descrito.
Os participantes eram habitantes de comunidades quilombolas, quilombos podem ser definidos como grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra, relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. Em geral os quilombos mostram um relativo grau de isolamento geográfico e manifestações culturais que guardam forte relação com o passado.7
A amostra foi obtida por meio amostragem probabilística aleatória por conglomerado em dois estágios,sendo o primeiro setor censitário representado pelo quilombo e o segundo, pelo domicílio. No primeiro estágio, dos 139 quilombos existentes, 32 foram selecionados aleatoriamente. E dos domicílios selecionados,todos os indivíduos com idade igual ou superior a 18 anos, localizados em cada domicilio foram convidados a participar do estudo. O objetivo do estudo foi explicado e quem aceitou participar assinou Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Foram excluídos indivíduos menores de 18 anos de idade, mulheres grávidas, pessoas que utilizavam medicamentos imunossupressores ou com distúrbios tireoidianos e pacientes com os seguintes quadros (com base em história clínica e exame físico): doenças consumptivas (câncer ou síndrome da imunodeficiência adquirida), doenças hematológicas, doenças autoimunes, infecção sistêmica ou do trato geniturinário e pacientes com doença renal crônica ou aguda em diálise.
O tamanho da amostra foi calculado com base no poder de detectar correlações entre TFG e excreção de sódio, assumindo que a correlação entre as duas medidas é de pelo menos 0,10, erro alfa de 0,05, com teste bicaudal e potência de 0,90 para detectar uma grande correlação . O tamanho mínimo da amostra calculado foi de 1.047 indivíduos. Foi feito um acréscimo de 15% para compensar eventuais perdas (n = 1.205).
A primeira fase do estudo incluiu a coleta de dados familiares, através de entrevistas com questionário estruturado que abordaram aspectos demográficos e socioeconômicos, estilo de vida, histórico clínico anterior, uso de medicação e uso de serviços de saúde.
Dois fatores foram considerados na avaliação do status econômico: renda mensal familiar em número de salários mínimos (cerca de US$ 296 no momento da pesquisa) e o Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB), que divide a população em sete classes: A1 e A2, B1 e B2, C, D and E, em que A1 representa o status econômico mais elevado e E o mais baixo.8 A escolaridade dos participantes foi classificada em ≤ 8 e > 8 anos de estudo formal.
Depois de responder o questionário, foi medida PA no braço direito com o indivíduo sentado depois de descansar por pelo menos cinco minutos, usando esfigmomanômetro digital (Omron(r) 705-IT, Japão) com manguito de tamanho adequado cobrindo aproximadamente 80% da área do braço. Foram feitas três medidas com intervalo mínimo de 3 min entre medidas. A primeira medida foi descartada e a média das outras duas foi utilizada.9
Dois recipientes de coleta de urina identificados com o nome e os números um e dois (para a primeira e segunda coletas de urina do dia) foram entregues aos participantes. Indivíduos foram instruídos sobre os procedimentos de coleta e armazenamento e a necessidade de jejum para a coleta de sangue.
No dia seguinte (segunda fase), os participantes entregaram as amostras de urina e foram submetidos à coleta de amostras de sangue em local pré determinado. As amostras de sangue e urina colhidas foram identificadas. A primeira amostra de urina foi utilizada para análise de sedimentos e a segunda para mensuração dos níveis de creatinina e sódio. O sangue foi centrifugado e colocado em recipientes de isopor com gelo e transportado para o laboratório de referência onde as análises foram realizadas. No mesmo dia, o peso (em quilogramas) foi medido em balança digital portátil (Plena(r), Brasil) e estatura (em metros) com um estadiômetro (Alturexata(r), Brasil), ambos seguindo as técnicas recomendadas.
No tocante a medidas antropométricas, o índice de massa corporal (IMC) foi calculado como a razão ao invés de relação entre o peso corporal e o quadrado da altura. A classificação recomendada pela OMS foi utilizada da seguinte forma: baixo peso, IMC < 18,5 kg/m2; peso normal, IMC ≥ 18,5 kg/m2 e < 25 kg/m2; sobrepeso, IMC ≥ 25 kg/m2 e < 30 kg/m2; e obesidade, IMC ≥ 30 kg/m2.10 A circunferência abdominal (CA) foi medida no ponto médio entre a última costela e a crista ilíaca em expiração plena, utilizando uma fita antropométrica não extensível (Sanny(r), Brasil). Os seguintes pontos de corte foram adotados: alto risco, CA ≥ 94 cm para homens e ≥ 80 cm para mulheres; e muito alto risco, CA ≥ 102 cm para homens e ≥ 88 cm para mulheres.11
Foram realizadas dosagens de creatinina sérica (método de Jaffé), glicemia de jejum (UV hexoquinase, automatizado), triglicerídeos (enzimático trinder, automatizado), colesterol total (enzimático trinder, automatizado), lipoproteína de alta densidade colesterol (HDL-c) (sulfato de dextran/sulfato de magnésio, automatizado) e lipoproteína de baixa densidade colesterol (LDL-c) (sulfato de dextran/sulfato de magnésio, automatizado).
A fórmula de Kawasaki5 validada para a população brasileira12 foi utilizada na estimativa da excreção de sódio. Após estimar a excreção de creatinina urinária de 24 horas (CrPr-24h) e a relação sódio-creatinina na urina aleatória (Na/CrUr), foi estimado o teor total de sódio na urina de 24 horas (Na-24h) por meio da seguinte fórmula: 23 x 16.3 x {[(Na (mEq/L) amostra casual de urina /Cr (mg/dL) amostra casual de urina x 10] x PrUCr24h}0.5. Os valores previstos para CrPr-24h (mg) = [(15.12 x peso, kg) + (7.39 x estatura, cm) - (12.63 x idade, anos)] - 79.9 (homens); e CrPr-24h (mg) = [(8.58 x peso, kg) + (5.09 x estatura, cm) - (4.72 x idade, anos)] - 74.95 (mulheres).
A função renal foi avaliada por meio da creatinina sérica e da TFGe (mL/min/1,73 m2) usando a equação proposta pelo estudo Chronic Kidney Disease Epidemiology (CKD-EPI): 141 × min(creatinina sérica/κ, 1) α × max (creatinina sérica/κ, 1)-1,209 × 0,993Idade × 1,018 se mulher, × 1,159 se negro; com: κ = 0,7 para mulheres e 0,9 para homens; α = -0,329 para mulheres e -0,411 para homens; min é a creatinina sérica mínima ou 1; e max indica a creatinina sérica máxima.13
Os dados coletados foram analisados no software STATA (STATA versão 14.0, Stata Corporation, College Station, Texas). A análise descritiva foi inicialmente realizada tanto na amostra total como por sexo. As variáveis categóricas foram apresentadas por frequências e porcentagens e as numéricas como médias e desvios-padrão (média ± DP). A normalidade das variáveis numéricas foi testada utilizando o teste de Shapiro-Wilk.
Para comparar as diferenças nas médias por sexo, utilizou-se um teste t não pareado ou o teste de Mann-Whitney. O nível de significância foi de 5%. Um modelo de regressão linear multivariada foi ajustado para determinar a relação entre TFG e excreção de sódio. Na análise de regressão, as variáveis numéricas independentes foram redimensionadas, subtraindo sua média e dividindo por seus desvios padrão. Essa padronização foi realizada para facilitar a comparabilidade da importância relativa das variáveis independentes no modelo.
O comitê de ética local aprovou o estudo PREVRENAL, foi realizado de acordo com a Resolução CNS/MS n°466/12 para pesquisas envolvendo seres humanos.
Um total de 1.211 indivíduos de ascendência africana foram incluídos na amostra final. A Tabela 1 exibe as características da amostra total agrupada por sexo. A idade média foi de 37,5 ± 11,7 anos; 52,8% eram mulheres; 89,3% declararam ter pele negra ou parda; e 58,6% tinham menos de oito anos de escolaridade. As prevalências de consumo de bebidas alcoólicas e tabagismo foram de 46,4% e 10,2%, respectivamente. Em relação à avaliação antropométrica, 13,3% dos entrevistados eram obesos com base no IMC e 30,6% apresentavam alto risco de doença cardiovascular segundo a CA.
Tabela 1 Características demográficas, socioeconômicas e antropométricas dos descendentes de africanos de Alcântara - MA, 2013
Variáveis | Total n (%) |
Homens n (%) |
Mulheres n (%) |
p-valor |
---|---|---|---|---|
Cor da pele | 0,789 | |||
Branca | 124 (10,2) | 55 (44,3) | 69 (55,7) | |
Negra ou parda | 1081 (89,3) | 514 (47,6) | 567 (52,4) | |
Outra | 6 (0,5) | 3 (50,0) | 3 (50,0) | |
Escolaridade | 0,157 | |||
≤8 anos | 709 (58,6) | 347 (48,9) | 362 (51,1) | |
>8 anos | 502 (41,4) | 225 (44,8) | 277 (55,2) | |
Renda em salários mínimos | 0,012 | |||
Sem renda fixa | 606 (50,1) | 303 (50,0) | 303 (50,0) | |
Até 1 | 429 (35,4) | 185 (43,1) | 244 (56,9) | |
> 1 e ≤ 2 | 136 (11,2) | 62 (45,6) | 75 (54,4) | |
> 2 | 40 (3,3) | 22 (55,0) | 18 (45,0) | |
Tabagismo | < 0,001 | |||
Sim | 123 (10,2) | 96 (78,1) | 27 (21,9) | |
Não fumante ou ex-fumante | 1088 (89,8) | 476 (43,8) | 612 (56,2) | |
Consumo de álcool | < 0,001 | |||
Sim | 562 (46,4) | 359 (63,9) | 203 (36,1) | |
Não etilista ou ex-etilista | 649 (53,6) | 213 (32,9) | 436 (67,1) | |
IMC (kg/m2) | < 0,001 | |||
Baixo peso | 25 (2,1) | 12 (63,9) | 13 (52,0) | |
Peso normal | 620 (51,2) | 365 (58,9) | 255 (41,3) | |
Sobrepeso | 404 (33,4) | 165 (40,8) | 239 (59,2) | |
Obeso | 161 (13,3) | 29 (18,0) | 132 (82,0) | |
CA (cm) | < 0,001 | |||
Normal | 649 (53,6) | 491 (75,6) | 158 (24,4) | |
Alto risco | 191 (15,8) | 531 (27,8) | 138 (72,2) | |
Muito alto risco | 371 (30,6) | 28 (7,6) | 343 (92,4) |
IMC: índice de massa corporal; CA: circunferência abdominal.
Foi observado maior ocorrência de sobrepeso e obesidade, assim como maior circunferência abdominal (CA), entre as mulheres. Renda mais elevada e maiores índices de tabagismo e consumo de álcool foram registrados entre os homens (Tabela 1).
As prevalências de TFG reduzida (<60) e elevada (> 120 mL/min/1,73 m2) foram de 0,5% e 32,9%, respectivamente (dados não apresentados em tabela). A média da excreção urinária de sódio da amostra total foi de 204,6±86,2 mmol/dia. Os indivíduos do sexo masculino apresentaram valores médios mais elevados de PAS (128,6 ± 16,5 mm Hg x 122,6 ± 20,0 mm Hg, p <0,001) e creatinina sérica (0,8 ± 0,1 mg/dL x 0,6 ± 0,1 mg/dL; p <0,001) do que as mulheres. Por outro lado, as mulheres apresentaram valores mais elevados de colesterol total, HDL-c, LDL-c e TFG estimada pela equação CKD-EPI do que os indivíduos do sexo masculino (Tabela 2).
Tabela 2 Características segundo variáveis clínicas e bioquímicas dos descendentes de africanos de Alcântara - MA, 2013
Variáveis | Total | Homens | Mulheres | p-valor |
---|---|---|---|---|
PAS (mmHg) | 125,4 ± 18,7 | 128,6 ± 16,5 | 122,6 ± 20,0 | < 0,001 |
PAD (mmHg) | 76,0 ± 11,3 | 75,5 ± 11,5 | 76,5 ± 11,2 | 0,205 |
Glicemia em jejum (mg/dL) | 100,4 ± 26,5 | 99,5 ± 22,6 | 102,2 ± 29,6 | 0,369 |
Colesterol total (mg/dL) | 186,6 ± 43,8 | 176,8 ± 38,6 | 195,3 ± 46,4 | < 0,001 |
HDL-c (mg/dL) | 49,0 ± 17,9 | 47,3 ± 13,9 | 50,5 ± 20,6 | < 0,001 |
LDL-c (mg/dL) | 114,0 ± 36,3 | 106,5 ± 32,8 | 120,5 ± 37,9 | < 0,001 |
Triglicerídeos (mg/dL) | 120,6 ± 79,0 | 117,7 ± 76,9 | 123,1 ± 80,8 | 0,149 |
Creatinina sérica (mg/dL) | 0,7 ± 0,2 | 0,8 ± 0,1 | 0,6 ± 0,1 | < 0,001 |
TFG (mL/min/1,73m2) | 111,8 ± 15,3 | 110,6 ± 14,6 | 112,8 ± 15,9 | < 0,001 |
Excreção urinária de sódio (mmol/dia) | 204,6 ± 86,2 | 206,5 ± 77,5 | 202,8 ± 93,9 | 0,144 |
Valores expressos em média +SD; PAS: pressão arterial sistólica; PAD: pressão arterial diastólica; HDL-c: lipoproteína de alta densidade colesterol; LDL-c:
De acordo com a regressão linear multivariada, a TFG foi correlacionada independentemente com excreção de sódio (β = 0,11; p < 0,001), idade (β = -0,67; p < 0,001), sexo feminino (β = -0,20; p <0,001) e IMC (β = -0,09; p <0,001) (Tabela 3).
Tabela 3 Análise de regressão linear multivariada para taxa de filtração glomerular estimada pela equação CKD-EPI
Variáveis | Univariada | Multivariada | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Β | p-valor | CI 95% | Β | p-valor | CI 95% | |
Idade | 0,49 | < 0,001 | 0,48 - 0,52 | -0,67 | < 0,001 | -0,72 - -0,62 |
Sexo feminino | 0,86 | 0,011 | 0,77 - 0,97 | -0,20 | < 0,001 | -0,29 - -0,12 |
IMC | 0,81 | < 0,001 | 0,77 - 0,86 | -0,09 | < 0,001 | -0,14 - -0,04 |
Glicemia em jejum | 0,84 | < 0,001 | 0,80 - 0,90 | |||
PAS média | 0,74 | < 0,001 | 0,70 - 0,78 | |||
PAD média | 0,74 | < 0,001 | 0,70 - 0,78 | |||
Excreção urinária Na | 1,08 | 0,008 | 1,02 - 1,15 | 0,11 | < 0,001 | 0,07 - 0,15 |
β = coeficiente do modelo; IC: intervalo de confiança; IMC: índice de massa corporal; PAS: pressão arterial sistólica; PAD: pressão arterial diastólica.
No presente estudo foi observada uma média de 204,6 ± 86,2 mmol/dia de excreção de sódio em amostra isolada de urina entre brasileiros de ascendência africana, representando um consumo de sal de 11,9 g/dia (4,7 g de sódio/dia). Esse valor é semelhante ao relatado para a população brasileira, que é de aproximadamente 11,4 g/dia de sal (4,5 g de sódio/dia).14 Em níveis mundiais, os valores variam de nove a doze gramas por pessoa por dia.15 Esse valor ultrapassa em mais de duas vezes a recomendação da OMS, que é de 5 g de sal/dia (2,0 g de sódio/dia).16
Outros estudos relataram valores mais baixos. O estudo Prevention of Renal and Vascular End-stage Disease (PREVEND) realizado na Holanda com 7.543 adultos descreveu uma excreção média de sódio de 24 h de 142 ± 51 mmol/dia, o que corresponde a uma ingestão diária de 8,2 g de sal/dia (3,3 g de sódio/dia).17 Indivíduos asiáticos apresentaram valores ainda mais baixos, embora ainda excedam as recomendações da OMS,16 com valor médio de 125 ± 53,4 mmol/dia (7,3 g de sal/dia),18 destacando a necessidade de esforços adicionais para reduzir consumo de sal.
No presente estudo, observamos uma correlação positiva entre excreção de sódio em amostra isolada de urina e TFG. Note-se que os valores médios de TFG na população estavam dentro dos parâmetros de normalidade; apenas seis pacientes (0,5%) apresentaram TFG reduzida (<60 mL/min/1,73 m2), enquanto 32,9% apresentaram TFG >120 mL/min/1,73m2. Portanto, excreção de sódio elevada ocorreu em indivíduos com função renal relativamente preservada. A correlação positiva entre TFG e níveis muito elevados de excreção de sódio pode determinar quadro de hiperfiltração.
Um estudo realizado por Park et al.19 identificou uma associação entre hiperfiltração glomerular e aumento da mortalidade por todas as causas em uma população aparentemente saudável. O estudo também apontou a possibilidade de se utilizar a hiperfiltração glomerular como um novo marcador de mortalidade.
A literatura sugere que os afro-americanos são mais propensos a retenção de sódio e hipertensão sensível ao sal do que os caucasianos.20 De acordo com Price et al., mesmo afro-americanos saudáveis exibem fluxo plasmático renal 10% menor do que os níveis observados em caucasianos pareados por idade, possivelmente devido à ação de um sistema renina-angiotensina (SRA) intrarrenal ativado.21 Brenner et al. também salientam que pessoas de ascendência africana têm menos néfrons do que caucasianos.22
Além disso, a ingestão elevada de sódio foi associada a progressão da DRC. Deficiências na excreção de sódio são frequentemente associadas a função renal comprometida, causando hipertensão arterial e proteinúria, hiperfiltração glomerular e resposta reduzida ao bloqueio do SRA intrarrenal.2,23
Os dados de um estudo observacional prospectivo realizado em pacientes com doença renal estágio 3 atendidos na atenção primária mostraram que os pacientes com DRC que reduziram a ingestão de sódio apresentaram diminuição da pressão arterial, proteinúria e velocidade da onda de pulso no período de um ano. Uma análise de subgrupos que incluiu apenas participantes com albuminúria mostrou melhora na albuminúria somente naqueles que diminuíram o consumo de sódio.24 Portanto, recomenda-se reduzir a ingestão de sódio em adultos para valores <2 g por dia (ou <5 g de cloreto de sódio) para preservar a função renal.25
O presente estudo também encontrou correlação inversa entre idade e TFG. Sabemos que a idade deve ser considerada no estabelecimento dos valores de referência da TFG, uma vez que a função renal diminui com a idade.26 Soares et al.27 mostraram que a TFG começa a diminuir significativamente após os 45 anos de idade, com uma correlação inversa significativa entre idade e TFG (r = -0.33, p <0.001).
Granerus e Aurell28 analisaram os dados de oito estudos realizados entre 1950 e 1980, encontrando declínios na TFG de até 4 mL/min por década para idades <50 anos e de até 10 mL/min para idades >50 anos. Posteriormente, Poggio et al.29 mostraram que a TFG diminui a uma taxa de aproximadamente 4 mL/min por década em indivíduos mais jovens (<45 anos).
No presente estudo, a TFG foi mais elevada nas mulheres, corroborando com estudo de Carrero30 que destacou a influência do sexo na progressão da DRC. As possíveis explicações as possíveis explicações para as diferenças nas reduções da TFG influenciadas pelo sexo incluem diferenças culturais, sociais e ambientais, tais como adesão ao tratamento ou percepção da doença, e diferenças biológicas tais como fatores genéticos e hormonais.31
A obesidade também teve impacto na TFG. Nossos achados mostraram que o IMC correlacionou-se negativamente com a TFG, ao contrário de outros estudos publicados anteriormente. A hiperfiltração glomerular é vista como um possível elo entre obesidade e DRC. Ogna et al.32 avaliaram 1339 indivíduos e identificaram prevalências de sobrepeso e obesidade de 32,2% e 14,2%, respectivamente. O CrCl médio dos indivíduos com sobrepeso foi 110 [87-136] mL/min e 124 [97-150] mL/min em indivíduos obesos (p <0,001). A prevalência de hiperfiltração glomerular aumentou com as categorias crescentes de IMC (10,4%, 20,8% e 34,7%, respectivamente, p <0,001). Esta associação positiva manteve-se significativa após o ajuste para outros fatores de risco conhecidos de DRC, sugerindo que a hiperfiltração glomerular pode representar um fenótipo renal precoce na obesidade.
Outro estudo conduzido em Melbourne com indivíduos com idades entre 18 e 57 anos mostrou que 85,6% foram classificados com sobrepeso ou obesos segundo o IMC e identificou uma associação positiva entre TFGe e IMC (r = 0,23; p = 0,02) e circunferência abdominal (r = 0,23; p = 0,02), embora nenhuma das medidas antropométricas tenha sido relacionada independentemente com TFGe. Houve uma tendência para o IMC se relacionar com a TFGe, particularmente no grupo com sobrepeso, mas tal associação não se revelou estatisticamente significativa.33 Em concordância com nosso achados, um estudo transversal com 1.100 indivíduos chineses relatou diminuição significativa da TFGe, negativamente correlacionada ao IMC independentemente da presença de diabetes ou hipertensão. Cada aumento de 1,0 kg/m2 no IMC levou a uma diminuição de 0,5 mL/min/1,73m2 na TFGe.34 Outro estudo realizado com uma amostra representativa da população britânica demonstrou que o risco de DRC era 2,5 vezes maior em participantes obesos em relação a participantes com peso normal no modelo ajustado (IMC = 30,0 - 39,9 kg/m2: OR ajustada = 2,78 (IC 95% = 1,75 - 4,43); IMC ≥ 40,0 kg/m2: OR ajustada = 2,68 (IC 95% = 1,05-6,85).35
Um estudo observacional realizado com 3.376.187 indivíduos americanos com TFGe >60 mL/min/1,73m2 também avaliou sua associação com IMC em diferentes faixas etárias. O estudo revelou que 8,1% dos pacientes apresentaram declínio rápido da função renal (>5 mL/min/1,73 m2), com associação consistente em forma de U com o IMC que se tornou mais acentuada com o aumento da idade. Pacientes com menos de 40 anos foram a exceção, uma vez que o IMC nesse grupo não pareceu ser preditor de comprometimento da função renal.36
A estimativa da ingestão de sódio a partir de amostra de urina isolada, em nível populacional, tem sido cada vez mais utilizada como alternativa conveniente e acessível, embora a urina de 24 horas seja o padrão-ouro. Entretanto, amostras de urina isolada podem indicar pouca excreção urinária de 24 horas devido a variações individuais3, o que representa uma limitação.
Muitas fórmulas foram propostas para converter o sódio presente em amostras de urina isolada em estimativa de excreção de 24h ajustando a concentração urinária pela creatinina. Um estudo com diferentes populações relatou coeficiente de correlação interclasse mais elevado entre a excreção estimada e medida de sódio usando a equação de Kawasaki em comparação com as equações INTERSALT e de Tanaka.37 No Brasil, Mill et al. desenvolveram um estudo para validar as equações de Tanaka e Kawasaki.12
Os pontos fortes deste estudo residem na grande amostra representativa e na seleção aleatória de participantes pertencentes a uma população vulnerável. Este foi o primeiro estudo com individuos afrodescendentes do Brasil em que foram avaliadas a TFGe e a excreção de sódio.
Uma limitação do estudo é a natureza transversal da amostragem de urina. Não usamos o padrão-ouro para medir a excreção de sódio, mas sim uma equação de estimativa já validada no Brasil.
Embora haja variação individual na excreção de sódio durante o dia, a amostra isolada tende a subestimar ou superestimar sua excreção. Contudo, a estimativa de sódio urinário pode representar um meio de monitorar a ingestão de sódio em estudos populacionais e em indivíduos de baixa renda, em que a coleta de urina de 24h pode ser logisticamente difícil por uma série de motivos.4
O presente estudo demonstrou uma baixa ocorrência de redução da TFG elevada excreção de sódio no grupo étnico em questão. A excreção de sódio foi a única variável que se correlacionou positivamente com a TFG, indicando que níveis elevados podem contribuir para cenários de hiperfiltração com possíveis consequências negativas futuras. Sugerimos que a medição da excreção de sódio seja incorporada como medida preventiva da DRC e doença cardiovascular em populações com características clínicas semelhantes.