versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.1 São Paulo jan./mar. 2018 Epub 09-Abr-2018
http://dx.doi.org/10.1590/1678-4685-jbn-3743
O oxalato, a forma iônica do oxalato plasmático (POx), é um produto final insolúvel do metabolismo de alimentos derivados de várias fontes animais e vegetais. Elevações de POx e oxalose, isto é, deposição de oxalato de cálcio nos tecidos, pode levar a hiperoxalúria primária (HP) ou secundária (HS).1,2 As HPs são um grupo de raros distúrbios metabólicos recessivos autossômicos que resultam na superprodução de oxalato,3 causadas pela deficiência de três diferentes enzimas e que afetam uma organela intracelular diferente; 1,2 os distúrbios são classificados em HP tipos 1, 2 e 3.
A HS pode ocorrer quer como em consequência da ingestão excessiva de oxalato ou precursores de oxalato, como o etilenoglicol, ou pela diminuição da excreção de oxalato pelos rins.1 A ingestão excessiva ou a absorção aumentada (distúrbios intestinais) de oxalato são causas generalizadas de aumento da excreção urinária de oxalato e urolitíase. As duas são raramente associadas a elevações de POx e ocorrem na presença de taxa de filtração glomerular normal (TFG).3-5 Assim, ele não pode ser processado e acaba sendo eliminado através da filtração normal pelos rins. Em pacientes com doença renal crônica (DRC), o POx acumula-se de 10 a 30 vezes acima dos níveis normais em função da sua excreção reduzida. Nem a hemodiálise nem a diálise peritoneal conseguem normalizar os níveis de POx em pacientes com DRC; espera-se reduções de 60% após um procedimento de hemodiálise normal, mas o POx retorna a níveis pré-dialíticos em 48 horas.7 Em comparação à HP, manifestações clínicas de oxalose urêmica, tais como nefrolitíase, fraturas e dor óssea, são incomuns.1,7
Não obstante, quedas na TFG podem aumentar o POx e levar a complicações cardiovasculares.1,2,6,7 Salye e cols. relataram que HS, ou seja, deposição renal e miocárdica de oxalato de cálcio, em associação com insuficiência renal é frequente e muitas vezes extensa.8 Além disso, os autores demonstraram que a incidência e gravidade da deposição de oxalato estão relacionadas à duração da insuficiência renal.8,9 Rechet e cols. descreveram uma associação entre altos níveis de POx e lesão endotelial levando a efeitos aterogênicos por elevação de cálcio intracelular em células endoteliais.7 Em rins transplantados, POx pode sobrecarregar o enxerto com potencial dano tubular, afetando sua função.3,6,11
Portanto, foi elaborado um estudo piloto com POx medido, TFG medida (TFGm, depuração de iohexol) e TFG estimada (TFGe, creatinina plasmática) em pacientes com vários estágios de DRC.
Para este estudo piloto, 72 pacientes com DRC sem HP foram recrutados entre outubro de 2014 e novembro de 2014 para serem submetidos a medição de TFG (depuração de iohexol). Dez pacientes apresentavam DRC grave (estágio IV-V) e POx sem TFGm. A amostra foi dividida em grupos de acordo com a TFG segundo a classificação KDIGO.12
O POx foi medido num analisador Pentra 400 (HORIBA) por ensaio colorimétrico modificado sensível para oxalato e oxidase conforme descrito por Petrarulo e cols. Em resumo, o oxalato é convertido em peróxido de hidrogênio, que, na presença de peroxidase, reage (POD) com cloridrato da hidrazona da 3-metil-2-benzotiazolinona (MBTH) e 3-(dimetilamino) ácido benzoico (DMAB), formando um composto de quinona azul. A intensidade da cor é proporcional à concentração de POx na amostra e é lida a 600 nm com 700 nm como comprimento de onda de referência. A otimização do ensaio incluiu a desproteinização do plasma pelo método do ácido sulfossalicílico (ASS) e por tratamento com carvão vegetal. Os valores de referência são < 5 µmol/L.13
A depuração de iohexol foi realizada por meio de técnica padrão com injeção em bolus única. Em resumo, foi administrada uma injeção endovenosa de 6 mL (Omnipaque, 300 mg/mL) e três amostras de sangue foram colhidas do braço contralateral após 120, 180 e 240 minutos. A TFGm foi calculada a partir da inclinação das concentrações plasmáticas por meio de um modelo de um compartimento corrigido pela fórmula de Bröchner-Mortensen.13 A concentração plasmática de iohexol foi determinada pelo método adaptado de CLAE descrito por Cavalier e cols. (15). Os resultados foram relatados em mL/min/1,73 m2.
A creatinina plasmática (PCr) foi medida pelo método enzimático padronizado IDMS e a TFGe foi calculada pela equação CKD-EPI.12
Avaliamos a distribuição das variáveis contínuas calculando média ± desvio padrão e das variáveis categóricas por número (porcentagem) em todo o conjunto de dados, assim como em subgrupos definidos em função das características da população do estudo e dos candidatos a doação com doador vivo. O erro foi calculado subtraindo TFGe de TFGm (TFGm - TFGe) para cada indivíduo; o erro percentual foi esta diferença em relação ao TFGm, isto é, (TFGm-TFGe)/ TFGm. Calculamos o viés como o erro médio, que era apropriado para a distribuição.
O viés, uma expressão de erro sistêmico na TFG estimada, é definido como a mediana ou média das diferenças entre TFG estimada e medida. A análise foi realizada no R para Windows, versão 3.1.1 (R-Cran project, http://cran.r-project.org/).
Todos os procedimentos foram realizados de acordo com os padrões éticos dos comitês de pesquisa institucionais e/ou nacionais e em conformidade com a Declaração de Helsinque de 1964 e suas alterações posteriores ou padrões éticos comparáveis. Formulários de consentimento informado foram assinados por todos os participantes ou seus representantes legais. O formulário de consentimento continha informações sobre o próprio procedimento, bem como sobre a possível utilização dos dados para fins de pesquisa. De acordo com as leis francesas atuais, um estudo observacional que não altera a administração de rotina dos pacientes não precisa ser declarado ou submetido a um conselho de ética de pesquisa (Lei Huriet-Sérusclat 88-1138 de 20 de dezembro de 1988 e suas subsequentes emendas; texto disponível em http://www.chu-toulouse.fr/IMG/pdf/loihuriet.pdf).
As características clínicas dos pacientes encontram-se listadas na Tabela 1. A média de idade e IMC foram de 50,0 [IIQ, 40,0-63,0] anos e 25,3 [IIQ, 22,3-32,0] kg/m2, respectivamente.
Tabela 1 Características dos pacientes
Número de participantes | 72 |
---|---|
Idade (anos) | 50 [40; 63] |
Homens | 40 (56,3) |
Diagnóstico | |
DRC | 60 (83) |
Candidato a doação com doador vivo | 12 (17) |
Peso (kg) | 72,0 [60,5; 90,0] |
Estatura (cm) | 168,0 [160,0; 174,5] |
Superfície corporal (m2) | 1,83 [1,63; 2,01] |
Índice de massa corporal (kg/m2) | 25,3 [22,3; 32,0] |
TFGm (mL/min/1,73 m2) (n = 62) | 74,5 [53,0; 91,0] |
TFGe (mL/min/1,73 m2) | 70,0 [39,0; 96,0] |
TFGm-TFGe média (IC 95%), mL/min/1,73 m2 (N = 62) | -3,8 (-7,0; -0,5) |
Oxalato plasmático | |
Oxalato plasmático < 5 µmol/L | 67 (93,0) |
Oxalato plasmático ≥ 5 µmol/L | 5 (7,0) |
Estágios da DRC | |
Estágio I | 16 (22,2) |
Estágio II | 28 (38,9) |
Estágio IIIa | 4 (5,5) |
Estágio IIIb | 10 (13,9) |
Estágio IV | 11 (15,3) |
Estágio V | 3 (4,0) |
Os valores são medianas (IIQ) ou n (%), salvo indicação em contrário DRC: doença renal crônica; TFG: taxa de filtração glomerular; IIQ: intervalo interquartil. Os estágios de DRC foram determinados segundo a TFGm ou a TFGe quando a primeira não estivesse disponível.
A Tabela 1 e a Figura 1 mostram o desempenho da equação de CKD-EPI em relação ao iohexol. A equação CKD-EPI apresentou erro médio de -3,0 (IC 95%, -7,0 a -0,5) mL/min/1,73 m2 sem diferença estatística para TFG. Portanto, o uso da CKD-EPI em pacientes sem TFGm foi considerado adequado para a avaliação dos níveis de POx.
Com a exceção de um paciente com TFGm, todos apresentaram concentração de POx < 5 µmol/L. Um paciente apresentou valores anormais de POx (7 µmol/L) com TFGm de 30 mL/min/1,73 m2. Dos 14 pacientes com DRC grave (TFG < 30 mL/min/1,73 m2), quatro apresentaram POx ligeiramente aumentado (entre 6 e 12 µmol/L) (Tabela 1).
O POx pode se elevar na DRC em função da redução da TFG e da secreção dos túbulos renais proximais.1,2,15-18 No entanto, poucos autores estudaram especificamente a correlação entre POx e estágio da TFG.7,15-20 Além disso, alguns autores estabeleceram um limiar de POx que diferencia a HP das outras causas de elevações do POx.1,2
Constable e cols. relataram que o POx elevou-se por um fator de 10 em indivíduos com HP que ainda possuíam boa função renal.18 Comparativamente, Morgan e cols. demonstraram em pacientes com DRC não-HP que a retenção de oxalato é aumentada quando a TFG é inferior a 20 mL/min/1,73m2.20 Do mesmo modo, Constable e cols. relataram que o pool metabólico de oxalato se expande rapidamente quando a TFG está abaixo de 25 mL/min/1,73m2,19 o que está de acordo com nossos resultados. Barratt e cols. descobriram que o POx também está aumentado na doença renal terminal (DRT).19 Bhasin e cols. relataram que o POx era superior a 80 µmol/L em pacientes com DRT (1,2). Elgstoen e cols. relataram que o POx médio antes de transplante renal era de 35,0 µmol/L (IC 95%: 10,4 a 93,9) e que 98% dos valores estavam acima dos limites normais.11
No presente estudo, encontramos POx ligeiramente aumentado com TFG < 30 mL/min/1,73 m2, bem acima do nível em que terapia renal substitutiva é necessária. Contudo, não foi possível demonstrar uma correlação entre TFG e POx.
Os pontos fortes do presente estudo são: i) o método de referência (iohexol) para a medição direta de TFG para a maioria dos pacientes; e ii) o amplos intervalo dos níveis de TFG (7 a 139 mL/min/1,73 m2).
As limitações do estudo são: i) a amostra populacional incluiu poucos pacientes com TFG < 30 mL/min/1,73 m², o que não permitiu estabelecer uma correlação entre POx e TFG.
O presente estudo sugere que o POx pode se elevar apenas em estágios avançados de DRC. Em nossa opinião, valores superiores a 5 µmol/L com TFGe > 30 mL/min/1,73 m2 são sugestivos de HP. No entanto, novos estudos devem determinar a cinética do POx em pacientes com DRC avançada e em indivíduos em diálise.