versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465
Esc. Anna Nery vol.22 no.1 Rio de Janeiro 2018 Epub 01-Fev-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2017-0125
Em seres humanos, o cortisol é o principal hormônio glicocorticoide produzido pelas glândulas adrenais após ativação do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA). Esse hormônio apresenta um papel central em diversos processos biológicos, incluindo o metabolismo energético, manutenção da pressão sanguínea, imunomodulação, regulação das funções cognitivas e de memória e da resposta ao estresse.1,2 Sua secreção segue uma profunda ritmicidade circadiana, com os mais altos níveis em torno de trinta minutos, após acordar e gradual diminuição ao longo do dia. Entretanto, estressores físicos ou psicológicos, diversos tipos de fármacos, além de fatores genéticos e sociodemográficos apresentam a capacidade de alterar a secreção do cortisol, estimulando ou inibindo o eixo HHA.3,4
O uso da saliva como fluido diagnóstico é uma prática relativamente recente e, embora diversos biomarcadores possam ser analisados, incluindo metais pesados, enzimas e DNA, a dosagem do cortisol como marcador de estresse neurobiológico e fadiga tem se mostrado promissora, com vários ensaios comerciais disponíveis.5-7 O cortisol salivar representa a forma livre e biologicamente ativa desse hormônio e sua coleta é simples, segura e não invasiva, podendo ser realizada no ambiente de trabalho do participante.8
A avaliação dos efeitos do estresse ocupacional na secreção salivar do cortisol tem apresentado resultados inconclusivos, embora vários estudos demonstrem uma maior ativação do eixo HHA durante os dias de trabalho, quando comparado aos fins de semana, em diferentes tipos de trabalhadores.9-15 Adicionalmente, baixos níveis de cortisol ao acordar e declínio diurno do cortisol ao longo do dia têm sido considerados preditores de fadiga, burnout e exaustão vital.16-18 Os profissionais de enfermagem, em virtude de longas jornadas de trabalho em diferentes turnos, estão especialmente suscetíveis ao estresse e fadiga crônicos, cujas consequências, a longo prazo, incluem a dessincronização do eixo HHA e consequente adoecimento físico e mental, diminuição da capacidade para o trabalho, aumento dos acidentes ocupacionais e absenteísmo.19-22
Diante do exposto, o objetivo do presente estudo foi identificar na literatura nacional e internacional evidências científicas sobre a associação entre o trabalho em turnos e alterações do ritmo circadiano do cortisol, índices de estresse e fadiga em trabalhadores de enfermagem.
Revisão integrativa da literatura, elaborada a partir das recomendações de Ganong23, que dividem a pesquisa em seis etapas. Na primeira etapa, foi descrita a pergunta norteadora; na segunda, foram selecionados os artigos da amostra; na terceira, foi feita a eleição das características da pesquisa revisada; na quarta, foi realizada a análise dos achados, de acordo com os critérios de inclusão e exclusão estabelecidos; na quinta etapa, fez-se a interpretação dos resultados e na sexta, foi elaborado este artigo com a finalidade de divulgar os resultados obtidos.
Pergunta de investigação:
- É possível determinar, com base na literatura, a existência de associação entre esquemas de trabalho em turnos, trabalho de enfermagem e alterações do ritmo circadiano do cortisol, índices de estresse e fadiga?
Para a busca dos artigos, foram utilizadas as seguintes bases de dados: Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (Medline); Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS); Web of Science (WOS), Scopus e Scientific Eletronic Library Online (SciElo).
Os descritores utilizados, em português e inglês, foram: Cortisol OR Estresse OR Fadiga AND Enfermagem AND Turno de trabalho, que fazem parte dos Descritores em Ciências da Saúde - DeCS e Medical Subject Headings - MeSH , sendo respeitados os critérios de busca estabelecidos em cada base de dados.
Os critérios de inclusão estabelecidos para o estudo foram: artigos originais resultantes de estudos de abordagem quantitativa e artigos de revisão da literatura, disponíveis nas bases de dados, publicados em Inglês ou Espanhol ou Português, no período de janeiro de 2006 a outubro de 2016 e que fornecessem informações para responder à pergunta de investigação. Excluímos desta pesquisa cartas e editoriais, bem como artigos não disponíveis na íntegra. Os artigos que se repetiram nas bases de dados foram agregados na base de dados que continha o maior número de artigos.24
Os dados foram coletados com dupla busca e leitura dos artigos na íntegra e seguindo para registro das informações, o formulário adaptado do instrumento de estudos de revisão usado pela Rede Internacional de Enfermagem em Saúde Ocupacional - REDENSO.25 O instrumento contempla os seguintes itens: identificação do artigo original, características metodológicas do estudo, avaliação do nível de evidência segundo a escala de Melnyk e Fineout-Overholt26 e avaliação dos resultados encontrados, além de lacunas e avanços obtidos pelos estudos.
Os resultados são apresentados de forma descritiva, seguindo as recomendações do guia PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analysis)26,27 fazendo uso de quadros, objetivando-se sumarizar as evidências da relação entre os níveis de cortisol, estresse e a fadiga entre os trabalhadores de enfermagem e as limitações apresentadas por cada estudo.
A busca inicial nas bases de dados identificou 1.046 artigos potencialmente relevantes. Desse número, 165 atenderam aos critérios de inclusão e foram lidos na íntegra (Figura 1).
Após a leitura e aplicação dos critérios de exclusão, três artigos foram incluídos neste estudo (Quadro 1) por apresentarem evidências sobre a relação níveis de cortisol, estresse ou fadiga no trabalho em turnos na enfermagem. Com relação ao nível de evidência, os artigos incluídos apresentaram nível seis de evidência, de acordo com a escala proposta por Melnyk e Fineout-Overholt.26
Quadro 1 Distribuição dos artigos selecionados conforme citação, base de dados, país, título, revista, volume, número, página, delineamento do estudo, número de participantes do estudo, objetivo do estudo, categoria profissional, associação de fadiga e nível de cortisol, associação de estresse e nível de cortisol, evidências e limitações do estudo – janeiro de 2006 a outubro de 2016.
Baba M, et al, 2015 / Medline / Japão | Analysis of salivary cortisol levels to determine the association between depression level and differences in circadian rhytms of shift-working | Journal of Occupational Health, V. 57, P. 237-244 | Descritivo, transversal, quantitativo | 40 | Determinar se existem diferenças no ritmo circadiano do cortisol de enfermeiros de acordo com os níveis de depressão, fadiga física e mental | Enfermeiros | Não houve associação significativa | Não avaliada | - Profissionais do turno noturno com depressão severa apresentaram níveis de cortisol salivar significativamente maiores no início da manhã, sem correlação com a fadiga física e mental. | - Baixo número amostral- Pequeno número de fatores de exclusão - Nenhum método de controle de aderência ao protocolo de coleta- Foi permitido aos participantes coletarem amostras 30 minutos antes ou após o horário pré-determinado |
Anjum B, et al, 2011 / Medline / Índia | Association of salivary cortisol with chronomics of 24 hours ambulatory blood pressure/heart rate among night shift workers | BioScience Trends, V. 5, P. 182-188 | Descritivo, transversal, quantitativo | 22 | Determinar se o trabalho noturno promove alterações no padrão circadiano da pressão sanguínea, frequência cardíaca e cortisol | Enfermeiros | Não avaliada estatisticamente | Não avaliada | Embora não significativas, houve alterações nos padrões circadianos da pressão sanguínea e cortisol durante o turno noturno. Profissionais do turno noturno relataram fadiga, dores de cabeça e inadequada qualidade do sono. | - Baixo número amostral - Poucos fatores de exclusão;- Amostras não foram coletadas em tempo fixo |
Campos JF, David HMSL, 2014 / LILACS / Brasil | Análise de cortisol salivar como biomarcador de estresse ocupacional em trabalhadores de enfermagem | Revista de Enfermagem da UERJ, V. 22, P. 447-453 | Descritivo, transversal, observacional | 57 | Mensurar e analisar os níveis de cortisol salivar de trabalhadores de enfermagem de um hospital público do Rio de Janeiro | Enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem | Não avaliada | Não houve associação significativa | - Índices de cortisol salivar não estiveram estatisticamente associados com os esquemas de trabalho dos profissionais- Índice da CAR significativamente maior em profissionais sem companheiros e com renda mensal de até R$2.000,00;- Responsividade do eixo HPA frente a estímulo estressante significativamente maior em homens do que em mulheres - Profissionais sem companheiros apresentaram níveis diurnos de cortisol estatisticamente maiores |
- Medidas de cortisol com elevados desvios-padrão- Adoção de numerosos fatores de exclusão - Fatores como consumo de cafeína e fase do ciclo menstrual foram desconsiderados |
1Número de participantes no estudo
Todos os artigos incluídos na presente revisão apresentaram baixo nível de evidência ao associar o cortisol salivar com o estresse ou fadiga entre os trabalhadores de enfermagem. Apenas um estudo avaliou uma possível associação entre fadiga ou níveis de cortisol e turno de trabalho em enfermeiros, sem, contudo, encontrar resultados significativos.28 Em um outro estudo, enfermeiros do turno noturno apresentaram alterações no padrão circadiano de secreção do cortisol que estiveram clinicamente associadas à sonolência, fadiga e distúrbios do sono.19
Com relação ao estresse ocupacional, secreção do cortisol e turno de trabalho, os resultados foram igualmente inconclusivos, sendo que em um estudo os níveis de cortisol salivar dos profissionais apresentaram um padrão típico de secreção, independentemente do turno de trabalho7, enquanto em outros dois estudos, profissionais do turno noturno apresentaram alterações na secreção diária de cortisol, porém sem significância estatística.19,28 Não foram encontrados artigos que avaliassem concomitantemente os níveis de fadiga, estresse e cortisol salivar em enfermeiros.
Diferentes metodologias de coleta e análise do cortisol têm sido utilizadas na tentativa de identificar a medida mais representativa do eixo HHA. A variabilidade dos desenhos metodológicos pode ser uma explicação plausível para a inconsistência dos resultados encontrados. Os protocolos de coleta dos estudos selecionados variaram de um a três dias, sendo que em apenas um estudo analisou-se a concentração de cortisol ao acordar.7 Dentre os artigos selecionados, apenas um analisou amostras de saliva coletadas durante dois dias (dia de trabalho e folga) enquanto dois estudos analisaram amostras provenientes de um único dia.
O número total de amostras analisadas ao longo do dia e o momento da coleta também variaram, sendo que apenas um estudo analisou uma amostra ao acordar. Dados da literatura têm demonstrado um aumento na confiabilidade dos resultados quando amostras são analisadas por pelo menos dois dias consecutivos, ao invés de um maior número de amostras por dia.5 Embora não haja um consenso quanto à melhor estratégia de amostragem, maiores respostas do cortisol após exposição ao estresse psicossocial são obtidas pela manhã, sendo a resposta do cortisol ao acordar (CAR) uma medida promissora.
O padrão de secreção de cortisol na primeira hora após acordar tem sido associado com fadiga, burnout, exaustão, sintomas depressivos e recuperação do ritmo diurno após o trabalho em turnos.29-33 Adicionalmente, não houve consenso quanto à avaliação da atividade secretora do cortisol, de modo que dois estudos escolheram analisá-la em ocasiões fixas19,28 e dois utilizaram índices-padrão de secreção do cortisol como a CAR e área sob a curva (AUC).7
Outra possível explicação para a inconsistência dos dados foi o baixo número amostral dos estudos. Os autores relataram a adoção de numerosos fatores de exclusão, a perda de amostras por quantidade insuficiente de saliva e a não aderência ao protocolo de coleta como principais causas desse fenômeno. Sabe-se que medidas confiáveis de cortisol são de difícil obtenção, desde que o eixo HHA responde sensivelmente a uma variedade de eventos externos e internos.33-35
Dada a grande variabilidade intra e interindividual das medidas do cortisol, o controle das principais variáveis confundidoras por meio de técnicas estatísticas e a determinação dos fatores de exclusão com base na pergunta da pesquisa tendem a produzir resultados mais robustos e passíveis de generalização.36-39 Nos artigos analisados, não houve consenso quanto à consideração dos fatores interferentes na secreção do cortisol como uso de contraceptivos orais, cafeína e atividade física.
Recomenda-se que, durante a fase de planejamento do estudo, as variáveis confundidoras sejam identificadas com base na literatura existente. A ausência de controle sobre essas variáveis diminui o poder das análises estatísticas e associações podem não ser devidamente identificadas.33,40
Um dos maiores problemas envolvendo coleta de saliva pelos próprios participantes relaciona-se com a obtenção de amostras confiáveis, principalmente se as mesmas são obtidas durante a primeira hora após acordar. Nesse período, os níveis de cortisol variam muito rapidamente, de modo que a aderência dos participantes ao protocolo de coleta torna-se um fator determinante para obtenção de resultados válidos.41
Nos artigos revisados, o relato dos critérios de avaliação de aderência ao protocolo de coleta foi direto, como providenciar um notebook para cada participante com as instruções de coleta19 ou indiretos como uma CAR mínima de 2,5nmol/l.7 Inúmeros estudos na literatura citam mecanismos pelos quais é possível monitorar a aderência dos participantes a protocolos de coleta como utilização de dispositivos eletrônicos, envio de mensagens por telefone e enfatizar a importância da pesquisa.
Independentemente do critério utilizado, sabe-se que o autorrelato do participante sobre o horário da coleta da saliva, por si só, não é suficiente para garantir a obtenção de amostras confiáveis. Tais amostras são mais facilmente obtidas quando os participantes são informados de que suas amostras serão objetivamente monitoradas.33,43
A avaliação de estressores mentais no local de trabalho requere a utilização de escalas psicométricas validadas. Nenhum estudo utilizou uma escala validada e específica para análise de estresse em enfermeiros, nem tampouco foi possível determinar se houve o registro de índices de estresse não relacionados ao trabalho como depressão, ansiedade, características da personalidade do indivíduo e a utilização de estratégias de enfrentamento (coping).
Apesar dos resultados inconclusivos, a presente revisão demonstrou que há evidências de que o trabalho em turnos seja um dos fatores responsáveis pela dessincronização do eixo HHA em profissionais de enfermagem. Trabalhadores do turno noturno apresentaram uma pronunciada alteração no ciclo circadiano do cortisol e relataram maior fadiga e sonolência após o trabalho.19,28 Estudos adicionais, utilizando um maior número de participantes e metodologia padronizada, são necessários para confirmar esses achados. Levando-se em consideração que a fadiga e o estresse afetam negativamente a saúde do trabalhador, sua performance no trabalho e o cuidado ao paciente, a identificação dos fatores responsáveis pelas inconsistências dos achados é um pré-requisito para a obtenção de resultados válidos em estudos de estresse ocupacional. Os dados aqui apresentados fornecem subsídios para o desenvolvimento de pesquisas cujos resultados possibilitem a implementação de intervenções organizacionais satisfatórias no ambiente de trabalho.
Apesar da hipótese de que o trabalho em turnos é um importante mediador da relação entre níveis de cortisol, estresse e fadiga em profissionais de enfermagem, ainda não foi possível determinar uma relação consistente entre estas variáveis. Os achados da presente revisão sugerem que os estudos que avaliam a relação entre estressores ocupacionais e variáveis psicobiológicas incluam estratégias metodológicas padronizadas e com maior poder estatístico, a fim de se determinar as possíveis relações de casualidade.
Entretanto, os resultados aqui apresentados devem ser interpretados, considerando-se algumas limitações. Primeiramente, artigos escritos em outros idiomas, além do português, espanhol e inglês, não foram incluídos na análise, o que pode ter reduzido o universo amostral. Adicionalmente, o delineamento transversal dos artigos pode ter sido um fator impeditivo para a determinação de uma relação consistente entre as variáveis.