versão impressa ISSN 0101-2800
J. Bras. Nefrol. vol.36 no.4 São Paulo out./dez. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20140067
A injúria renal aguda (IRA) é uma complicação frequente e muitas vezes fatal em patologias críticas.1,2 As causas da IRA neste contexto são diversas, porém sepse e choque séptico representam de longe as etiologias mais comuns.3 Apesar dos enormes avanços observados nas últimas décadas em nossa capacidade de tratar pacientes em estado crítico, especialmente na área de terapia renal substitutiva (TRS), a mortalidade dos pacientes sépticos com IRA continua inaceitavelmente alta, chegando a 80% em alguns estudos.4-6 Há um corpo substancial de evidências oriundas de estudos clínicos que indicam que a IRA afeta negativamente os desfechos de curto e longo prazo dos pacientes em UTI.7 Os fatores de risco para mortalidade em curto prazo desses pacientes incluem idade avançada, necessidade de diálise e falência de órgãos extra-renais.8 Curiosamente, alguns estudos indicam uma associação inversa entre creatinina sérica e mortalidade em pacientes não selecionados com IRA.3,9-11
O diagnóstico de IRA pelos critérios AKIN e RIFLE repousa principalmente na detecção de alterações na creatinina sérica,12,13 com valores mais altos resultando em estadiamento mais elevado. Alguns autores sugerem que estágios AKIN mais elevados estejam associados a pior desfecho clínico.13,14 A partir dessas observações, pode-se depreender que níveis mais elevados de creatinina sérica estariam associados a aumento da mortalidade. No entanto, o oposto foi observado em um estudo multicêntrico que incluiu pacientes não selecionados com IRA,2 em que níveis menores de creatinina sérica foram associados a maior mortalidade. Com efeito, a creatinina sérica é um conhecido marcador de estado nutricional, e valores mais baixos foram associados a mortalidade de pacientes em hemodiálise de manutenção.15 No entanto, a relação entre creatinina sérica e mortalidade em pacientes sépticos com IRA ainda permanece alvo de polêmica. O presente estudo investiga o papel do nível de creatinina como preditor de mortalidade em uma população de pacientes críticos com IRA estabelecida de etiologia principalmente séptica.
Foram incluídos todos os pacientes com IRA atendidos na unidade de nefrologia e na UTI de um hospital público de Salvador, Bahia, por um período de dezesseis meses. A UTI do hospital em questão dispunha de 32 leitos e bloco cirúrgico. Pacientes com doença renal crônica estágio 5 diagnosticados segundo as diretrizes atuais16 e transplantados renais foram excluídos.
Este é um estudo prospectivo observacional. Dados fisiológicos e laboratoriais padrão foram registrados diariamente. IRA foi definida e estadiada de acordo com as definições da Acute Kidney Injury Network (AKIN), pelo critério creatinina.17 Sepse foi diagnosticada segundo as diretrizes atuais18 e a etiologia séptica da IRA definida caso a sepse ocorresse antes da IRA e fosse considerada seu principal precipitante. Oligúria foi arbitrariamente definida como débito urinário inferior a 400 ml por dia. Os valores mais elevados de lactato sérico, os níveis mais baixos de bicarbonato sérico e o uso de norepinefrina (pelo menos uma infusão contínua de uma hora) foram registrados; creatinina sérica inicial, IRA de etiologia séptica e relação PO2/FiO2 inicial foram classificados na primeira consulta com o nefrologista. Lactato e PO2 foram obtidos por gasometria arterial (Radiometer ABL 520 Blood Gas Analyzer®, Radiometer, Copenhague); o "pico de lactato" foi o nível sérico de lactato mais elevado registrado durante toda a permanência do paciente na UTI. As frações inspiradas de oxigênio foram registradas a partir da configuração da ventilação mecânica ou calculadas através do fluxo de oxigênio por dispositivos não invasivos. A recuperação da função renal foi definida como independência de diálise no momento da alta da UTI, com nível de creatinina sérica estável e inferior a 50% da creatinina sérica máxima.
O tratamento dialítico foi instituído e individualizado a critério do nefrologista responsável. O momento de início da TRS, bem como a dose e o modo de diálise, foram individualizados de modo a corrigir distúrbios volêmicos, de ácido-base e metabólicos. Hemodiálise intermitente (HDI) e diálise sustentada de baixa eficiência (DSBE) foram realizadas em um equipamento Fresenius 4008S (Fresenius Medical Devices, Bad Hamburg, Alemanha). Hemodiafiltração venovenosa contínua (CVVHDF) foi realizada com o sistema PRISMA (Gambro Renal Products, Lakewood, CO). Heparina não fracionada foi o único anticoagulante utilizado e foi evitada na presença de trombocitopenia significativa (< 100.000/ml), distúrbios hemorrágicos ou cirurgia recente. O protocolo do estudo foi aprovado pelo comitê de ética do hospital.
Estatística descritiva foi utilizada para resumir os dados. As variáveis categóricas foram expressas em porcentagens e as variáveis contínuas em termos de média ± desvio padrão ou mediana e intervalo interquartil (IQR), dependendo da forma da distribuição de frequência (Gaussiana ou não-Gaussiana). As comparações entre os dois grupos foram realizadas utilizando o teste do Qui-quadrado de Pearson ou o teste exato de Fisher para variáveis categóricas; o teste t de Student ou o teste de Mann-Whitney foram aplicados para variáveis contínuas. Foram feitas análises por regressão logística univariada com fins de triagem para a utilização de um modelo multivariado backward stepwise para identificar preditores independentes de diálise e óbito. As variáveis que apresentaram associação com o desfecho caracterizada por valor de p < 0,25 na análise univariada foram selecionadas para análise multivariada. Valores de p < 0,05 no modelo multivariado final foram considerados estatisticamente significativos. O ajuste do modelo foi avaliado pelo teste de Hosmer-Lemeshow. Todos os cálculos foram realizados com o pacote de software estatístico SPSS 17.0 para Windows (SPSS Inc. Chicago, IL).
Cento e catorze pacientes foram acompanhados. A média de idade foi de 55,8 anos; a maioria (61,0%) tinha mais de 60 anos. A grande maioria teve sepse (84,2%), necessitou de ventilação mecânica (88,6%) e infusão de norepinefrina (75,4%). Na primeira consulta, 9,7% tinham doença estágio 1, 21,1% estavam no estágio 2 e 69,3% tinham IRA estágio 3; oligúria foi identificada em 62,3% dos pacientes; e 65,8% foram submetidos a diálise. A mortalidade na UTI foi de 70,2%; dentre os sobreviventes, a maioria (88,2%) recuperou a função renal em nível suficiente para deixar a UTI sem a necessidade de diálise.
O tempo mediano entre a consulta e a primeira sessão de diálise foi de menos de 24 horas; a maioria dos pacientes (59,2%) foi dialisada no dia 0 (dia da primeira consulta). O nível médio de ureia (média ± DP) no momento da primeira diálise foi de 169,7 ± 63,3 mg/dl. O tempo mediano gasto em diálise foi de três dias (IQR 0-8,7 dias). Anticoagulante foi usado em apenas 35,4% dos pacientes. Em pacientes que utilizaram um único método de diálise, as modalidades mais usadas foram: HDI em 44,8% e CVVHDF em 26,8%; a minoria (7,4%) dos pacientes foi tratada com DSBE. Os restantes 21,0% dos pacientes utilizaram uma combinação dos métodos citados acima. Os dados clínicos e laboratoriais estratificados por diálise são apresentados na Tabela 1.
Tabela 1 Dados clínicos e laboratoriais de 114 pacientes com IRA estratificados por diálise
Variáveis | Todos os pacientes(n = 114) | Diálise | p* | |
---|---|---|---|---|
Sim (n = 80) | Não (n = 34) | |||
Idade (anos)** | 60,0 | 56,0 | 65,0 | 0,045 |
(39,2-74,0) | (33,0-73,0) | (45,00-75,0) | ||
Uso de norepinefrina | 75,4% | 26,7% | 51,3% | 0,102 |
Oligúria | 62,3% | 69,3% | 48,7% | 0,033 |
Lactato sérico > 2,5 mmol/l | 36,3% | 29,3% | 50,0% | 0,033 |
Creatinina sérica inicial** | 2,9 | 3,7 | 2,2 | < 0,000 |
(mg/dl) | (2,1-4,6) | (2,6-5,1) | (1,8-2,7) | |
Ureia sérica inicial** | 1175 | 139,0 | 89,0 | < 0,000 |
(mg/dl) | (86,2-165,5) | (104,0-189) | (65,2-115,7) | |
Potássio sérico inicial** | 4,4 | 4,4 | 4,4 | 0,992 |
(mEq/l) | (3,6-5,1) | (3,4-5,1) | (3,7-5,3) | |
AKIN 3 na primeira consulta | 69,3% | 80,0% | 48,7% | < 0,000 |
Bicarbonato sérico (mg/dl)** | 17,3 | 17,3 | 17, 3 | 0,610 |
(13,9-20,0) | (13,6-20,1) | (14,3-19,9) | ||
PO2/FIO2 inicial ** | 270,0 | 288,0 | 230,5 | 0,205 |
(167,0-367,00) | (182,0-403,0) | (135,5-336,7) |
*Comparações entre situações de diálise;
**Dados apresentados como mediana e intervalo interquartil (P25%-P75%).
Análises de regressão logística foram realizadas para identificar os preditores da necessidade de diálise. Durante os procedimentos univariados, cinco variáveis independentes medidas na primeira consulta de nefrologia foram selecionadas para entrar no modelo multivariado: idade, uso de norepinefrina, oligúria, lactato sérico > 2,5 mmol/l e ureia sérica (Tabela 1). Como mostrado na Tabela 2, quatro delas permaneceram independentemente associadas a diálise no modelo multivariado.
Tabela 2 Análise por regressão logística multivariada dos preditores de diálise
Variáveis | OR | Intervalo de Confiança de 95% | p | |
---|---|---|---|---|
Mais baixo | Mais alto | |||
Ureia sérica (contínua) | 1,02 | 1,01 | 1,035 | < 0,000 |
Oligúria (sim/não) | 2,99 | 1,05 | 8,48 | 0,039 |
Idade (contínua) | 0,97 | 0,94 | 0,99 | 0,031 |
Uso de norepinefrina (sim/não) | 0,21 | 0,07 | 0,62 | 0,005 |
Método: Logística regressa backward. Ajuste do modelo: classificação correta geral 77,7%; teste de Hosmer-Lemeshow para Qualidade do Ajuste 0,415; Nagelkerke R2 0,421; nenhum valor discrepante identificado.
Os dados clínicos e laboratoriais de sobreviventes e não sobreviventes são apresentados na Tabela 3. A mediana da creatinina sérica de sobreviventes e não sobreviventes foi 3,95 mg/dl (2,63-5,28) e 2,75 mg/dl (1,81-3,69), respectivamente (p = 0,004) (Figura 1).
Tabela 3 Dados clínicos e laboratoriais de pacientes críticos com IRA segundo desfecho
Variáveis | Todos os pacientes (n = 114) | Desfecho | p* | |
---|---|---|---|---|
Não-sobreviventes (n = 75) | Sobreviventes (n = 39) | |||
Idade (anos)** | 60,0 | 61,0 | 42,0 | 0,010 |
(39,2-74,0) | (45,5-76,5) | (23,5-60,5) | ||
Uso de norepinefrina | 75,4% | 87,5% | 47,0% | < 0,001 |
Oligúria | 62,3% | 67,5% | 50,0% | 0,080 |
Creatinina sérica inicial | 2,9 | 2,7 | 3,9 | 0,006 |
(mg/dl)** | (2,1-4,6) | (1,9-3,7) | (2,6-5,2) | |
Ureia sérica inicial** | 117,5 | 116,0 | 126,0 | 0,093 |
(86,2-165,5) | (84,0-157,0) | (88,5-188,2) | ||
Pico de lactato sérico (mEq/l) ** | 3,6 | 4,2 | 1,9 | < 0,001 |
(2,1-5,0) | (2,3-6,0) | (1,0-2,7) | ||
AKIN 3 na primeira consulta | 69,3% | 68,7% | 70,5% | 0,301 |
Nível mais baixo de bicarbonato (mg/dl)** | 15,2 | 14,0 | 17,7 | 0,001 |
(12,9-18,0) | (12,2-16,7) | (14,3-19,6) | ||
Nível mais baixo de PO2/FIO2** | 192,0 | 164,0 | 296,3 | < 0,001 |
(125,0-272,5) | (113,9-242,2) | (196,0-180,0) |
*Comparações entre sobreviventes e não-sobreviventes;
**Dados apresentados na forma de mediana e intervalo interquartil (P25%-P75%).
Cinco variáveis foram selecionadas para o modelo de regressão logística multivariada para mortalidade: relação PO2/FiO2 mais baixa, norepinefrina, creatinina sérica inicial, valor mais baixo do bicarbonato sérico e pico de lactato. Como mostra a Tabela 4, apenas quatro variáveis permaneceram independentemente associadas a mortalidade no modelo multivariado, com odds ratio de 0,69 para creatinina sérica inicial (IC 0,50-0,97, p = 0,033).
Tabela 4 Análise por regressão logística multivariada dos preditores de óbito
Variáveis | OR | Intervalo de Confiança de 95% | p | |
---|---|---|---|---|
Mais baixo | Mais alto | |||
Creatinina sérica inicial | 0,69 | 0,50 | 0,97 | 0,033 |
Nível mais baixo de bicarbonato | 0,80 | 0,67 | 0,96 | 0,020 |
Pico de lactato sérico | 2,06 | 1,28 | 3,29 | 0,003 |
Nível mais baixo de PO2/FIO2 | 0,99 | 0,98 | 0,99 | 0,023 |
Método: regressão logística backward. Variáveis removidas da equação: uso de norepinefrina. Ajuste do modelo: classificação correta geral 84,2%; teste de Hosmer-Lemeshow para Qualidade do Ajuste 0,873; Nagelkerke R2 0,585.
No presente estudo prospectivo unicêntrico de pacientes críticos com IRA de etiologia principalmente séptica, os níveis de creatinina sérica estiveram inversa e independentemente associados a mortalidade. Nessa população, para cada aumento de 1 mg/dl na creatinina sérica em relação aos valores observados na consulta de nefrologia inicial, houve redução de 31% na probabilidade de óbito.
Outros autores relataram resultados semelhantes. Cole et al.5 encontraram níveis mais baixos de creatinina sérica pré-hospitalização, no momento da internação e de pico em indivíduos com IRA não sobreviventes, embora esta associação não fora significativa. Metha et al.2 identificaram creatinina baixa e nitrogênio e ureia séricos (BUN) elevados como fatores de risco para mortalidade em pacientes com IRA, mas seus dados foram retirados de um estudo multicêntrico com baixo percentual de pacientes com sepse.9 Além disso, um grande estudo multicêntrico publicado recentemente19 identificou o número de medicamentos vasopressores, BUN mais elevado e creatinina sérica mais baixa como preditores de mortalidade; no entanto, o percentual de casos de IRA de etiologia séptica não foi indicado. No presente estudo, este achado foi demonstrado em uma população com IRA de etiologia principalmente séptica diagnosticada pelos critérios da AKIN.
Uma vez que não é plausível que níveis de creatinina mais baixos elevem a mortalidade diretamente, é provável que essa relação seja mediada por variáveis intervenientes (Figura 2). Por exemplo, Macedo et al.20 propuseram que o aumento da água corporal total altera o volume de distribuição da creatinina, resultando em níveis artificialmente baixos. Embora a reposição volêmica precoce guiada por metas seja considerada essencial no tratamento da sepse,21 a administração excessiva de volume foi associada a maior mortalidade em indivíduos com IRA de etiologia séptica, bem como a creatinina sérica mais baixa no momento do diagnóstico de IRA.20,22,23 Níveis mais baixos de creatinina podem resultar, consequentemente, no reconhecimento tardio e na subestimação da gravidade da IRA. Isso poderia retardar não apenas a consulta, que por si só está associado a aumento da mortalidade por IRA,24 como também o início do tratamento dialítico. Nossos dados podem ajudar a explicar, da mesma forma, por que as escalas de gravidade que atribuem riscos mais elevados para níveis mais altos de creatinina sérica subestimam a mortalidade de pacientes com IRA.25-28
Figura 2 Modelo proposto para explicar a associação entre creatinina sérica mais baixa e mortalidade.
A creatinina sérica é também um marcador de massa muscular e estado nutricional. Em uma grande coorte prospectiva multinacional de pacientes em hemodiálise de manutenção, houve maior mortalidade entre aqueles com níveis mais baixos de creatinina sérica e albumina.15 Apesar de marcadores nutricionais como albumina, colesterol e balanço de nitrogênio terem sido recentemente associados inversamente a mortalidade29 na população com IRA, o papel da creatinina sérica ainda não foi consolidado em pacientes com IRA de etiologia séptica.
Recentemente, Wilson et al.30 relataram taxas de formação de creatinina (CGR) em pacientes críticos com IRA mais baixas do que os valores previstos pelas equações disponíveis e uma associação independente entre formação de creatinina mais baixa e mortalidade. No entanto, como estes autores não detalharam os dados nutricionais, não foi possível determinar os fatores causadores de seus achados.
O presente trabalho apresenta várias limitações. Trata-se de um estudo unicêntrico, com um número relativamente pequeno de pacientes. Uma vez que só foram incluídos pacientes para os quais foi solicitada consulta com o nefrologista, os pacientes com IRA menos grave e com recuperação espontânea podem ter sido sub-representados. Da mesma forma, como não registramos o balanço volêmico e tampouco avaliamos o estado nutricional, nos resta apenas especular que estas condições possam ter sido responsáveis por nossos achados.
Embora os fatores de risco para o desenvolvimento de IRA tenham sido amplamente discutidos na literatura, os preditores de mortalidade em pacientes que já desenvolveram a síndrome, principalmente em casos de IRA de etiologia séptica, não são bem conhecidos. A identificação em nosso estudo de níveis baixos de creatinina como fator de risco para mortalidade, portanto, reforça a sugestão de que outros fatores ligados a sepse (desnutrição, hipervolemia) ou consulta tardia poderiam influenciar diretamente a maior mortalidade deste grupo de pacientes. Tendo em vista as limitações da creatinina sérica na IRA de etiologia séptica, torna-se premente a identificação de novos biomarcadores para o diagnóstico e o estadiamento desta síndrome. Os avanços nesta área podem também resultar em escalas preditivas mais adequadas para avaliar o risco de mortalidade de pacientes críticos com IRA.